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Jogabilidade vs Produção de Sentido

No documento Teatro vs. game: o drama gamificado (páginas 35-39)

Para Assis (2007), gameplay refere-se a tudo que o jogador faz durante o ato de jogar e, portanto, é o que torna um programa jogável. Santos (2010, p. 5) diz que o gameplay emerge das interações do jogador com uma determinada construção lúdica, “a partir de seu envolvimento com as regras e da manipulação de suas mecânicas, por meio da criação de estratégias e táticas que constroem a experiência de jogar”.

Ainda não existe um consenso para traduzir o vocábulo. Usualmente gameplay é traduzido por “jogabilidade”, um termo ainda não dicionarizado e sem nenhuma definição consensual. Assis (2007) e Santos (2010) discordam desta tradução, defendendo que gameplay inclui a noção de ludus e paideia (game remete ao jogo de regras, play à brincadeira); “jogabilidade” reduziria o potencial à ideia de ludus.

Mesmo não sendo consensual, uso, neste trabalho, “jogabilidade” para me referir ao conjunto de mecânicas que permitem jogar um game, caracterizado, invariavelmente, pelo seu potencial de diversão. Para suprir a falta da noção de paideia apontada por Santos, uso recorrentemente “brincar” quando falo dos “jogos de simulação”. Entendo que “jogabilidade” é o que distingue o game, de todos os outros meios de expressão. Adams (2010) define que esse conjunto de mecânicas é composto por: 1) desafios que devem ser enfrentados pelo jogador a fim de atingir um certo objetivo; 2) ações que são permitidas a esse jogador. Da relação desafio/ação do jogador, surge a incerteza de se vencer o desafio dado, ou o que Adams chama de “tensão de jogabilidade”.

Existem muitos manuais com o objetivo de definir o conjunto de atributos que tornam o jogo divertido e, portanto, vendável. Em Fullerton & Swain (2004), encontramos uma visão padrão de “preceitos infalíveis”:

a) desafio – grau de dificuldade adequado para as expectativas dos jogadores;

b) senso de progresso – escala crescente de dificuldade perceptível para o jogador;

c) exercício de habilidades – desenvolvimento de alguma habilidade que alimente a motivação do jogador.

d) escolhas interessantes – equilíbrio entre controle e liberdade do jogador; opções demais confundem - opções de menos oprimem - opções que não interessam, frustram;

e) dicas dinâmicas – expressas de forma dinâmica e inseridas no próprio jogo, sem ruptura com sua experiência;

f) interface inteligente – usabilidade compreensível e fácil;

g) exploração espacial – exploração de território bem construído e com segredos para serem descobertos; h) coleção de algo – oferta de itens ou habilidades interessantes para o jogador completar sua coleção (às vezes, jogos não tão divertidos se tornam "viciantes", porque geram interesse por uma última peça que falta para o herói);

i) autoexpressão estética – recursos que permitam ao jogador montar e criar artefatos, personagens, alterar configurações iniciais etc (por exemplo, o modo de criação de personagens no The Sims em que o jogador escolhe seu vestuário, características de personalidade e objetivos de vida);

j) narrativa cativante – elaboração de uma trama para o jogador agir em consonância com as regras do jogo (é importante equilibrar a lógica-matemática do jogo com a narrativa);

k) surpresa/previsibilidade – as surpresas geram motivação para os jogadores, mas o jogo também tem que ser suficientemente previsível para antecipar os desafios e formular estratégias.

Esses recursos e convenções podem ser explorados na criação de games, porém, como em qualquer processo criativo, ao subverter certos padrões, também é possível chegar a resultados de excelência.

A jogabilidade do The Sims é bastante peculiar. Se, no início do jogo, o interator tiver escolhido “Desejo Duradouro: estabelecer uma família”, a respectiva barra do menu fica verde à medida que o Sim cumpre este objetivo. Quando a barra é totalmente preenchida, o interator escolhe outra aspiração para continuar o jogo. Da mesma forma, o painel de “desejos” altera-se à medida que cada um deles é atendido. Observando o quadro que informa as “necessidades” diárias, cabe ao interator cuidar para que sejam satisfeitas (alimentação, diversão, higiene, conforto etc). No quadro de “relacionamentos”, aparecem imagens de outros personagens com quem o avatar se relaciona, incluindo ícones representando o grau de intimidade: inamizade, amizade, amizade especial, paixão, namoro firme, amor, noivado e casados/união civil. No quadro “carreira”, é possível acompanhar a evolução de sua vida profissional (o personagem começa procurando um emprego em um jornal deixado diariamente na porta da casa). Já as “habilidades” (em culinária, mecânica, preparo físico, lógica, carisma, criatividade e limpeza) são adquiridas quando o Sim lê livros, pratica exercícios, pinta um quadro... O quadro “Simologia” apresenta uma espécie de histórico do personagem. A felicidade do Sim é o resultado do equilíbrio entre esses fatores que incluem sua vida social, necessidades fisiológicas e história de vida.

Cada interator define como quer conduzir seu jogo e, experimentando as várias possibilidades, é comum testar os limites de infelicidade dos Sims. Nessas experimentações, existem certos limites que não podem ser ultrapassados: o estupro, o incesto, o canibalismo, a pedofilia não são permitidos, por exemplo (Braga, 2009).

A despeito dessa abertura permitindo que cada interator defina seu próprio objetivo, a jogabilidade em The Sims exerce papel fundamental na produção de sentido. A princípio, games não procuram passar uma verdade, nem provar a realidade de um fenômeno, mas garantir o interesse em si mesmos. Não há, contudo, como criar simulações isentas de tendências ideológicas, afinal, o interator será sempre cerceado pelas regras contempladas no momento de produção do jogo (GOMES, 2006). No caso do The Sims, é a satisfação de objetivos em curto prazo que entram na contabilidade da “Felicidade Duradoura” e, desde o início, os Sims são

movidos pelo desejo de sustentar um modo de vida que espelha uma típica classe média americana7.

Discutindo os efeitos que as regras do tipo ludus têm sobre o jogador, Frasca (2001) alerta para o fato de que a definição de normas conduzindo à vitória ou à derrota constrói um conjunto de “regras morais” evidentes, isto é, os parâmetros previamente estabelecidos definem que tipo de ação dentro do jogo leva à premiação. Magnani (2007), complementando Frasca, defende que existe, nas normas do tipo paidea, uma “persuasão implícita”. Esses jogos, como não deixam evidentes os limites que colocam para as ações do interator, leva o interator a inferir as restrições do jogo e as consequências de suas escolhas. Deste modo, torna-se difícil questionar ou rebater as regras implícitas.

Em The Sims, se o interator não se questiona sobre o conceito de felicidade do jogo e os meios de atingi-la, ele coloca em prática valores de natureza consumista, assimilando-os como “naturais”. A ênfase na palavra “comprar” insistentemente relacionada a felicidade é um dos indícios da maneira como a jogabilidade processa a naturalização do discurso mercadológico. Sob esse prisma, pode-se entender que a série atua como um mecanismo de reprodução social do sistema capitalista vigente.

Essa discussão não compete a esta pesquisa, mas como discorro sobre as estratégias da jogabilidade aplicados à cena, é importante destacar seu poder de produção de sentido.

                                                                                                                         

7  Os Sims começam desempregados, mas com $16.000,00 por família (a moeda do jogo se

chama simoleon). Esse dinheiro praticamente se esgota na compra de um lote e na construção de uma casa. Eles precisam comer e, a cada comida que tiram da geladeira, são subtraídos $10 ou $20 do seu orçamento, ou seja, suas vidas têm um custo diário. Por essa razão, a rigor, eles precisam trabalhar. Quando encontram um emprego, ganham cerca de $120 por dia. Uma banheira de hidromassagem em forma de coração, a “Banheira de Amor Niágara”, custa $7.999, e uma televisão tipo home-theater, $3.500. Logo, o Sim éestimulado a trabalhar para ser promovido e aumentar seu poder de compra. Todavia, não acompanhamos o personagem no seu emprego e, de modo geral, não existe evidência de satisfação em relação a esse trabalho ou uma ligação com a sociedade em que está inserido.

No documento Teatro vs. game: o drama gamificado (páginas 35-39)