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Dramaturgia Potencial

No documento Teatro vs. game: o drama gamificado (páginas 44-47)

Durante os exercícios da graduação, denominei “dramaturgia potencial” a escrita experimental que eu desenvolvia para permitir aos espectadores atualizarem possibilidades previstas pelo texto (ANDRADE, 2005).

Potência, para Lévy (1999), é o que exprime possibilidades. Trata-se do poder de que se dispõe; logo, o potencial estaria no plano do virtual, isto é, uma série de latências à espera de atualização.

O possível é exatamente igual ao real: só lhe falta a existência. A realização de um possível não é uma criação, no sentido pleno do termo, pois a criação implica também a produção inovadora de uma ideia ou de uma forma. A diferença entre possível e real é, portanto, puramente lógica [e/ou temporal] (LÉVY, 1999, p. 16).

Depreende-se da citação que o potencial e o virtual são polos latentes, enquanto o real e o atual são polos manifestos. Para Lévy, o virtual opõe-se ao atual (e não ao real).

Na criação do conceito “dramaturgia potencial”, eu concebia dois planos textuais: 1) programa de narração – texto escrito armazenando todas as possibilidades de interatividade (virtual); 2) manifestação cênica – texto encenado de acordo com as escolhas dos espectadores (atual).

Assim, as formas de escrita assemelhavam-se a mapas navegáveis, permitindo aos espectadores atualizarem algumas possibilidades do programa de narração. Essa estrutura remetia à literatura hipertextual das décadas de 1960/70 (especialmente inspirada no Jogo da Amarelinha, de Júlio Cortázar, um labirinto literário escrito em 1963, em que o leitor segue seu próprio caminho de leitura, passando pela estória de um triângulo amoroso, textos de outros autores, resenhas etc).

Ao entrar em contato com games, no intuito de desenvolver uma “dramaturgia potencial” mais complexa, fiquei instigado a explorar a programação digital como narrativa teatral.

As novas mídias caracterizam-se por manipularem dados digitais por meio de programas (softwares), que são algoritmos compostos pela combinação de algoritmos menores. Um algoritmo, por sua vez, é uma

sequência finita de instruções não ambíguas que pode ser executada em um determinado período de tempo.

Operando dados por meio de algoritmos, o computador permite a visualização de efeitos globais emergentes a partir da interação dos seus elementos. Isso quer dizer que as possibilidade não estão armazenadas previamente, mas são criadas em função das instruções programadas. Nao é um processo de atualização, mas de simulação...

Do ponto de vista operacional, ao invés de um hipertexto, passei a vislumbrar um processo de “algoritmização” da ação do ator e uma “gamificação” do drama. É importante ressaltar, primeiro, que este tipo de experiência distingue-se de “jogos dramatizados” como RPGs11 ou “jogos vivenciados por humanos” à maneira de Jogos Móveis Locativos (pervasive games12), segundo, que o nome “gamificação” (ou “ludificação”) já é usado para se referir a mecânicas de games aplicadas em contextos não relacionados a jogos. Normalmente, o termo é usado com o objetivo de incentivar o comportamento de pessoas, sobretudo como técnica para aumentar o consumo, treinar funcionários, desenvolver atividades relacionadas a bem-estar, educação fundamental etc. Algumas das técnicas incluem emblema de conquistas, classificação de usuários, barra de progresso que indica o quão perto as pessoas estão de completar certas tarefas etc.

Apesar de ter interesses completamente distintos, eu não posso me eximir de lançar um olhar crítico sobre a pauperização das relações humanas quando pautadas simplesmente por mecânicas de games. McGonigal

                                                                                                                          11

O Role-Playing Game (RPG), ou "jogo de interpretação de personagens", é um jogode mesa em que os jogadores assumem os papéis de personagens e criam narrativas colaborativamente. O progresso de um jogo se dá de acordo com um sistema de regras predeterminado, dentro das quais os jogadores podem improvisar livremente. No RPG, existem dois tipos básicos de jogadores: 1) o jogador-personagem (player) é aquele que cria um personagem para controlá-lo pelas aventuras do jogo; 2) o jogador-narrador (Game Master) é aquele que cria a história e julga as ações de todos os personagens, por isso deve ser o mais experiente do grupo. Pela ausência do jogador-narrador, no RPG digital (Computer Role-Playing Game, sigla CRPG), o jogador controla personagens que seguem uma história pré-determinada, por isso tem menos liberdade do que o RPG de mesa.

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Jogos Móveis Locativos (pervasive games) aliam tecnologias digitais móveis e sistemas de geolocalização, criando interfaces entre os espaços digital e físico para fins de jogo. Trata-se de uma expressão que mescla cultura dos games, arte eletrônica e ação urbana. Tais jogos são exemplos de uso das “mídias locativas”, revelando a atual fase da computação ubíqua, da mobilidade e da hiperlocalização.

(2010), por exemplo, defende que o processo de “gamificação da realidade nos torna melhores e mais felizes” (p. 35-77 passim). Ela pressupõe que as pessoas gastam muito tempo de suas vidas em jogos digitais por causa do modelo de recompensa adotado. Com isso, ela conclui que jogos, em comparação à realidade, são muito mais eficientes para atender nossos desejos, recompensar nossos esforços de maneira clara e imediata, oferecer desafios proporcionais ao nosso nível de habilidade, e ainda, nos convencer a persistir em algo, mesmo fracassando a princípio. Não é preciso ir adiante para constatar que ela desenvolve um novo modelo de autoajuda com fórmulas elementares dos games. Ela mesma relata que relacionou games à felicidade durante um processo profundo de depressão, e que jogar contribuiu para sua recuperação (seu livro teve vendagem exorbitante no ano de seu lançamento).

Distante de qualquer pretensão motivacional (a não ser que seja justamente para perturbar esse discurso constituído de clichês), o “drama gamificado” que me proponho a discutir visa a apropriação da jogabilidade a fim de promover um nova economia da espetacularidade. Encaro esta pesquisa como um desdobramento “natural” do que vinha sendo desenvolvido na graduação, talvez como um subtipo de “dramaturgia potencial”.

Ambiciono, nesta nova investida ao tema, o hibridismo de dois conjuntos de forças culturais: por um lado, as convenções do teatro; por outro, as convenções do game. O software de computador e a interface homem-máquina agregam-se à pesquisa, de tal maneira que o funcionamento da cena passa a depender da sobreposição de informações no espaço físico e no espaço digital.

No documento Teatro vs. game: o drama gamificado (páginas 44-47)