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Preparação de jogo: rigidez e flexibilidade

No documento Teatro vs. game: o drama gamificado (páginas 105-108)

FASE 1: INTERATIVIDADE

3 Teste de Jogo (playtest)

3.2 Preparação de jogo: rigidez e flexibilidade

Em reuniões de estudos, observamos sistematicamente o The Sims 3 para estudar a movimentação e a forma de se comportar dos avatares. Quando iniciamos o trabalho prático, cada ator buscava, como aquecimento, desenvolver as características e singularidades dos seus personagens: maneiras de andar, ficar parado, comer, olhar, pegar objetos etc. Como os Sims não falam, inventamos modulações vocais coerentes com os corpos que se desenhavam. Estávamos em busca de uma composição menos humana, por isso enfatizávamos uma movimentação artificial na articulação dos joelhos e dos cotovelos.

Games como o The Sims 3 não favorecem a multiplicidade de sentidos. Tínhamos, então, o objetivo de recorrer a códigos expressivos com o mínimo de ambiguidade. O objetivo não era mecanizar os movimentos dos personagens, nem realizar caricaturas dos Sims, mas explicitar alterações de humor, motivações e diferentes estados emocionais, sem sinais de psicologismo.

Conforme a expressão gestual dos atores progredia, propúnhamos – Carolina Mendonça (assistente de direção) e eu – interações entre eles, a fim de que, juntos, chegassem às situações do roteiro-base. Os personagens foram criados a partir dessas improvisações.

A condução dos exercícios variava: algumas vezes os atores eram levados a seguir rigorosamente as situações do roteiro-base; outras vezes eles podiam provocar mudanças radicais da narrativa. Esta segunda opção – que chamamos de “free mode” por dar mais liberdade aos intérpretes – era rica de descobertas; despojados da obrigação de representar uma linha narrativa, eles realizavam as ações previamente estudadas, única e exclusivamente, preocupados em afetar seus companheiros. Existia, nessa simplicidade, a atenção em descobrir a próxima ação junto com o interlocutor em cena, uma troca sensível que enriquecia o jogo cênico. Assim, de forma

fragmentada, fora da sequência e sem uma justificativa dramática, todas as ações ganhavam em estado de presença e em significado.

Ao repetir esse trabalho diversas vezes, conseguíamos estudar maneiras de ocupar o espaço, variações de ritmos e de intensidades das ações cênicas. Os atores apropriavam-se do roteiro-base e uma homogeneidade de linguagem corporal começava a aparecer aos poucos.

Depois de exercícios pré-expressivos dessa natureza, ensaiávamos o que chamamos de “rotinas dos personagens”, constituídas por atividades banais, como acordar, tomar o café da manhã, exercitar-se... Cada rotina ocupava um lugar determinado no espaço e tinha qualidades específicas de fluxo (contínuo ou interrompido) e velocidade (lento ou rápido).

Cada vez mais, eu definia as marcações. Depois de algumas repetições, os atores as tornavam orgânicas; de forma meticulosa, esboçamos o roteiro-base ao longo de três semanas.

Nas duas semanas seguintes, dedicamos tempo maior às “funções de sociabilidade”, que foram também rigorosamente marcadas, neste caso, com atenção especial ao tempo de duração e à relação espacial entre os corpos. Durante sua criação, essas cenas curtas eram encaixadas em diferentes momentos do roteiro, o que modificava, de alguma maneira, as “rotinas dos personagens” preestabelecidas. O objetivo dessa prática era exercitar o domínio da narrativa e a habilidade de deslocar a posição das cenas.

Além dos artistas da cena (diretor, atores, preparadores corporal e vocal, iluminador, músico...), os técnicos começaram a participar ativamente dos ensaios (supervisor de mídias, engenheiro de som, programador de sistema, operador de luz e som...), sobretudo com a finalidade de executar e aprimorar o sistema digital (o software integrava partes da sonorização do espetáculo, o que exigia revisão frequente).

Assim, a cada ensaio, atores e equipe técnica construíam a cumplicidade necessária para a reorganização rápida do roteiro e, em poucos dias, os operadores conseguiam antever as ações dos atores sem que nada fosse verbalizado.

Figura 16 – Cabine técnica. Da esquerda para direita, Celso Linck (operação de luz), Lúcia

Galvão (criação de luz), Daniel Maia (criação de som), Luciana Tognon (supervisão de mídias). Ensaio do dia 02/10/12.

Nessa etapa, ao invés de lutar para manter as partituras iniciais, os atores serviam-se delas como trampolim para dar vitalidade às suas ações e reorganizar a ocupação espacial, restando apenas vestígios das marcações anteriormente ensaiadas. Estudávamos, então, as melhores estratégias para voltar ao roteiro-base depois que uma “função de sociabilidade” fosse acionada. Como ligar duas cenas que não foram criadas para serem sequenciais? Por meio do texto, pela ação, comentando com o público, improvisando falas, assumindo uma ruptura abrupta ou executando mecanicamente? Nunca encontramos uma resposta para essa pergunta. Percebíamos, no entanto, que os atores precisavam se disponibilizar para reagir a qualquer modificação, ainda que sutil, da situação, para encontrar a melhor estratégia de efetuar cada ligação que fosse necessária.

No intuito de potencializar o aqui-agora, dividi os ensaios em quatro momentos: 1) “free mode”; 2) execução de “rotinas dos personagens”; 3) roteiro-base; 4) “espetáculo-game”. Este último momento era o que normalmente chamamos de “corrido”. No nosso caso, era caracterizado pela aplicação das “funções de sociabilidade” no roteiro-base, e não a repetição de uma estrutura fixa e predeterminada. Como as cenas se rearticulavam em

função da ação externa, era como se os atores sempre as fizessem pela primeira vez.

Eu não definia mais as marcações, apenas discorria sobre 1) interações entre os personagens; 2) ocupação do espaço; 3) qualidade do movimento de cada ator. Eventualmente, com o intuito de aprimorar a escuta entre os atores, repetíamos algumas ligações entre cenas. Nesse momento, os atores eram incentivados a acolher as novidades e acasos sem julgar o que era certo e errado.

Tal flexibilidade na minha maneira de conduzir os ensaios gerava certo desconcerto na equipe que esperava diretrizes cada vez mais precisas à medida que a data de abertura para o público se aproximava. Da minha parte, no entanto, eu insistia em manter um discurso aberto, preocupado, sobretudo, em não cristalizar o espetáculo.

Era consenso que a pontuação do “Placar de Felicidade” deveria afetar a interpretação, mas não tínhamos ideia de como isso poderia acontecer.

No documento Teatro vs. game: o drama gamificado (páginas 105-108)