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GENEALOGIA, PRAZER E POLÍTICA

3. Causas da história

À perspectiva histórica de Foucault se opõe outra que combina, ao menos, quatro elementos: uma concepção jurídico-contratualista do poder, o marxismo, a dialética hegeliana, e uma pretensão de verdade. Certamente, como ocorre com os outros elementos, também entre a concepção jurídico-contratualista do poder e este marxismo a que se refere Foucault há um grande movimento e, “naturalmente”, uma oposição, pois, em linhas gerais, o segundo guarda uma dívida com um discurso de embate ao poder monárquico287. À primeira “o poder é considerado um direito do qual se seria possuidor como de um bem, e que se poderia, em conseqüência, transferir ou alienar, de uma forma total ou parcial, mediante um ato jurídico ou um ato fundador de direito (...) que seria da ordem da cessão ou do contrato” (FOUCAULT, 1997, p. 14). Ao marxismo “o papel essencial do poder seria manter relações de produção e, ao mesmo tempo, reconduzir uma dominação de classe que o desenvolvimento e as modalidades próprias da apropriação das forças produtivas tornaram possível” (ibid., p. 14). As duas concepções não estariam juntas, todavia, se não houvesse um ponto de encontro sobre o qual deveremos nos debruçar. Chamaremos este ponto de “economismo288” em virtude da idéia difundida de que “o poder está sempre numa

posição secundária em relação à economia” e de que “o poder é modelado com base na mercadoria” (ibid., p. 15).

Retenhamos, por ora, o modo pelo qual o poder se apropriou dos discursos revolucionários, através de sua dialetização, reconduzindo-os, de certo modo, ao controle que interessava ao poder soberano, ainda que este controle aparecesse de uma nova forma, na disciplinarização dos corpos e na regulação da população.

Há, em primeiro lugar, dois discursos históricos mobilizados por Foucault289. Um deles é mais homogêneo, por assim dizer: é o do soberano, do direito, da lei e da verdade. Discurso milenar “filosófico-jurídico”, cujas raízes encontraremos na história romana. O outro é bem mais heterogêneo porque nasce em diferentes contextos e com personagens bem distantes umas das outras (como os movimentos populares, burgueses, aristocráticos e puritanos da Europa dos séculos XVI, XVII e XVIII), as quais têm em comum o posicionamento contrário ao discurso do soberano. É um discurso fundado,

287 Palavras de Foucault (1997, p. 69): “A história do projeto e da prática revolucionários não é, creio eu,

dissociável dessa contra-história que rompeu com a forma indo-europeia de práticas históricas vinculadas ao exercício da soberania”.

288 Nesta Seção, ateremo-nos às análises foucaultianas da segunda metade da década de 1970,

especialmente as presentes no curso Em defesa da sociedade, ministrado em 1975-76.

191 essencialmente, na guerra, na medida em que aparece, no final da Idade Média, com a constituição de um Estado dotado de instituições militares e de uma sociedade perpassada por relações de força que, por meio destas, quer assegurar a verdade e o direito. É, por fim, um discurso “histórico-político”, que se relaciona com a memória de um modo até então inédito290.

Ao discurso filosófico-jurídico, a história é, por assim dizer, externa à força do soberano. É uma narração de seus feitos e vitórias, o elogio de suas glórias e de sua capacidade de aterrorizar, a fim de justificar seu poder e fortalecer os laços jurídicos entre os homens. Já o discurso histórico-político se fundamenta e se legitima na história, tornando-a o pano de fundo sem fim de justificativas à revolução, à liberdade, ao direito, à verdade e, de maneira geral, à extensão infinita de uma “consciência histórica” (ibid., p. 66) que se lança a esta infinidade de lutas e insurreições. Encontramos a dialética? Este é o ponto. Se Foucault suspeitará de uma perspectiva histórica que é, ao mesmo tempo, jurídica e marxista, é porque ela é fruto de uma reconciliação apaziguadora que só uma linguagem dialética pode realizar:

A dialética bem pode parecer, à primeira vista, ser o discurso do movimento universal e histórico da contradição e da guerra, mas creio que na verdade ela não é de modo algum sua validação filosófica. Ao contrário, parece-me que ela atuou mais como sua retomada e sua mutação na velha forma do discurso filosófico-jurídico291

(FOUCAULT, 1997, p. 50

Contudo, repetimos: afirmar que a dialética é o elemento de pacificação entre o discurso da guerra e o jurídico não significa afirmar que ela é a causa de uma nova forma destes discursos. Sem dúvida, há uma tentação de ver um Foucault dialético quando lemos: “Houve uma auto-dialetizaçào do discurso histórico que foi feita independentemente de qualquer transferência explícita, ou de qualquer utilização explícita, de uma filosofia dialética para o discurso histórico” (ibid., p. 211). Porém, o filósofo está, justamente, negando uma potência do negativo como motor da história. Se podemos falar de uma dialetização dos discursos é na medida em que o poder aí encontra uma estratégia de assimilação do discurso revolucionário da guerra, pela qual

290 “Na história de tipo romano a memória tinha, essencialmente, de garantir o não-esquecimento – ou

seja a manutenção da lei e o aumento perpétuo do brilho do poder à medida que ele dura. Pelo contrário, a nova história que aparece vai ter de desenterrar alguma coisa que foi escondida, e que foi escondida não somente porque foi menosprezada, mas também porque ciosa, deliberada, maldosamente, deturpada e disfarçada” (FOUCAULT, 1997, p. 63).

291 Vale citarmos mais um trecho do texto: “Enfim, a dialética assegura a constituição, através da história,

de um sujeito universal, de uma verdade reconciliada, de um direito em que todas as particularidades teriam enfim seu lugar ordenado” (FOUCAULT, 1997, p. 50).

192 “esse elemento da guerra, constitutivo mesmo da inteligibilidade histórica do século XVIII, vai ser, senão eliminado do discurso da história, pelo menos reduzido, delimitado, colonizado, implantado, repartido, civilizado e até certo ponto apaziguado” (ibid., p. 193). A dialetização não é causada pelo trabalho do negativo, portanto, mas é efeito de uma apropriação do discurso revolucionário, de sua reconciliação com o jurídico, da perpetuação e do mascaramento da guerra. Esta é trazida para o interior da nação sob a justificação da defesa da sociedade, de sua identidade, de sua vida, de sua história. Portanto, apropriação da história que, agora, se infla de outras histórias particulares, de um povo, uma família, um nome. Infinitas histórias sem fim que guardam e fazem renascer, então, uma nova história, uma nova filosofia.

No fundo, a filosofia da história não existia, no século XVIII, senão como especulação sobre a lei geral da história. A partir do século XIX, começa algo novo e, creio eu, fundamental. A história e a filosofia vão formular esta questão em comum: o que, no presente, traz consigo o universal? O que, no presente, é a verdade do universal? Essa é a questão da história, essa é igualmente a questão da filosofia. Nasceu a dialética (ibid., p. 211-12).

Sem dúvida, nesta passagem do século XVIII para o XIX, lidamos com acontecimentos marcados por uma dispersão de efeitos sobre os quais não podemos discorrer com tanta precisão, a não ser assumindo uma causalidade histórica. Em oposição a isto, seguimos Foucault (2008a, p. 320): “A inteligibilidade em história residiria, talvez, em algo que podemos chamar de constituição ou composição de efeitos”. O primeiro dado a ressaltar é que a oposição entre os dois discursos (do soberano e da revolução) em questão não se desfalecerá simplesmente, mas assumirá uma nova configuração. Aliás, a idéia de uma oposição binária é, efetivamente, o substrato desta nova configuração.

Para isto concorreu um elemento já existente de modo difuso na Idade Média, mas nunca tão conciso e organizado quanto no século XVII: o discurso da luta das raças292. O que está em jogo na nova significação deste discurso? Um fator primordial,

entre outros: “uma percepção e uma repartição binária da sociedade e dos homens” (ibid., p. 64). Trata-se de um desdobramento do discurso histórico-político: a dicotomia entre os que, agora, aparecem como desprovidos de liberdade, de direitos, de glória, e os

292 O discurso da luta das raças, em suas primeiras aparições, caracteriza-se em “temas escatológicos ou

em mitos que acompanharam movimentos populares na segunda metade da Idade Média” (ibid., p. 67). Contudo, somente depois deste período é que ele ganhou força, pois “sua origem, no final da Idade Média, não o marcou suficientemente para que só funcione politicamente num sentido”. Cf. ibid., p. 51; p. 60-61; p. 66.

193 seus opressores. De um lado os injustiçados, os submissos, os pobres, os sem-direitos e, por isso, indignados – um povo ameaçador. De outro os ricos, os senhores, os déspotas – os homens da lei. Assim, “a guerra que se desenrola sob a ordem e sob a paz, a guerra que solapa a nossa sociedade e a divide de um modo binário é, no fundo, a guerra das raças” (ibid., p. 51). Contudo, novo cuidado: não podemos afirmar que o discurso das raças “pertence, de pleno direito e totalmente, aos oprimidos” (ibid., p. 67). E isso porque, depois de uma “transcrição francamente biológica” (ibid., p. 52) desse discurso, estará efetivamente em questão não só o estatuto meramente econômico de seus defensores, mas, sobretudo, o seu estatuto histórico-biológico. Aqui está o que nos interessa, uma vez que:

esse discurso da luta das raças (...) vai ser recentralizado e tornar-se justamente o discurso do poder, de um poder centrado, centralizado e centralizador; o discurso de um combate que deve ser travado não entre duas raças, mas a partir de uma raça considerada como sendo a verdadeira e única, aquela que detém o poder e aquela que é titular da norma, contra aqueles que estão fora dessa norma, contra aqueles que constituem outros tantos perigos para o patrimônio biológico (FOUCAULT, 1997, p. 53).

Enfim, reencontramos a normalização. Mais ainda, considerando aquela dispersão de efeitos (da apropriação do discurso revolucionário pelo poder) a que nos referimos, deparamo-nos com um novo discurso, uma nova forma de poder. Efeitos, se quisermos, da auto-dialetização do discurso histórico que, aos poucos, levou a guerra entre as nações para dentro da nação293, quer dizer, importou a guerra às partes internas a uma nação. Ao mesmo tempo, com a reconciliação dialética, e considerando que “o saber e a verdade não podem pertencer à guerra, mas só podem ser da ordem da paz” (ibid., p. 154), a própria questão da guerra, agora entre as raças, se torna uma questão de gestão da vida, cuidados com os perigos biológicos, purificação da raça: “a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura” (ibid., p. 228).

Surge aí uma nação que não se enquadra mais em uma “teoria da soberania” (ibid., p. 31-2), nação externa ao corpo do rei e que, como tal, não se vê mais como súdita. Nação, enfim, que, em última instância, se vê não mais precisando do rei e sim de um Estado, para protegê-la de outras nações e, acima de tudo, dela mesma: “Temos de defender a sociedade contra todos os perigos biológicos desta outra raça, dessa sub- raça, dessa contra-raça que estamos, sem querer, constituindo” (ibid., p. 53). Não mais o

194 direito do rei de “fazer morrer e deixar morrer” (ibid., p. 214), mas o nosso poder de “fazer viver e deixar morrer” (ibid.). Cai o poder soberano; em seu lugar, o biopoder294.

Poderíamos aqui relembrar as análises de A vontade de saber, afinal, a noção de biopoder aparece, entre outras ocasiões, em determinado momento de uma História da

sexualidade, como a face de um poder que incita e intervém sobre as variações do corpo biológico do indivíduo e da sociedade. Para tanto, utiliza-se de dispositivo cujos objetos – o sexo, o desejo, a vitalidade etc. – não são determinados (apenas) pela lógica de uma lei interditiva e repressora, mas, justamente, por uma “vontade de saber” cuja demanda criará condições à disciplina dos corpos e à regulação da população em nome da vida. Isso, contudo, é tão-somente uma visão superficial. É ao nível capilar das relações sociais que deveríamos nos ater para distinguir as transformações que marcam a passagem do poder das mãos do soberano ao corpo e à vida dos indivíduos. Por enquanto, devemos nos ater àquelas transformações que nos fazem passar do poder da lei ao poder da norma295.

Sabemos do que se trata: “um mecanismo de poder que permite extrair dos corpos tempo e trabalho, mais do que bens e riqueza” (ibid., p. 32). Antes de atentarmos às implicações utilitaristas deste mecanismo, expressas nos princípios de maximização e economia das forças, por exemplo, convém perguntar: não está ai implícita a idéia de que, “se considerarmos que não existem sensações absolutamente indiferentes, os diferentes graus de prazer e de dor são a lei segundo a qual se desenvolveu o gérmen de tudo aquilo que somos, para produzir todas as nossas faculdades296”?

Se a resposta é afirmativa, então não diremos que Condillac, autor destas palavras, determinou uma economia do prazer à modernidade, mas, mais precisamente, que a modernidade apropriou-se de Condillac. É nas micro-relações de poder regidas

294 Isso não significa que o biopoder exclua o poder soberano, ao contrário. Similarmente ao que ocorre

entre os dispositivos de aliança e de sexualidade, como vimos na primeira seção deste Capítulo, dá-se com estas duas formas de poder. Como afirma Foucault (1997, p. 33), “a teoria da soberania não só continuou a existir, se vocês quiserem, como ideologia do direito, mas também continuou a organizar os códigos jurídicos que a Europa do século XIX elaborou para si”. E o modo pelo qual um discurso revolucionário marxista se opõe a um poder centralizado, dominante e repressor não faz outra coisa senão atualizar, nas instituições, práticas, discursos e saberes do biopoder, a figura do soberano.

295 Podemos falar de um poder da norma em função de sua posição na disciplinarização dos corpos, tal

como analisada por Foucault (2008a, p. 75): “A normalização disciplinar consiste em primeiro colocar um modelo, um modelo ótimo que é construído em função de certo resultado, e a operação de normalização disciplinar consiste em procurar tornar as pessoas, os gestos, os atos, conformes a esse modelo, sendo normal precisamente quem é capaz de se conformar a essa norma, e o anormal que não é capaz. Em outros termos, o que é fundamental e primeiro na normalização disciplinar não é o normal e anormal, é a norma”. E “a norma não se define absolutamente como uma lei natural, mas pelo papel de exigência e de coerção que ela é capaz de exercer em relação aos domínios a que se aplica. Por conseguinte, a norma é portadora de uma pretensão de poder” (id., 2002, p. 62).