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REAL, TRANSCENDENTAL E CARNAL

O REAL, O TRANSCENDENTAL E O CARNAL

3. Política do bem e cinismo do útil

Os que apostam na ética aristotélica – e não são poucos na contemporaneidade, diz-nos o autor do Seminário – deverão despender uma quantidade considerável de energia para manter acesa a chama do mundo e do discurso em que ela vige: “A moral de Aristóteles (...) se funda inteiramente numa ordem certamente arrumada, ideal, mas que responde contudo à política de seu tempo, à estrutura da Cidade. Sua moral é uma moral do mestre, feita para as virtudes do mestre, e vinculada a uma ordem dos poderes” (LACAN, 1986, p. 363). Destaquemos três características da moral aristotélica, tal como interpretada por Lacan: 1) se funda em uma ordem ideal; 2) responde à política de seu tempo; 3) é uma moral do mestre. Há em primeiro lugar o requisito de uma ordem – e os aristotélicos de plantão, já aqui, debater-se-ão com a ausência de ordem que se abateu sobre o mundo com o que Lacan (1986, p. 197-210) chamará, na trilha da modernidade, de morte de Deus.

Notemos: embora corrente, o termo “crise” não nos parece apropriado pois o que a morte de Deus anuncia não é o sentido absurdo das coisas, mas precisamente a falta do sentido, em suma, a ausência desta harmonia natural característica do mundo grego. Se o vazio do mundo no qual mergulhamos com o advento da ciência moderna nos aparece como crítico é, tão-somente, porque ansiamos pelo ideal de uma ordem. Ora, como afirma Lacan, para Aristóteles esse ideal “responde à política de seu tempo”. Eis porque, paradoxalmente, uma “moral do mestre” ainda perdura em nossos tempos: dado que não vivemos mais a era de uma ordem que deixou de ser ideal e se tornou ideologizada, apenas o investimento imaginário crescente na figura do mestre o tornará apto a nos conduzir. É claro que isto terá seu preço – não esqueçamos que a moral do mestre se apóia no poder soberano, em nome do bem da cidade: “Continuemos

trabalhando, e quanto ao desejo, vocês podem ficar esperando sentados” (LACAN,

83 O problema é que a conta não vai fechar, pois, como o Pai, Deus já está morto desde sempre e o Mestre não está lá, esperando por nós. Por conseguinte, não apenas teremos um saldo negativo cada vez maior de expectativas (não atendidas), como também serão exigidos sacrifícios cada vez mais constantes e penosos para o bem da cidade e para sustentar o mestre postiço que teremos de eleger. Afinal, “o ideal desse mestre, tal como deus no centro do mundo aristotélico governado pelo nous, parece ser justamente o de tirar seu corpo fora da jogada do trabalho” (ibid., p. 32). Vê-se o descompasso entre o princípio do prazer, cujo fim é manter o nível das excitações no mais baixo nível, e esta busca pelo Bem supremo: ao contrário do que suporia uma “tradição hedonista”, o prazer (que é objeto da psicanálise) não pode ser um bem e, tampouco, traçar a via para o Bem supremo. Eis a “tapeação” de que fala Lacan acerca da relação entre bem e prazer:

Insisti nisto durante o ano inteiro – toda a meditação acerca do bem do homem, desde a origem do pensamento moralista, desde que o termo de ética adquiriu um sentido, como reflexões do homem acerca de sua condição e do cálculo de suas próprias vias, fez-se em função do índice do prazer. Quero dizer, desde Platão, sem dúvida desde Aristóteles, através dos estóicos, epicuristas, e através do próprio pensamento cristão em São Tomas. No que se refere à determinação dos bens, as coisas florescem, da maneira mais clara, nas vias de uma problemática essencialmente hedonista (LACAN, 1986, p. 261). É em contraposição a este hedonismo que, para Lacan (1986, p. 261), devemos atentar à seguinte pergunta: “a articulação por Freud do princípio do prazer não nos traz um ganho, um benefício, um benefício de conhecimentos e de clareza?”. Trata-se da constatação de que não podemos tocar este Bem, que é das Ding, precisamente por uma exigência do prazer, afinal, “o princípio do prazer nos é efetivamente dado como tendo um modo de funcionamento que é justamente de evitar o excesso, o prazer em demasia” (ibid., 1986, p. 67). E se das Ding não é outra coisa senão o excesso absoluto, então “o que nos governa no caminho de nosso prazer não é nenhum Bem supremo” (ibid., p. 114). Ao contrário do que uma concepção moralista poderia pressupor, no limite de uma reflexão ética da psicanálise, o Bem se nos apresenta, paradoxalmente, como o mal, e o prazer que deveria servir-lhe de critério nos aparece como sua barreira. O prazer é o limite além do qual somos confrontados com a aniquilação do eu, pois, como vimos, a Coisa expressa a fronteira da alteridade, o vácuo que nos diferencia do outro, a tal ponto que sua assimilação implicaria invariavelmente no esgotamento angustiante do eixo de identidades sobre o qual se sustenta o moralismo tradicional.

84 Eis o dilema da modernidade: caminhamos, invariavelmente, à sombra de nosso mal-estar. Uma vez cingidos pelo significante, resta-nos reencontrar o objeto. É justamente devido à impossibilidade desse encontro que somos desejo. Ocorre que, se não podemos reencontrar das Ding, porque nada garante nem normatiza a via de acesso ao Bem, e porque esse nos é interditado, podemos, todavia, encontrar die Sache, se bem que a encontremos através de das Wort. Neste sentido, Lacan (1986, p. 78) pôde declarar que “Die Sache ist das Wort des Dinges”: a coisa é a palavra da Coisa. Ora, sendo essa Sache “produto da indústria ou da ação humana enquanto governada pela linguagem” (ibid., 1986, p. 58), se dissermos que a Wort da Sache, a palavra da coisa, é um bem, encontramos uma forma de legitimar a busca por das Ding: basta que nos contentemos com um bem, ou, se isto não for o bastante, com um serviço de bens, o que nos situa numa encruzilhada fundamental.

Não é pouco o que vislumbramos nesta virada do Bem ao serviço de bens. Em primeiro lugar, será preciso atentar à “evolução da história a fim de desmistificar a perspectiva platônica e aristotélica do bem, e mesmo do Bem supremo, e levá-lo para o nível da economia dos bens” (ibid., 1986, p. 256). E se Lacan não nos diz claramente no texto as razões desta evolução, não obstante, ele nos indica em qual contexto devemos procurá-las:

Não reconhecer a filiação ou a paternidade cultural que há entre Freud e uma certa virada do pensamento, manifesta nesse ponto de fratura que se situa em torno do século XVI, mas que prolonga poderosamente suas repercussões até o fim do século XVII, equivale a desconhecer totalmente a que tipo de problemas a interrogação freudiana se dirige (LACAN, 1986, p. 117).

Embora Lacan não nos indique qual é o ponto de fratura, seguramente é no nascimento da modernidade que devemos pensar, especificamente, em relação a uma reflexão ética, no momento histórico em que a ética do Bem supremo cede lugar a uma economia dos bens156. Neste contexto, não deixam de serem primordiais as “conquistas” sociais, fruto das revoltas e revoluções que assolaram a Europa no período em questão, que marcaram a luta pelos “direitos elementares” pretensamente fundados no ilustre mandamento cristão: amarás o próximo! Como afirma Lacan (1986, p. 230), “somos solidários de tudo o que repousa sobre essa imagem do outro enquanto nosso

156 Sem dúvida, existem outros fatores históricos primordiais a serem lembrados. Por exemplo, a

Reforma, encabeçada pela figura emblemática de Martinho Lutero (cf., p. ex., o “Seminário de 13 de janeiro de 1960”. In: LACAN, 1986, pp. 105-19), que será o ingrediente principal de uma “ética protestante” (WEBER, 2004).

85 semelhante, na similitude que temos com nosso eu e com tudo que nos situa no registro do imaginário”. O psicanalista se refere à identificação com o outro, esta figura sobre a qual hesitamos em atentar justamente porque ela reflete o nosso eu, em suma, porque é “a imagem sobre a qual formamo-nos como eu” (1986, p. 230). Para Lacan é aí que desvendamos a raiz da concepção ética que formaliza o imperativo altruísta do bem do outro e, no fim das contas, da felicidade geral, em detrimento do Soberano.

Este “imperativo” deve ser tomado literalmente. Em consonância a ele se torna notória uma ética que não apenas impõe (mesmo e, sobretudo, ao custo de muito sangue derramado, como aconteceu e acontece nas revoluções) a igualdade e a liberdade, mas também que pressupõe uma realidade estruturada como uma linguagem, vazia de significado e plena de significantes157. Em segundo lugar, ética que, surgindo na depreciação da autoridade paterna, visa à economia de bens em nome da unidade, da coesão social, da fraternidade, enfim, da homogeneidade que, por sua vez, requer um cálculo da maior quantidade de bem para a maior coletividade. Tais características configurarão o contexto do que Lacan chamará de conversão utilitarista158. Conversão

que, segundo o psicanalista, data do século XIX, não obstante deva ser rastreada (para ser mais bem compreendida) na análise do contexto histórico ao qual nos referimos.

Retornemos àquela “evolução da história a fim de desmistificar a perspectiva platônica e aristotélica do bem, e mesmo do Bem supremo, e levá-lo para o nível da economia dos bens” (LACAN, 1986, p. 256). Agora sabemos que este é o nível do cálculo utilitarista159, o qual não virá exatamente para substituir a ética tradicional do trabalho e do sacrifício, o discurso de um mestre160 e sim para incorporá-los. Como dissemos, haverá ainda um grande dispêndio de energia para edificar e suportar a figura do Pai e a moral do mestre, algo que não deixará de ter suas conseqüências funestas à sociedade, porquanto nada nos impedirá de encarnar este Pai, cruel e insaciável, ao qual é concedido o direito restrito de gozar do objeto. Por outro lado, como uma solução aos

157 Cf. “A determinação utilitária e o gozo”. In: TEIXEIRA, A. O topos ética da psicanálise, 1999, pp.

165-82.

158 “O que ocorreu no início do século XIX foi a conversão, ou reversão, utilitarista. Podemos especificar

esse momento, por certo totalmente condicionado historicamente, de um declínio radical da função do mestre, a qual evidentemente rege toda a reflexão aristotélica e determina sua duração através dos tempos” (LACAN, 1986, p. 21).

159 Sigamos a célebre formulação utilitarista: “o fim de qualquer atividade humana é „a maior felicidade

possível, compartilhada pelo maior número de pessoas‟: fórmula enunciada primeiramente por Cesare Beccaria (Dei diritti e delle pene, 1764, § 3) e aceita por Bentham e por todos os utilitaristas ingleses” (ABBAGNANO, 1999, p. 986).

160 Como se vê, os efeitos de um “discurso do mestre”, apresentado por Lacan em seu Seminário 17, já

são analisados no Seminário sobre a ética. Sobre a teoria lacaniana dos quatro discursos cf., p. ex., FINK, 1998, p. 160-62.

86 impasses oriundos desta soberania paterna que, em sua autoridade, centraliza todo o gozo para si, o utilitarismo aparecerá garantindo a partilha dos bens. Afinal, a ética utilitarista é eminentemente uma ética da coletividade, a qual, como tal, requer uma política de administração do bem comum ou, para usar os termos lacanianos, uma política do serviço dos bens.

É do fato da entrada da felicidade na política que a questão da felicidade não apresenta, para nós, como possível a solução aristotélica, e que a etapa prévia se situa no nível da satisfação das necessidades para todos os homens. Enquanto que Aristóteles faz uma escolha entre os bens que ele oferece ao mestre e senhor, e lhe diz que apenas alguns desses bens são dignos de sua devoção, ou seja, de contemplação, a dialética do mestre e do senhor é, para nós, desvalorizada, insisto, por razões históricas, que provém do momento histórico que vivemos, e que se expressa na política pela fórmula seguinte – Não poderia haver satisfação de ninguém sem a satisfação

de todos (LACAN, 1986, p. 338).

Esta reversão utilitarista é plena de conseqüências para a ética da psicanálise. Em primeiro lugar, é notório que a satisfação do sujeito ocorre à condição sine qua non de realizar a satisfação geral. Parte-se, portanto, de uma coletividade irredutível a seus membros, isso é, de um grupo de indivíduos modelados por uma forma e representados por um interesse únicos; enfim, não um conjunto de sujeitos, mas uma quantidade numérica. Afinal, a quantificação estatística é fundamental ao cálculo da máxima felicidade para o máximo de indivíduos. Neste sentido, também os bens devem ser homogêneos, pois o utilitarismo é solidário de certo altruísmo ao nível do qual o egoísmo humano poderá se satisfazer161. Assim, se os sujeitos são esvaziados de sua singularidade, também os bens aparecem como entidades verbais cujo ser se reduz às suas enunciações, quantificáveis segundo as determinações de uma ciência, estatística, econômica, social etc. Como afirma Lacan (1986, p. 276): “no discurso da comunidade, do bem geral, lidamos com os efeitos de um discurso da ciência onde se mostra pela primeira vez desvelada a potência do significante como tal”. Ou seja, para este mundo, cuja realidade é “ex-posta” pela ciência como desprovida de sentido, inventamos um bem, ou um serviço de bens, que só existem enquanto variáveis e moldáveis segundo os interesses da estrutura em que eles, assim como os indivíduos que os produzem e consomem, são reduzíveis a números. É neste sentido que Lacan (1986, p. 269)

161 “Nesse nível da homogeneidade, a lei da utilidade, como que implicando sua repartição pela maioria,

se impõe por si como uma forma que, efetivamente, se inova. Poderio cativante cuja decisão se denota suficientemente a nossos olhos de analistas quando a chamamos de filantropia (...)” (LACAN, 1986, p. 230).

87 retomará a “Teoria da Ficção” de J. Bentham, “o homem que aborda a questão no nível do significante”, para emprestar daí o caráter ficcional do real162:

A respeito de todas as instituições, mas no que elas têm de fictício, ou seja profundamente verbal, sua pesquisa consiste não em reduzir a nada todos esses direitos múltiplos, incoerentes, contraditórios cuja jurisprudência inglesa lhes dá o exemplo, mas, pelo contrário, a partir do artifício simbólico desses termos, eles também criadores de textos, em ver o que há em tudo isso que possa servir para alguma coisa, isto é, para constituir justamente o objeto da partilha (ibid.).

Daí, não parece que a ética utilitarista responde aos anseios de uma modernidade que não mais pode depositar suas esperanças no discurso do mestre? Certamente, longe de serem resolvidas, é aí que as questões se multiplicam. Há, primeiramente, esta necessidade, de “ver o que há em tudo isso que possa servir para alguma coisa”, que nada mais anuncia além do cálculo utilitarista cuja meta é quantificar os objetos e relações a fim de dissipar o desperdício. Ora, considerando que das Ding é, exatamente, um resto no Real, esta Coisa aí está para fazer a falha do sistema: no significante e no discurso utilitarista. E o que Lacan nos mostra é que se trata da mesma falha: o resto que sobra (do cálculo) como inútil não é diferente do resto opaco ao redor do qual a estrutura significante vai girar. No cálculo, o empenho incansável de catalogação de nossas experiências de prazer e de dor é índice da falha, do resíduo que exige, numa lógica compulsiva, mais esforços de catalogação. Ou seja, é preciso que esta tentativa de domar um desperdício, aquilo que não tem utilidade, fracasse para que este desperdício possa vir à tona e nos levar a uma nova tentativa (fracassada) de elidi-lo. Assim, tanto quanto o desejo, o cálculo acaba por insistir apenas na mesma proporção em que sempre há um resto, o que o impulsiona a um mais-além: visto que essa falta não é e nem pode ser efetivamente preenchida, pois, conquanto esperamos das Ding, encontramos die

Sache, vemo-nos, então, invariavelmente remetidos à economia de um serviço de bens. Doravante, se esse serviço não satisfaz uma falta particular, nesta insuficiência, nesta dor, experimentamos um certo prazer, e, sem saber ao certo o porquê, comprazemo-nos à sua repetição. Como afirma Lacan (1986, p. 262): “A repetição da

162 Como nos mostra Miller (1996), é através da ficção que um discurso “supera” o realismo sem perder

sua efetividade, quer dizer, sem incorrer no mundo das fábulas: a ficção se sabe enquanto ente puramente lingüístico, ao passo que a fábula, apesar de igualmente irreal, aparece-nos pretendendo extravagar o âmbito meramente fictício em direção à crença, à superstição e, em última instância, à realidade. Assim, enquanto a fábula, tão logo suponha um correlato real, encontra seu desvanecimento, a ficção, cujo ser se reduz à sua enunciação, pode perseverar à margem do real. O fato é que, como afirma Miller (1996, p. 49): “O utilitarismo não é um nominalismo: não se trata de dissipar as ficções, mas de dominá-las, porque as ficções agem”. Assim: “As entidades fictícias mobilizam as entidades reais, as distribuem, as organizam: falar é legislar, isto é, fazer agir coisas que não existem”.

88 necessidade (besoin), como uma certa pessoa articulou, só funciona, na psicologia freudiana, como ocasião da necessidade de repetição, ou mais exatamente, da compulsão de repetição”. O fato é que esta experiência é eminentemente inconsciente. Aí já estamos à margem que nos separa da Coisa, e não está mais em questão o cálculo utilitarista, feito para atender à satisfação de uma necessidade qualquer, mas não da pulsão. Eis como um gozo barrado vai se apresentando no Seminário 7.

Problema do gozo, visto que ele se encontra como que soterrado num campo central, com aspectos de inacessibilidade, de obscuridade e de opacidade, num campo cingido por uma barreira que torna seu acesso mais do que difícil ao sujeito, inacessível, talvez, uma vez que o gozo se apresenta não pura e simplesmente como a satisfação de uma necessidade, mas como a satisfação de uma pulsão, no sentido em que esse termo necessita a elaboração complexa que tento aqui articular para vocês (LACAN, 1986, p. 247-48).

Atentemos, à luz de tais palavras, aos impasses éticos aos quais o utilitarismo nos encaminha, especialmente, à dúbia relação que estabelecemos com o bem. Como nós queremos que a coisa do circuito dos bens seja a Coisa, isso é, que o bem seja o Bem, não obstante isso seja impossível; e como erigimos uma barreira ao acesso da Coisa no nível do princípio prazer; vivemos, por fim, a paradoxal relação de partilha e privação com o bem. Quer dizer, no nível do que julgamos ser a satisfação de uma necessidade qualquer, lançamo-nos à acumulação compulsiva dos bens (ainda que chamemos o mais supérfluo de necessário) sem nunca tocar o Bem efetivamente, pois o que afirmamos ser o objeto de uma necessidade é, no fundo, o do desejo. Ao mesmo tempo, dadas as exigências do princípio do prazer, que são, no fundo, exigências de renúncia ao prazer, sustentamos uma relação privativa com os mesmos bens e nos proibimos, a nós e ao outro, de tocá-lo. De um jeito ou de outro, mantemos este Bem sempre a certa distância, barrado. Este o sentido preciso das palavras de Lacan (1986, p. 278): “o bem, não toque nisso”. Também o sentido do “excesso” que caracteriza o gozo impossível anunciado no Seminário 7.

Excesso porque o resto que sobra do cálculo utilitarista está no além do prazer, no campo transcendental onde tal resto se revela como vazio. Seja na acumulação, seja na privação, o excesso é de falta, de negatividade. Não obstante, tal excesso não deixa de ser gozado. O fato de podermos chamar de “impossível” este gozo não implica que, na prática, ele o seja. Em certo sentido, o gozo é não só possível, mas “sensível” à carne – a clínica, o sintoma e o acting out aí estão para prová-lo – precisamente na impossibilidade de sua negatividade. E o cálculo utilitarista dos bens, da evitação do

89 desperdício, acaba sendo, paradoxalmente, o modo necessário de presentificar o resto que se caracteriza como gozo. Quer dizer, no fim das contas, a lógica utilitarista, precisamente pelo gesto através do qual pretende negar o resto, o desperdício, acaba por se tornar um meio privilegiado de trazer à tona este gozo do excesso163.

Há, portanto, dois níveis que aqui se articulam, e que nos remetem a uma mesma forma de gozo mantida pela sociedade cujo trabalho, a duras penas, sustenta a moral do mestre: “No início há a invenção produtora, ou seja, o fato de o homem – e por que só ele? – pôr-se a trançar algo”, mas – prossegue Lacan (1986, p. 268), sem deixar de nos referir a Marx – o pano é fabricado não para cobrir aquele corpo, e sim um corpo. Não se trata de produção natural, e sim humana, sujeita à história, pois o pano “é valor de uso, de tempo, ele é reserva de necessidade, ele está lá precisando-se ou não dele, e é em torno desse pano que se organiza toda uma dialética de rivalidade e partilha, na qual vão-se constituir as necessidades”. Ocorre que, antes de passarmos ao ciclo do capitalismo selvagem, quer dizer, “antes de o sujeito ter introduzido a cabeça nos furos do pano” (ibid., p. 269), os bens devem se organizar segundo a lei da máxima utilidade