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REAL, TRANSCENDENTAL E CARNAL

O REAL, O TRANSCENDENTAL E O CARNAL

5. O sonho americano

A certa altura do Seminário 7 Lacan (1986, pp. 225-42) anuncia o “gozo da transgressão”. Trata-se muito mais de um anúncio do que, efetivamente, de uma análise da questão, tal é a escassez de momentos em que, de fato, o psicanalista expõe com clareza e objetividade o que é este gozo. Até que chega o momento fatídico no qual Lacan (ibid., p. 230) nos propõe uma pergunta crucial: “Em direção a que meta avança o gozo para ter de se apoiar na transgressão a fim de ter êxito?”. E arremata: “Deixo no momento tais questões em aberto” – estas e outras, completaríamos, ressaltando aquela que, no momento, mais nos interessa: o que é esta transgressão, ou melhor, o que é realmente transgredido? Certamente, a lei, dir-se-á sem, contudo, esclarecer: qual lei?

Questão complicada, pois Lacan não atentou a uma especificação mais rigorosa a seus leitores e se utilizou, pelo menos, de três significados do termo, distinguíveis um do outro, no Seminário 7: A) lei cristã (1986, p. 83); B) lei moral (ibid., p. 28); e C) lei do significante (ibid., p. 101). Se Lacan propôs uma distinção, como efetivamente parece ser o caso em um ou outro momento, não há como sabê-lo na maior parte das vezes. Assim, não é impossível nos depararmos com um trecho em que diferenciar A de C não é fácil (ibid., p. 230), e é freqüente o uso do mesmo termo (“lei”) para denotar A e B, ao mesmo tempo (ibid., p. 97). Tranqüilamente, porém, o mais custoso é distinguir B de C, afinal de contas, se B pode ser equiparado a A, é impensável que o aproximemos de C. É necessário saber, dentre estes três significados, de que modo a lei da interdição oscila, como que por um passe de mágica, à Lei do significante.

Dessa oscilação temos um exemplo sintomático no Seminário 7: “É a Lei a Coisa? De modo algum. Mas eu não conheci a Coisa senão pela Lei. Porque não teria idéia da concupiscência se a Lei não dissesse – Não cobiçarás” (1986, p. 101). Ora, apesar do grafo “Lei”, e de nos sentirmos propensos a ler no início o significante, o que está em questão neste “não cobiçarás” é a interdição que, como vimos, nos situa na dialética da acumulação e da privação. Como podemos sabê-lo? Voltemos a Lacan (1986, p. 223): “se a lei moral é suscetível de desempenhar algum papel aqui, é precisamente o de servir de apoio a esse gozo, de fazer com que o pecado se torne o que são Paulo chama desmesuradamente de pecador”. Reparemos: nas duas passagens Lacan nos remete ao pecado, mas, flagrando o lapso lacaniano, lemos, na primeira, a Lei, e na outra, a lei. Nada deduzimos deste lapso a não ser aquilo que já sabemos: se há pecado, é porque há objeto interditado. Trata-se, pois, da proibição à qual o neurótico se

100 vê submetido, situação na qual a Coisa é nomeada pela lei apenas para estabelecer, à certa distância, suficientemente próxima e afastada, a garantia de um gozo impossível.

Eis porque insistimos que, na exposição lacaniana, há uma ambigüidade explícita (e em alguns momentos proposital) na determinação de alguns conceitos essenciais às questões éticas da psicanálise. Já dissemos que um dos pontos altos desta ambigüidade se encontra na inscrição da lei, à notação da qual Lacan (na pena de seu editor) parece não se decidir entre o uso, ou não, da maiúscula. Nós mostramos que há uma diferença entre a lei da interdição e a Lei do significante, embora ambas estejam escritas na mesma pauta musical172. Lembrando que os tempos edipianos nada têm de diacrônicos, vimos que a primeira lei está relacionada ao “segundo tempo” do complexo de Édipo, ao Pai imaginário, patriarca da horda e senhor do gozo, no luto do qual herdamos dispositivos de normatização e socialização. Por sua vez, a Lei do significante se atualiza num “terceiro tempo”, está relacionada ao fracasso do pai real em nos determinar o objeto adequado do gozo, donde nos confrontamos com o rochedo da castração. A noção freudiana de supereu é classicamente pensada nas exigências de renúncia ao gozo que, provindas daquele Pai imaginário interiorizado, se presentificam, por exemplo, na dialética da privação e da acumulação, nas exigências da ética protestante, enfim, naquele gozo puritano de que falamos. De fato, tais exigências de renúncia e sacrifício podem ser transgredidas (ao menos imaginariamente transgredidas), o que não deixa de ter suas conseqüências funestas (e ansiadas pelo neurótico) de sofrimento e culpa, como nos mostrou Freud em O mal-estar na

civilização. Contudo, se esta transgressão pressupõe (e se confronta com) a lei, a interdição de um objeto (o bem, a mãe), é preciso perguntar: será este objeto e esta lei o que está em questão quando agora Lacan anuncia o gozo transgressor no Seminário 7?

Recapitulemos a ordem transcendental da Lei: ela não incide sobre o objeto em si, mas sobre a pura mudança do objeto, sobre o que o desejo deve desejar, isso é, o que um desejo deve ser. Esse desejo, no curso de sua “purificação”, confrontar-se-á com o vazio de das Ding, à inadequação entre o objeto desde sempre perdido e os objetos empíricos que se apresentam para substituí-lo nas fantasias. Afinal, se Lacan (1986, p. 89) define a Coisa não apenas como noumenon, mas como causa noumenon, é porque só um desejo purificado estará à altura do objeto-causa dado no campo transcendental.

172 “Talvez isso nos traga alguma clareza, e não teremos a impressão de tocar duas linhas escritas na

mesma pauta musical, quando levamos em conta, por um lado, o pai como castrador e, por outro lado, o pai como origem do supereu” (LACAN, 1986, p. 355)

101 Este passo requer um rápido parêntese. Sabemos que, em relação ao que será definido como objeto-causa do desejo, no esquema lacaniano, haverá uma transição da função de das Ding ao “objet petit a”, o pequeno a como é conhecido, conceito central do referido esquema sobre o qual, ainda que não abordado neste trabalho, cabe uma observação. Em relação a uma referência kantiana, Bass (2001, p. 48) afirmará: “O que torna possível o desejo, o que permite à faculdade de desejar se exercer, o que „causa‟ verdadeiramente o desejo, é o objeto a, entendido estritamente como objeto transcendental”. Analogamente, também para Zizek (1993, p. 18), a “distinção entre Coisa-em-si [Ding-an-sich] e o objeto transcendental corresponde perfeitamente à distinção lacaniana entre o Real enquanto Ding e o objeto pequeno a”. Há de se salientar, todavia, que, embora apareça na primeira edição da CRP com uma definição própria173, o “objeto transcendental”, na segunda edição, é tomado por Kant (CRP, B63) como sinônimo da “coisa-em-si”. Isso significa que, se seguirmos os termos kantianos, tal como procede o próprio Lacan, a distinção entre das Ding e petit a se relativiza na mesma proporção em que os problemas inerentes à primeira passam a ser, também, inerentes ao segundo. Compreendemos, então, as razões pelas quais não nos interessa seguir adiante do Seminário 7 (até o Seminário 11, por exemplo, no qual o objet petit a é efetivamente elaborado) – ao menos não sem antes analisar as implicações dos empréstimos conceituais que Lacan faz, principalmente, de Kant e Heidegger.

Passemos, então, ao que importa. A noção lacaniana de objeto deve exceder o campo fenomênico, tal como o exige a instância ética bem conhecida pelos filósofos: a da lei kantiana do dever. “É aí que devemos ver, com Kant, o ponto de mira, de visada, de convergência segundo o qual uma ação, que qualificaremos de moral, apresentar-se- á, e veremos o quão paradoxalmente ela se apresenta, ela mesma, como sendo a regra de um certo Gute” (LACAN, 1986, p. 68). Assim, completa Lacan (1986, p. 89), “para além do princípio do prazer, delineia-se o Gute, das Ding”. Doravante, tanto quanto o imperativo categórico norteará a conduta conforme o sujeito kantiano abdicar de suas motivações empíricas, os objetos patológicos; também o desejo, face à deriva metonímica da permuta objetal, deverá desejar a Lei transcendental que, neste instante, não se distingue da Lei do significante. O desejo, como pura mudança, estaria a salvo de sua alienação ao objeto/outro imaginário na via da Lei do pai, o “Nome-do-Pai”,

102 ancorado em um significante purificado de empiricidade, o “falo174”. Em termos muito

sucintos, temos aí a simbolização da impossibilidade de adequação dos objetos empíricos à demanda do desejo mediante sua articulação, no registro simbólico, à Lei, através da qual o objeto se apresenta no campo da Coisa como pura negatividade, permitindo o reconhecimento e a socialização de um desejo que poderá, então, desvelar- se como falta-a-ser.

Porém, o fato é que o recurso à transcendentalidade não está imune a um regime no qual, em meio ao vazio da Lei, apático em relação à fenomenalidade que o cerca, o sujeito se entrega ao esgotamento da empiricidade que, justamente por mirar um campo impossível, desdobra-se em uma compulsão de purificação, por assim dizer. Encontra- se, então, uma satisfação que dispensa a fixação no imaginário em função de uma tentativa de revogação das qualidades objetais – tentativa que, sendo fadada ao fracasso, considerando a impossibilidade do Real, deve renovar-se incessantemente, repetir-se compulsoriamente. Ora, se o sujeito pode renovar esta tentativa, diante da iminência empírica de seu fracasso, é porque se apóia, justamente, no saber de seu caráter ficcional, quer dizer, no seu desmentido.

É, pois, à cena perversa que aqui queremos fazer alusão. Mas a análise não avançará caso não estejamos dispostos a entender, ainda que sucintamente, como Lacan pôde “perverter” a ética kantiana, movimento que, como se sabe, é largamente explorado no célebre “Kant com Sade”, texto no qual lemos a cartada final de Lacan na encruzilhada à qual fazemos referência175.

Cabe lembrar, antes de tudo, que o cerne desse texto já é analisado no Seminário

7, no qual Lacan (1986, p. 96) nos diz que, “de modo extremo, o mundo sadista é concebível – mesmo que seja seu avesso e sua caricatura – como uma das efetivações possíveis do mundo governado por uma ética radical, pela ética kantiana tal como ela se

174 “Todos sabem que a castração está aí no horizonte e, evidentemente, jamais se produz em lugar algum.

O que se efetua está em relação com o fato de que desse órgão, desse significante, o homenzinho é um suporte sobretudo lastimável, e que ele aparece, antes de mais nada, sobretudo privado dele”. Eis o modo pelo qual Lacan (1986, p. 356) retoma o falo ainda no Seminário 7 sem, contudo, nos advertir claramente que “o falo é o significante que dá corpo ao gozo na ordem simbólica, o que não impede que não capture tudo o que é da ordem do gozo” (MILLER, 2005, p. 240).

175“Kant com Sade foi escrito para mostrar em que o desejo não se reduz ao gozo e que a libido freudiana

demanda, para ser transcrita no simbólico, dois conceitos: gozo e desejo. Por isso ele [Lacan] enfatiza todos os traços pelos quais a perversão não é histeria, uma vez que a histeria é dominada pelo desejo do Outro, fato que a dispõe tão bem à lógica da intersubjetividade, ao passo que a perversão é dominada pelo gozo do Outro” (MILLER, 2005, p. 239).

103 inscreve em 1788”. Se pularmos uma análise já feita antes por outros autores176,

diremos que o ponto essencial aqui é a prerrogativa do dever de adequação do ato ao formalismo da Lei em detrimento de quaisquer sentimentos por objetos sensíveis. A esse respeito, Lacan (ibid., p. 97), atônito, nos lembra a ressalva kantiana em relação ao único correlato sentimental da Lei, a dor, e se permite concluir: “Kant tem a mesma opinião de Sade. Pois, para atingir das Ding, para abrir todas as comportas do desejo, o que Sade nos mostra no horizonte? Essencialmente a dor177”. Aliás, se cabe um parêntese, esta resistência à dor aliada à quase indestrutibilidade do corpo das vítimas (dos romances) de Sade, as quais não se degradam “nem mesmo em seu caráter de atração voluptosa” (ibid., p. 238), só não são mais importantes, para evidenciar a fronteira entre o tocável e o intocável em Kant e Sade, do que “a função da beleza: barreira extrema que proíbe o acesso a um horror fundamental178” (LACAN, 1966, p. 776). Mas se a dor, como condição de realização da Lei, e o belo, como a última barreira que nos separa do Real de das Ding, são pontos de referência da aproximação entre Lacan, Kant e Sade, eles não são os únicos. Sabemos o que permite a Lacan pensar Sade como a verdade de Kant, mesmo de um modo radicalmente avesso, como afirma Lacan (1986, p. 96):

Sade demonstra, com muita coerência, que, uma vez universalizada essa lei, se ela confere aos libertinos a livre disposição de todas as mulheres indistintamente, consentido elas ou não, libera-as inversamente de todos os deveres que uma sociedade civilizada lhes impõe em suas relações conjugais, matrimoniais e outras.

Assim, Kant pode nos ofertar a premissa suprema – o único ato necessária e universalmente moral é aquele realizado em função do dever por ele próprio, tão- somente no reconhecimento da Lei, por tal reconhecimento e em vista dele – mas é Sade

176 Além dos que já citamos, não poderíamos esquecer que uma aproximação entre o imperativo kantiano

e Sade já foi feita por Adorno e Horkheimer, na Dialética do Esclarecimento. Também H. Arendt, em seu

Relato sobre a banalidade do mal (de 1963) toca na questão.

177 Daí Miller (2005, p. 156) poderá afirmar: “A introdução sadiana do gozo foi feita de modo a nos

conduzir para além do princípio do prazer e para nos fazer distinguir prazer e gozo, já que essa introdução insere a dor, oposta ao prazer, mas vizinha, amiga, eventual meio de gozo”.

178 Não discutiremos (ao menos por enquanto) a função do Belo como barreira à Coisa. Remetamo-nos à

análise de Bass (2001) e, particularmente, a uma das passagens de seu livro: “Aí, sobre esta borda horrenda do limite, tem lugar a correlação do nada do significante e do nada de sujeito, correlação que define precisamente a experiência da angústia. É desta angústia que o belo preserva o sujeito, enquanto que o mesmo movimento que havia conduzido ao belo teria transportado-o até esta angústia. É por isso que Lacan diz do belo que ele é „a barreira extrema que proíbe o acesso a um horror fundamental‟. Esta barreira, este parafragma, é, no duplo sentido desta expressão, a defesa do desejo puro”.

104 quem nos permite daí auferir a célebre máxima da qual Lacan se tornou arauto179.

Máxima que, por ser proferida pela “boca do Outro”, desvela o lugar de um objeto escamoteado na articulação kantiana, a qual distinguiria apenas a Lei e aquele que a ela se sujeita, mas não o terceiro termo, objeto da Lei, seu executor180. A “falha” de Kant é, todavia, inteligível à visada psicanalítica181. Assumir que o sujeito, no fundo, é objeto, instrumento da Lei, é atentar contra aquilo que deveria ser garantido justamente pela identificação à Lei: a autonomia do agente, elemento indispensável tanto para Kant quanto para Sade. É por aí que Lacan chegará à conclusão de que o sadismo encontra no masoquismo sua verdade182. Quanto a isso, importa notar que o lugar deste objeto “advém do executor na experiência sádica, quando sua presença se resume, em última instância, a não ser mais do que seu instrumento” (LACAN, 1966, p. 773). Ora, se é um instrumento de gozo do Outro o que aí está em questão, podemos reaver a breve análise da perversão deixada incompleta no Capítulo anterior.

Recordemos que há uma cena na qual, mesmo pressupondo (saber) a Lei, o sujeito pode desmentir esse saber, momento em que o sujeito não apenas pode se situar como objeto de gozo do Outro, como também assumir o seu lugar e o saber sobre o gozo. Mas, acima de tudo, amplamente apoiados em análises já realizadas por outros autores, e considerando a encruzilhada lacaniana do final dos anos de 1950, dissemos que, nesta perversão, o desejo desaparecia vinculando-se ao significante puro para reaparecer como uma espécie de fetiche da Lei. Agora, podemos compreender como isto pode ser possível, nas palavras de Safatle (2006, p. 172, grifos do autor):

A hipótese aqui é a que a imanência entre a vontade e a Lei, ou ainda, entre gozo e a pura forma vazia da Lei, é o fantasma perverso por

179 “Emprestai-me a parte de vosso corpo que possa satisfazer-me um instante e gozai, se isto vos agrada,

da parte do meu que pode ser-vos agradável” (LACAN, 1986, p. 237, grifo do autor).

180Segundo Lacan (1966, p. 772), “veremos descobrir-se o terceiro termo que, no dizer de Kant, faltaria

na experiência moral. Trata-se do objeto, o qual, a fim de garanti-lo para a vontade no cumprimento da Lei, ele é obrigado a remeter ao impensável da Coisa-em-si”.

181 As aspas nesta “falha” devem ser tomadas rigorosamente. Em primeiro lugar, porque o próprio Lacan

não afirma que Kant é Sade, ou que o imperativo categórico é a perversão, não obstante possa haver uma relação profunda entre estes duplos. A crítica lacaniana requer uma análise mais ponderada não realizada neste trabalho. Há de se considerar, por exemplo, o que, em A religião dentro dos limites da simples

razão, Kant (1984, pp. 271-95) afirma sobre a perversão, tal como o ressalta Walker (Kant, 1999, p. 29): “O que dizer de alguém que, por um extravagante senso de dever, pratica atos profundamente perversos? Não teria Kant de dizer que tais ações têm valor moral? Não”. Por outro lado, como argumenta David- Ménard (1996, pp. 214-22), ao articular Sade com Kant Lacan não se posiciona à margem do sistema de Kant, pois “Sade serve de revelador para uma dificuldade interna ao pensamento kantiano” (ibid., p. 219). Ainda assim, a autora não deixa de notar como “a leitura lacaniana de Kant repousa sobre uma simplificação, sobre um deslizamento” (ibid., p. 236).

182 Como já foi dito, simplificaremos ao máximo o tratamento de temas já desenvolvidos largamente por

outros autores – como é o caso deste (cf., p. ex. SAFATLE, 2006, pp. 181-88) – e que não compõem o objeto principal de nossa Tese.

105 excelência. Gozar da Lei é o desejo supremo do perverso. Ou seja, o gozo perverso não é exatamente o resultado da fixação no particularismo da Lei de um objeto sensível, como quis Kant. Ele é gozo da pura forma da Lei. Mesmo no caso da fixação fetichista não temos uma fixação de objeto.

Se não há objeto no fetichismo é porque, como vimos, trata-se do significante puro, no lugar do qual o desejo se coloca para atender a uma vontade cuja satisfação dar-se-á conforme o esgotamento da empiricidade dos objetos. Tudo se passa como se, na perversão sádica da Lei kantiana, estivesse em cena um outro supereu, cuja exigência é o dever de gozo e não de seu sacrifício. Não seria presunção se lembrássemos aqui, nas palavras de Lacan (1999, p. 167), “por trás do supereu paterno, um supereu materno ainda mais exigente, mais opressivo, mais devastador, mais insistente”, ao qual também no Seminário 7 o psicanalista faz referência183. Afinal, como vimos, a lei materna, que no segundo tempo do Édipo opera a determinação da posição de objeto de gozo do Outro assumida pela criança, não está longe da pretensão sádica de “abolir a lei do supereu do pai para assegurar o reino sem partilha da Lei da mãe” (BASS, 2001, p. 147). De todo modo, interessa-nos aqui atentar a uma conclusão. Se, sopesando o papel das noções de “respeito” e de “imperativo” no arcabouço kantiano, respeitar a Lei é agir de olhos vendados aos fenômenos, de modo a sustentar a forma do dever; e se devemos procurar no masoquismo, enquanto verdade do sadismo, a possibilidade da postura perversa justamente com apoio da Lei; então, nada nos impede de pensar aí o dever do sujeito que, em seus rituais masoquistas, pode ignorar a empiricidade “patológica” das coisas e gozar do mero esquema, da cena em si184. Desde então, nas palavras de Lacan

(1986, p. 364), “o Tu deves de Kant é substituído facilmente pela fantasia sadista do gozo erigido em imperativo – pura fantasia, é claro, e quase derrisória, mas que não exclui em nada a possibilidade de sua ereção em lei universal”. Em poucas palavras, isto significa que, no processo de cura, tal como encaminhada pela dialética da

183 Lacan está aí se aproveitando das análises de M. Klein: “É claro que desde então se deram alguns

passos para frente mostrando que havia um, nascido anteriormente, diz Melanie Klein, em retorsão das pulsões sádicas, embora ninguém seja capaz de justificar que se trate ainda do mesmo supereu” (LACAN, 1986, p. 354).

184 Tentamos uma simplificação da análise de Deleuze sobre Sacher-Masoch. Entre outras coisas, mostra-

nos o autor que, à satisfação do masoquista, não basta a encenação: é o humor e o contrato, constituintes desta encenação, que sustentam a subversão da Lei no mesmo compasso em que o sujeito pode reconhecê-la e reconhecer a autonomia alheia. Como afirma Deleuze (2009, p. 67), “é o contrato, feito com a mulher, que, num momento preciso e por um tempo determinado, confere a ela todos os direitos”. E encerra: “Pelo contrato, quer dizer, pelo ato mais racional e mais determinado no tempo, o masoquista reencontra regiões as mais míticas e eternas”. Mais adiante, sobre o humor: “Conhecemos todas as maneiras de infringir a lei por excesso de zelo: por uma escrupulosa aplicação pretende-se mostrar seu absurdo e alcançar, precisamente, a desordem que ela deveria proibir e coibir” (ibid., p. 88).

106 intersubjetividade, se perdem os critérios apropriados para distinguir quando o sujeito