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ONTOLOGIA, TRANSGRESSÃO E SEXUALIDADE

4. O rebordo do limite

Eis que, diante de certo limite, devemos propor um desvio abrupto cuja aparente desproporção, em face das questões lacanianas, deverá ser desfeita mais adiante. No beco sem saída em que nos encontramos é necessário pensar em um gesto que ponha o limite e que, com isso, vislumbre o ilimitado. Talvez em decorrência disso, em algum sentido, tal gesto deva ser chamado de transgressor. Se assim o chamarmos, porém, que esteja claro se tratar de uma transgressão sui generis, de uma afirmação que não afirma nada, ou melhor, que só afirma o nada. Essa, parece-nos, é essencialmente a função de uma oposição real. Aí está a razão pela qual precisamos distinguir, de um gesto perverso que pretende ultrapassar tais limites (apenas para reafirmá-los de um modo particular), o gesto transgressor que com eles se defronta sem tentar pervertê-los. Diante deste dilema nosso desvio pode bem ser traçado pela pena de Michel Foucault, mais mobilizada – é preciso dizer – pela crítica da dialética hegeliana e de seus desdobramentos na contemporaneidade do que pelo tema da transgressão, no início dos anos de 1960.

Em nenhum outro texto de Foucault deste período notamos uma convergência tão profunda de inquietações e propósitos, em relação ao que vimos ao redor da análise lacaniana da transgressão, quanto em seu Prefácio à transgressão227, publicado em 1963. Considerando que muito ainda se poderá dizer dos sentidos desta convergência, devemos marcar o fio condutor de nossos interesses na leitura deste texto. Sabemos que seu tom é dado no modo pelo qual uma linguagem literária, cujo objeto privilegiado é a

226 Ilusão transcendental “que influi sobre princípios cujo uso jamais se apóia na experiência (...) mas,

contra todas as advertências da Crítica, conduz-nos inteiramente para além do uso empírico das categorias e entretém-nos com a fantasmagoria de uma ampliação do entendimento puro” (KANT, CRP, B352).

227 Os textos dos Dits et Écrits (editados pela Gallimard, 1994) serão abreviados pelas iniciais “DE”

136 relação entre sexualidade e limite, antecipa, problematiza e abre as possibilidades de diferença, de criação, em um mundo para o qual a morte de Deus estampa a finitude do homem. Deste mosaico de inquietações, que em grande medida anunciam alguns dos principais temas da grande obra de 1966, As palavras e as coisas, queremos atestar a possibilidade de pensar uma transgressão à margem do gozo perverso.

Antes disso, sublinhemos o modo pelo qual Foucault (DE I, p.236) apresenta- nos uma modernidade irremediavelmente destinada à transgressão: “A morte de Deus não nos restitui a um mundo limitado e positivo, mas a um mundo que se desencadeia na experiência do limite, se faz e se desfaz no excesso que a transgride228”. Situando- nos no jogo inescapável do limite e da transgressão, o mundo em que mergulhamos com a morte de Deus parece estar em harmonia à necessidade de uma lógica dialética para pensarmos a relação entre o limite e o ilimitado. E, de fato, em alguns momentos, Foucault passa perto o bastante desta lógica a ponto de nos levar a crer que, pretendendo criticá-la, ele não faz mais do que reafirmá-la229. Porém, justamente neste momento supostamente dialético, Foucault denuncia uma “obstinação” que, a nós, não revela outra coisa senão a condição perversa do gesto que transgride o limite apenas para restituí-lo em um horizonte intransponível e radical:

O jogo dos limites e da transgressão parece ser regido por uma obstinação simples: a transgressão transpõe e não cessa de recomeçar a transpor uma linha que, atrás dela, imediatamente se fecha de novo em um movimento de tênue memória, recuando então novamente para o horizonte do intransponível. Mas esse jogo vai além de colocar em ação tais elementos: ele os situa em uma incerteza, em certezas logo invertidas nas quais o pensamento rapidamente se embaraça por querer apreendê-las (FOUCAULT, DE I, p. 236-37).

228 A despeito de sua proximidade, há uma distinção fundamental entre este “excesso que transgride” e o

excesso do gozo com que nos defrontamos na Capítulo anterior. O segundo é característico da visada que, justamente por não aceitar o desperdício, goza com o resto na repetição incessante do cálculo utilitarista dos bens; o outro se origina precisamente na crítica desta visada utilitarista, feita justamente pelo autor que é homenageado por Foucault, Bataille (1975, pp. 57-65). Este, por sua vez, em oposição ao discurso utilitarista, nos convida a pensar o excesso como uma “maldição” necessária, a ser aceita e elaborada pelo erotismo. Uma análise das convergências e divergências entre as concepções de transgressão em Foucault e em Bataille é, sem dúvida, uma falta que devemos admitir. Contudo, como veremos, Foucault se mostra ciente dos modos pelos quais o século XX se apropriou das categorias do gasto e do consumo e, enfim, de uma necessidade que “obedece a um regime cujas leis são irredutíveis a uma dialética da produção” (FOUCAULT, DE I, p. 248), embora possa ser compreendia no horizonte do biopoder, como veremos.

229Para J. Revel (2005, p. 75), o par limite/passagem que funda a noção de transgressão é, “por mais que

Foucault tenha recusado isso na época”, redutível a um esquema dialético. E, sem dúvida, para não sofrer tais críticas, Foucault poderia evitar, por exemplo, dizer que a transgressão está mais ligada ao limite “por uma relação em espiral que nenhuma simples infração pode extinguir” (DE I, p. 237). Isto, porém, não é suficiente para imputar a Foucault a linguagem dialética que ele, de fato, recusa, tal como mostraremos.

137 Como negar nestas palavras, neste jogo de certezas invertidas, a possibilidade de uma lógica dialética em ação? Por outro lado, em se tratando de uma crítica à dialética, como podemos sabê-lo, se Foucault não é claro o suficiente em dizê-lo? A saída é seguir em frente até nos depararmos com a condição foucaultiana: “Nada é negativo na transgressão. Ela afirma o ser limitado, afirma o ilimitado no qual ela se lança, abrindo- o pela primeira vez à existência” (DE I, p. 238). Mas, então, Foucault está nos propondo uma efetiva transgressão dos limites, um atravessamento cujo desfecho nós já prevemos na análise do gozo transgressor? Aqui encontramos a saída ao dilema deste gozo. Diz- nos Foucault: a transgressão é uma afirmação que nada tem de positivo, é o gesto que se esgota na tênue linha com que se defronta sem implicar a colonização do ilimitado, tão- somente a sua abertura. Como podemos compreender isto? Eis o que Foucault (ibid.) nos responde: “Talvez a filosofia contemporânea tenha inaugurado, descobrindo a possibilidade de uma afirmação não positiva, uma defasagem da qual se encontraria um único equivalente na descrição feita por Kant do nihil negativum e do nihil privativum”. Aí está, portanto, o motivo pelo qual a distinção entre a contradição e a oposição real – “distinção que certamente se considera ter aberto o avanço do pensamento crítico”, completa Foucault (ibid.) – é-nos essencial para pensarmos uma transgressão sem a potência que, nos termos da psicanálise lacaniana, não parece deixar outra saída além da perversão, a potência do negativo. De resto, que não se trata de reduzir a transgressão à mera acepção corrente de um simples gesto de separação. Antes, deveríamos pensar em contestação, em um gesto fulgurante que, mantendo a tensão dos opostos sem pender para um ou para o outro lado, realiza-se na afirmação da diferença entre o limite e o ilimitado: “Seria também necessário aliviar essa palavra de tudo o que pode lembrar o gesto do corte, ou o estabelecimento de uma separação ou a medida de um afastamento, e deixar apenas o que nela pode designar o ser da diferença” (FOUCAULT, DE I, p. 238).

Eis porque podemos falar de oposição real: o gesto transgressor afirma tão- somente a diferença, a tensão entre a fronteira e o seu mais-além. Trata-se, justamente, de evitar a transgressão que visa à instituição de uma lei ainda mais rigorosa, um novo limite ao qual já não interessaria mais vislumbrar o ilimitado, mas apenas a finitude da realidade humana. Sem dúvida, os termos da questão podem nos remeter à dialética, porque esta também afirma uma tensão. Porém, a tensão dialética requer o movimento que atravessa e coloniza o além-do-limite, ainda que para retornar à sua origem.

138 Exatamente por isso é preciso recusar resolutamente a visada dialética à concepção da transgressão – nem que para tanto sejamos levados a apelar, se preciso for, a Heráclito. Afinal, o Obscuro não concordaria em que “o limite e a transgressão devem um ao outro a densidade de seu ser” (FOUCAULT, DE I, p. 237)? Para nos atermos apenas ao que há de essencial no heraclitismo, diríamos que, na transgressão em que estamos interessados, só há ser em oposição ao seu contrário. O fundamental é notar que, se os nossos olhos nos permitem ver os limites serem ultrapassados (a noite atravessar o dia e este a noite, por exemplo), somente outro olhar nos permitiria ver que o Limite nunca é efetivamente atravessado, unicamente afirmado diante do Ilimitado. Neste sentido, poderíamos compreender como, sem ser dialético, Foucault pode afirmar que as fronteiras não existem fora de sua transgressão. Trata-se de pensar, contra uma dialética, contra a potência do negativo, uma ontologia da diferença em que as partes não existem senão em sua oposição.

Foucault nos mostra como, na modernidade, o único modo de se pensar uma ontologia é nesta espécie de tensão dos opostos, no ser da diferença. Para tanto, é preciso que a CRP não se transforme em uma antropologia – e talvez por isso ela deva se debater com um questionamento ontológico. Mas, ao mesmo tempo, para que tal questionamento não se renda ao negativo, ele deve limitar-se ao horizonte da crítica. Se esta posição é plausível, é por ela que podemos pensar em uma ontologia crítica. Só assim poderemos manter, no gesto transgressor, o ser da diferença: a posição do limite e, ao mesmo tempo, a abertura ao ilimitado. Nestes termos, a transgressão que nos interessa se revela no gesto que nos situa no rebordo do limite, na tênue superfície que o separa do ilimitado, e não no seu mero atravessamento. Lembremos a metáfora de Foucault (DE I, p. 237): “alguma coisa como o relâmpago na noite que, desde tempos imemoriais, oferece um ser denso e negro ao que ela nega, o ilumina por dentro e de alto a baixo, deve-lhe porém sua viva claridade”. Transgressão que, afinal, “perde-se no espaço que ela assinala com sua soberania e por fim se cala, tendo dado um nome ao obscuro”.

Pensemos esta transgressão de um modo particular, portanto. Por um lado, nem como gesto que efetivamente atravessa o limite com pretensões de colonização do ilimitado; nem, por outro, como gesto que, diante do limite, retrocede à finitude. Este, aliás, seria o motivo pelo qual Foucault se viu ante a tarefa de uma crítica daquele em quem se inspirou:

139 O próprio Kant acabou por fechar novamente essa abertura ao reduzir, no final das contas, toda interrogação crítica a uma questão antropológica; tal abertura sem dúvida foi depois entendida como prazo infinitamente concedido à metafísica, porque a dialética substituiu a questão do ser e do limite pelo jogo da contradição e da totalidade (FOUCAULT, DE I, p. 239).

Como se vê, não estamos longe da necessidade de distinguir, da afirmação que nada afirma, aquela outra que do nada pretende afirmar o ser e deste retornar ao nada, em um movimento dialético. Caso estejamos diante da distinção entre oposição real e contradição, ressaltemos que é à primeira que cabe a contestação do limite. Se, em seguida, a linguagem desta contestação fundou uma teoria do conhecimento, é porque perdeu sua verve crítica para se tornar a cicatriz da finitude do homem, enfim, porque “a análise pré-crítica do que é o homem em sua essência converte-se na analítica de tudo o que pode dar-se em geral à experiência do homem” (FOUCAULT, 1966, p. 352). Desde então, tudo pôde ser reduzido a uma realidade humana. E aí não se deve incluir, inclusive, a dimensão do Real, a qual se constituiu na ação do significante?

Aqui, recompondo nossos passos, devemos reafirmar a diferença entre dizer que a Coisa é determinada e dizer que é constituída ou pressuposta, seja pelo que for. Interrogando o estatuto deste Real para Lacan, fomos reconduzidos ao encontro com

das Ding tal como exposto por Freud em seu Projeto. Como vimos, Lacan lê este texto e se interessa pela precedência lógica do juízo de atribuição em face do de existência. Assim, em um texto de 1960, diz-nos Lacan (1966, p. 662-63): “O juízo de atribuição, ele [Freud] o concebe, pois, como instaurando-se pela simples Bejahung, com sua cadeia desenvolvendo uma primeira condensação ou sincretismo em que já se manifesta uma estrutura combinatória que nós mesmos ilustramos”. Sabemos a qual estrutura (do significante) se refere o psicanalista. A negação pela qual esta estrutura se forma é, por outro lado, algo que nos inquieta, assim como a Lacan (ibid.): “É aqui que se deveria retomar o problema da origem da negação”. Não o problema sobre o qual se debruça uma psicologia, mas aquele “a ser abordado no material da estrutura” (ibid.). Tal problema levou o psicanalista ao criacionismo. Aí está: “na origem era o Verbo”, diz- nos Lacan (1986, p. 252). Trata-se do material da estrutura, efetivamente, porque é na estrutura que tudo começa.

A estrutura é o vaso. Este é milenar, mas é somente à ciência moderna que ele é um objeto produzido do nada. Excluindo-o em seu interior, o vaso delimita o vazio, mas também delimita-se no vazio, do nada. A delimitação é uma negação que determina o

140 nada, o limite do objeto em face do ilimitado. Se este gesto pode ser dito transgressor, na medida em que transborda até o rebordo do limite, confronta e afirma o ilimitado; e se é somente assim que se faz ciência, na fabricação do nada, na tentativa de colonização significante do Real; então, não há como ignorar que, de algum modo, a modernidade é essencialmente transgressora. Não se trata de mera afirmação de efeito, mas também de nada que não esteja ao alcance do que já vimos. Ao afirmar que a modernidade é essencialmente transgressora seguimos não só Lacan e Foucault, mas também Heidegger. A ciência é a teoria do real, este nos diz. O real é o objeto determinado em detrimento do que, para os antigos, seria a pluralidade ilimitada dos perfis. Também seguimos Kant, pois se a proposição do limite é uma negação, um corte em face do ilimitado, o ser do limite está aí fundado. Somando as duas teses, resulta que a determinação do limite implica o ilimitado e, logo, já é mais do que o limite, é o além do limite. Em algum sentido, é a transgressão. O real invoca limites, e alguns limites são feitos para seres transgredidos. É preciso saber, porém, de qual tipo de transgressão se trata.

Que haja transgressão, no sentido do termo que expressa o vislumbre do ilimitado, isso parece caracterizar o próprio nascimento da modernidade. Mas, que esta transgressão constitua o ilimitado, é já um problema, porque implica em assumir que também o Real é constituído na determinação do limite. Problema de um gesto que goza na transgressão do limite porque aí constitui o Real, tem sob seu controle as possibilidades ilimitadas, a garantia da verdade, enfim, porquanto goza na dupla afirmação do empírico e do transcendental, da objetividade e da produção da realidade. Certamente, não é um problema àquele que se vê como instrumento da vontade de uma Ciência, como porta-voz de uma verdade que, para recusar o nada, deve, precisamente, afirmá-lo como limite do objeto. A este sujeito – que, agindo a qualquer custo em nome deste Outro-Ciência, se julga neutro, imparcial, desinteressado, e até mesmo apático – a realidade vige por si própria e é recolhida na objetividade. É garantida por uma Lei transcendental. Mas esta Lei que autoriza a produção objetiva da realidade é dada pela ciência. Assim, ainda que o desminta, o sujeito sabe que produz e dispõe o real ao mesmo tempo em que afirma recolhê-lo em sua pureza. Conclusão: se não podemos ignorar o fato de que a modernidade, na medida em que nasce e se atualiza na proposição e na ultrapassagem de seus limites (do real, por exemplo), é essencialmente transgressora, nada nos impede, todavia, de desmenti-lo. É assim que a transgressão se torna perversa e já não quer mais ser transgressão – e em certo sentido já não o é, uma

141 vez que atravessa o limite da Lei não para vislumbrar o ilimitado, mas apenas para poder afirmá-lo de modo radicalmente imperioso e limitado, finito. Afirmar o quê, afinal de contas? O saber. Doravante, “a finitude do homem se anuncia – e de forma imperiosa – na positividade do saber” (FOUCAULT, 1966, p. 324).

Antes de um julgamento apressado, reconheçamos o lugar de destaque que Foucault (1966, p. 388) confere a uma “psicanálise” que muito provavelmente ele gostaria de chamar de lacaniana: “nada é mais estranho à psicanálise que alguma coisa como uma teoria geral do homem ou uma antropologia”. Contudo, se deixarmos de lado a distância entre esta psicanálise da qual ele fala e a de Lacan; se ignorarmos a generalidade e certo descuidado por meio dos quais Foucault se refere à psicanálise; restará uma sutileza. Atentemos à razão pela qual o filósofo livra a psicanálise, seja ela qual for, das pretensões de uma antropologia ingênua, na medida em que ela “interroga não o próprio homem tal como pode aparecer nas ciências humanas, mas a região que torna possível, em geral, um saber sobre o homem” (ibid., p. 389). Ora, prossegue Foucault (ibid.), nesta interrogação “a psicanálise se serve da relação singular da transferência para descobrir, nos confins exteriores da representação, o Desejo, a Lei e a Morte que desenham, no extremo da linguagem e da prática analíticas, as figuras concretas da finitude”. Refém de sua própria descoberta, a psicanálise encontrou no inconsciente algo que a levou para além da antropologização e, no mesmo gesto, acabou por reenviá-la à sua própria finitude, a loucura. É o que afirma Foucault (1966, p. 386):

E esta Lei-Linguagem (ao mesmo tempo fala e sistema da fala) que a psicanálise se esforça por fazer falar, não é aquilo em que toda significação assuma uma origem mais longínqua que ela mesma, mas também aquilo cujo retorno é prometido no ato mesmo da análise? É bem verdade que nem esta Morte, nem este Desejo, nem esta Lei podem jamais encontrar-se no interior do saber que percorre em sua positividade o domínio empírico do homem; mas a razão disto é que designam as condições de possibilidade de todo saber sobre o homem. Aqui, devemos voltar ao vaso de Lacan – e nisso precisamos insistir: é com as mãos humanas que é feito o vaso ao redor (e) do nada, diz-nos o psicanalista. Sem dúvida, ele está atento ao diagnóstico heideggeriano e concorda em que a psicanálise nasce como sintoma do declínio da imago paterna, no confronto com a herança da modernidade. Ocorre que, para Lacan, a origem perdida da realidade não é a mãe nem nada que já existira de fato, não obstante esteja sempre por direito conosco, modernos. Na origem era o Verbo. Agora sabemos: até o início dos anos de 1960, tal colocação vem “forcluir” outra mais fundamental que nos explica como, para Lacan, o significante

142 constitui a Coisa: o Real só se faz presente na transgressão. Eis uma afirmação com a qual podemos nos habituar sem atentar o bastante ao significado deste “só”. Ele determina a condição necessária e suficiente do Real (repetimos: até o início dos anos de 1960), o qual é pressuposto e constituído se, e somente se, houver transgressão. E esta o que é senão ação do significante, do nada, ao redor do nada?

O “nada” de Lacan é aquele ao qual se refere Heidegger e cuja origem Sartre atribui ao movimento da consciência do qual o ponto de partida é o cogito pré-reflexivo. A esse respeito, Lacan parece ser mais fiel ao filósofo da Floresta Negra do que o autor de O ser e o nada, justamente porque resiste à tentação de reduzir a linguagem à consciência. É neste sentido que devemos compreender sua crítica ao pensamento evolucionista. “Uma evolução que se obrigue a deduzir de um processo contínuo o movimento ascendente que vai dar no ápice da consciência e do pensamento, implica forçosamente que essa consciência e esse pensamento estejam na origem” (LACAN, 1986, p. 253). Eis como Lacan responderia à acusação segundo a qual ele reduz o Real a “uma intenção criadora como suportada por uma pessoa” (ibid.). Contra essa redução Lacan nos diz que o nada é o Verbo, quer dizer, a linguagem.

Notemos, contudo, que não se trata qualquer linguagem, mas daquela do impensado, do inconsciente, da loucura. Aí reside a questão, “pois nesta loucura se dão, sob uma forma absolutamente manifesta e absolutamente retraída, as formas da finitude em direção à qual, de ordinário, ela [a psicanálise] avança indefinidamente (e no