• Nenhum resultado encontrado

REAL, TRANSCENDENTAL E CARNAL

O REAL, O TRANSCENDENTAL E O CARNAL

1. O prazer é o princípio da realidade

Em seu Seminário 7 Lacan nos confronta com as vias políticas através das quais se convencionou que o bem é o prazer. E, em primeiro lugar, é a uma tradição filosófica que, segundo Lacan (1986, p. 46), devemos nos reportar para compreender esta exigência (de tomar o bem como o prazer) proveniente “do fato de o prazer aparecer, em muitos casos, como o termo oposto ao esforço mental, e de ser preciso, no entanto, que ele encontre aí a referência final, aquela à qual o bem que orienta a ação humana deve, no fim das contas, reduzir-se”. Por que não partir desta tradição, chamada de hedonista? Evoquemos a justificativa do próprio Lacan (ibid., p. 218): “não é por ter ressaltado os efeitos benéficos do prazer que criticaremos aqui a dita tradição hedonista. É pois por não dizer em que consiste esse bem. É aí que está a tapeação”. Como se vê, o psicanalista não deixa de seguir os primeiros esboços freudianos sobre a relação do homem com o prazer: é em razão da destruição situada mais além do prazer que, diante deste, o sujeito deve manter-se a certa distância.

Sabemos que, dentre as oscilações que a concepção do psíquico sofreu na obra de Freud, algo parece ter, de um modo ou de outro, permanecido. À tendência “natural” do organismo humano ao prazer, opõe-se um segundo processo de caráter “corretivo”. Esta a função do princípio de realidade: inibir um processo primário cujo termo, em princípio, é o prazer a qualquer preço. Quer dizer, o prazer ao custo da alucinação e, logo, do desprazer, pois, enquanto mera alucinação, o objeto prazeroso não atende a necessidade à qual foi alucinado, revelando-se como engodo e frustração. Em poucas palavras, é esta uma das primeiras concepções freudianas dos processos inconscientes que regulam um “aparelho psíquico”. Em vista de um processo primário cuja regra, o princípio, é o prazer, mesmo (e, sobretudo) ao custo da alucinação, caberá a um segundo processo a tarefa de corrigir o primeiro, na medida do possível, exigindo uma indicação

65 de realidade face à eminência do engodo. A nós interessa reter, aquém da riqueza de detalhes que permeiam a descrição freudiana do Projeto120, o que Lacan (1986, aulas de

2 e 9 de dezembro), em referência a este texto, chamará de “paradoxo do princípio de realidade”.

Como lemos no Projeto121, a vida humana é dominada por suas necessidades vitais (“Not des Lebens”), ou por uma necessidade vital, como quer Lacan122, em razão

da qual seu aparelho psíquico deve ser regido por um princípio de desprazer (ou de inércia). Para tanto, este aparelho deve manejar uma quantidade (Q) de energia recebida de fonte exógena, através dos neurônios do chamado sistema φ, e de fonte endógena e/ou exógena, através dos neurônios do sistema ψ, operando a sua passagem (em φ) e/ou sua retenção (em ψ), de modo a mantê-la em seu nível mais baixo. É, pois, neste sistema ψ, constituído por neurônios capazes de reter energia, que, após uma primeira experiência de satisfação (“Befriedigungserlebnis”), advém um investimento (Q‟n) no grupo dos neurônios convergentes à percepção do objeto que produziu a satisfação. Dada a sua capacidade de retenção, este grupo de neurônios é apto a congregar uma memória neurônica desta experiência, criando uma “Bahnung”, termo que alguns tradutores da obra freudiana lêem como “facilitação”. Isso significa que, uma vez reproduzido aquele estado de urgência vital, o caminho à satisfação estaria facilitado, bastando um re-investimento no mesmo grupo de neurônios para gerar a correspondente percepção do objeto. Porém, caso o objeto real não esteja presente, tal processo pode revelar-se como alucinatório: “este é todo o perigo, no caso de o processo primário ganhar a rodada”, completa Lacan (1986, p. 41). Daí a necessidade de um princípio de realidade. É, pois, através de uma indicação de realidade que o aparelho psíquico se resguardaria da alucinação (e do desprazer subseqüente) para a qual o princípio do prazer o conduz, tateando uma identidade de percepção entre aquilo que se apresenta no mundo “externo” e o que é desejado (e alucinado) no “interno”.

Aqui a pergunta é: por qual via o aparelho psíquico tem acesso à Q proveniente deste mundo externo senão pela da sensibilidade cuja regência, inconsciente, é realizada pelo princípio do prazer? É claro que, sendo este acesso inconsciente, o tal aparelho precisará de um terceiro mecanismo, o chamado “sistema ώ”, para efetivar a

120 Freud S. Proyeto de psicologia. In: AE, 1976. Daqui em diante referido apenas como “Projeto”. 121 Op. cit., p. 363-68.

122 No texto alemão, diz-nos Lacan (1986, p. 58), consta “die Not des Lebens”: “Fórmula infinitamente

mais forte. Alguma coisa que quer. A necessidade (besoin) e não as necessidades (besoins). A pressão, a urgência. O estado de Not é o estado de urgência da vida”.

66 transmissão percepção-consciência e permitir a função do princípio de realidade. No entanto, como nos lembra Freud, se este princípio age sobre o sistema ψ, com vistas à inibição do investimento na cadeia neurônica que ativa a percepção (alucinada) do objeto, não é, todavia, desse sistema que ele recolhe as informações com as quais opera uma indicação de realidade, pois tal sistema é inconsciente, mas do sistema ώ. Ocorre que este último não recebe diretamente do exterior a energia com a qual opera, e sim do sistema inconsciente responsável pela sensibilidade a qual, por sua vez, é regida pelo princípio do prazer. Donde se infere que, uma vez sob a égide deste princípio, as informações recebidas no sistema ώ não podem fornecer garantia de uma realidade “objetiva”; apenas dados já depurados pela ordem inconsciente do prazer. O problema todo reside no fato de que, como afirma Lacan (1986, p. 37), “este organismo inteiro parece feito não para satisfazer a necessidade, mas para aluciná-la”, e mesmo a ação de um segundo processo corretivo não avaliza a distinção entre realidade “interna” e “externa”: eis o paradoxo do princípio de realidade.

Primeiramente compreendamos aqui, exorta-nos Lacan, que não se trata da realidade tal como questionada pelo idealismo. Não porque Freud perdera o compasso deste questionamento, mas porque, como afirma Lacan (1986, p. 40) com a espontaneidade que lhe é própria quando se trata de comparar “a Filosofia” com Freud: “Nenhuma filosofia, até então, levou as coisas tão longe nesse sentido”. Em mais um passe tipicamente lacaniano, porém, o elogio não é gratuito: a intenção não é outra senão apartar, ainda que no limite da sutileza, o realismo subjacente à noção freudiana de aparelho psíquico. “Para nós” – completa Lacan (1986, p. 51) – “é óbvio que esse aparelho é essencialmente uma topologia da subjetividade”.

Em síntese, só permanecemos no paradoxo quando tomamos a realidade “externa” como o dado biológico da análise realista. Isso porque, se “o princípio do prazer não é suscetível de inscrição alguma numa referência biológica”, como afirma Lacan (1986, p. 50), igualmente, “assim que tentamos articulá-lo para fazer depender do mundo físico, ao qual o desígnio de Freud parece exigir referi-lo, é claro que o princípio de realidade funciona, de fato, como que isolando o sujeito da realidade” (ibid., p. 59). Por outro lado, se tomarmos esta realidade não como o mundo físico, mas como a realidade psíquica, isto é, como o conjunto dos signos do objeto (a ser reencontrado), ver-se-á, então, que o princípio de realidade visa a corrigir o “mundo interno” em relação à “realidade interna”, o aparelho psíquico em relação a ele mesmo.

67 Restaria a tarefa de tomar a “realidade externa” como este conjunto de signos que, uma vez constituída aquela memória neurônica pela Bahnung, nada mais será senão a chamada “estrutura significante123”. Eis o golpe lacaniano de (e no) mestre, pelo

qual a noção de Bahnung, ou melhor, a interpretação que dela se pode fazer, será o ponto de partida do argumento de Lacan. Como dissemos, uma Bahnung se forma após uma primeira experiência de satisfação criando uma “facilitação” entre os neurônios que, capazes de reter energia no aparelho psíquico, se constituem como memória. É, pois, através desta memória que o processo secundário visa à ação cujo fim é reencontrar o objeto que produziu a satisfação, evitando uma descarga (desnecessária e desprazerosa) de energia face aos investimentos do princípio do prazer. Assim, a produção alucinatória ordenada por este princípio pode ser inibida se o aparelho psíquico, tateando uma indicação de realidade, trilhar o percurso da facilitação auferindo a identidade de percepção entre o objeto reencontrado e o objeto da experiência de satisfação. Ora, Lacan pode, ao seu modo, contornar o problema da realidade tomando-a não mais como o mundo externo, mas como a estrutura dos significantes, na medida em que o significado da palavra “Bahnung” revela-se não tanto na “facilitação”, quanto no “trilhamento” e, em seguida, como “articulação124”.

Nestes termos, o princípio de realidade deverá ajustar a percepção do objeto não em relação à realidade tal como concebida pelo realismo, mas a esta articulação de que fala Lacan. Em suma: a prova de realidade a partir da qual o processo secundário tomará seu critério não é um dado biológico, e sim o elemento de uma estrutura significante. E, sendo o significante um vazio, o estatuto da realidade psíquica para Lacan deve, de algum modo, ser determinado pelo negativo. A “topologia da subjetividade”, como não poderia deixar de ser, é herança das matrizes kojèviana e hegeliana, e encontra no prazer o princípio da negatividade que move seu processo dialético. Em relação à realidade o prazer é, portanto, princípio, nos dois sentidos do termo: enquanto “abertura” e “regra reguladora”. Deveremos, então, interrogar em que medida o trabalho do negativo se dá e é fundamental em ambos os sentidos em questão.

123“Um signo é algo para alguém. A onipotência do desejo alucina a presença desse alguém, da mesma

forma que o corpo da paciente de Breuer, ao produzir uma „gravidez nervosa‟, exibia, magicamente, um „funcionamento natural de signos‟”, diz-nos David-Ménard (in: SAFATLE, 2003, p. 148-49). E arremata: “Isto é totalmente diferente da organização significante do desejo que ganha corpo em razão da barra no Outro, ou seja, pelo fato de ele não corresponder àquilo que a onipotência do desejo procura”.

124 É óbvio que essa palavra tem um alcance estritamente oposto, Bahnung evoca a constituição de uma

via de continuidade, uma cadeia, e penso até que isso pode ser aproximado da cadeia significante, uma vez que Freud diz que a evolução do aparelho ψ substitui a quantidade simples pela quantidade mais a

68 Vimos muito esquematicamente que, após uma experiência de satisfação originária, o aparelho psíquico se lança ao encalço deste objeto nas vias trilhadas pela

Bahnung. O resultado é a formação de uma constelação de representações deste objeto diante da qual um segundo processo, a partir do sistema ώ, vai depurar os dados da realidade a fim de obter uma identidade de percepção. Como tais dados já chegam neste sistema “filtrados” pela ordem do prazer, o máximo que este processo realiza é uma correção, ou uma supressão, sobre a constelação de representantes do objeto em vista destes dados, articulando outras vias de satisfação à eminência do desprazer. Certo é que o paradoxo não é em si dissolvido pois, no fim das contas, como admitirá Lacan (1986, p. 265), “nós constituímos a realidade com o prazer”. Essa realidade, contudo, que se constitui a partir dos objetos candidatos ao objeto da primeira experiência de satisfação, não deixa de ser (psiquicamente) real para o indivíduo, ainda num sentido mais urgente do que o da realidade como “mundo físico” do realismo ingênuo. É por isso que, lembrando os termos de Freud, para Lacan (1986, p. 65, grifo do autor) “o

objetivo primeiro e imediato da prova de realidade não é a de encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao representado, mas reencontrá-lo, convencer-se de que ele ainda está presente”. Em suma, para um juízo de existência concebido nestes

termos, a “realidade” se revela pela (de)negação do objeto fantasmático e não por sua exposição objetiva: está nas vias pelas quais, na tentativa de um reencontro, obedecendo ao princípio do prazer, um objeto será nadificado, por assim dizer, des-objetivado125.

Para desvendar esse processo, lembremos, de passagem, dos dois modos pelos quais se articula a linguagem na leitura lacaniana de Freud, pois a sua composição nas palavras da consciência corresponde a um tipo de representação bem diferente daquela que se estrutura no nível inconsciente, sob a ordem da “Vorstellung126”. Deparamo-nos

com a diferença entre “a operação da linguagem como função”, articulação passível de consciência, “e a estrutura da linguagem, segundo a qual os elementos colocados em jogo no inconsciente se ordenam”. Nesta estrutura temos a “Sachvorstellung”, uma representação (de uma coisa), que ocupa o lugar do objeto a ser reencontrado, em relação à qual a “Wortvorstellung”, uma palavra (que, como todas, é representação), articular-se-á através da função simbólica da linguagem. Contudo, “die Sache” está em oposição à “das Wort” porque a coisa não está nas palavras: vimos que o aparelho

125 Esta “des-objetivação”, termo que escolhemos à falta de coisa melhor, deve significar que, como

afirma David-Ménard (1996, p. 255), “a prova de realidade não concerne à realidade perceptiva ou construída pelo entendimento, mas à inscrição, na alma, da falta do objeto”.

69 psíquico precisa de uma prova, pois a primeira é eminentemente alucinatória e, por isso, potencialmente desprazerosa. Eis porque essas Vorstellungen (Sachvorstellung) serão representadas por seus representantes, por significantes, tornando-se, então, “Vosrtellungsrepräsentanzen”127, para que, desvinculados desta representação-coisa

pela ação de processos inconscientes, estas formas vazias possam ser “achadas” nas palavras, na palavra-representação, e, finalmente, emergir no discurso.

É neste ponto que o recalque toma seu posto na apropriação das noções de Freud por parte de Lacan128 (1986, p. 78): “O nível das Vosrtellungsrepräsentanzen é o lugar de eleição da Verdrängung. O nível das Wortvorstellungen é o lugar da Verneinung”. Quer dizer, é ao nível do recalque129 (Verdrängung), dado na experiência de satisfação, que alguma coisa será negada (nesta experiência) para que uma articulação de representantes possa representar as inscrições (desta experiência), Sachvorstellungen, estas “substâncias da aparência130”. Doravante, é para impedir uma “tradução literal”

(leia-se: alucinatória) destas representações em palavras (representações) que, no processo de constituição desta cadeia de representantes da representação, uma segunda negação (Verneinung) oporá as Sachvorstellungen às Wortvorstellungen a fim de que, na esteira do processo secundário, o discurso chegue ao interesse da consciência.

Desde então, no nível do inconsciente, isso se organiza segundo leis que não são forçosamente, Freud o diz mui justamente, as leis da contradição, nem as da gramática, mas as leis da condensação e do deslocamento, as que chamo, para vocês, de as leis da metáfora e da metonímia (LACAN, 1986, p. 76).

Assim, partindo de uma distinção entre as representações-coisa e os seus representantes, Lacan pode pensar no isolamento destes na forma de uma estrutura significante em virtude das leis mencionadas, ordenadas pelas negações do inconsciente. Contudo, um furo ainda persiste: a Verdrängung pressupõe o significante, ou seja, é uma operação que pressupõe uma cadeia formada. É por isso que, para Lacan (1986, p. 79-80), devemos compreender “a Verneinung representar, de um certo ponto de vista, a

127 “Isso não é simplesmente Vorstellungen, mas, como o escreve Freud em seu artigo sobre o

Inconsciente, Vorstellungenrepräsentanz, o que constitui a Vorstellung como um elemento associativo, combinatório” (LACAN, 1986, p. 75-6).

128 Sigamos as remissões de Lacan (1986, p. 48 e 56) aos textos freudianos, além do Projeto: o “capítulo

VII” da Interpretação dos sonhos; o artigo sobre A denegação; O mal-estar na civilização; e o texto sobre

O inconsciente (precedido pelo artigo sobre o recalque), textos que, como dissemos, estarão referenciados ou na edição Amorrortu Editores (AE) ou nas Gesammelte Werke (GW) .

129 Cf. Souza, 2010, pp. 112-21. 130 Cf. Lacan, 1986, p. 75.

70 forma invertida da Verdrängung131”, o que significa que, não só a negação incidente na

primeira simbolização deve ser de outra natureza em relação ao recalque, como também deve ser outro o seu objeto.