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GENEALOGIA, PRAZER E POLÍTICA

2. Desejo da origem

Tentamos conduzir nossos passos, de certo modo em sua totalidade, a isto que chamamos de normalização do real e utilitarização do prazer – expressões não esclarecidas até agora, assim como também não estão claras, do ponto de vista foucaultiano, outras noções centrais às quais nos referimos há algum tempo, como o desejo e sua verdade. Por que chegamos a esse ponto? Porque se a transgressão parecia uma herança inevitável do nascimento da modernidade, a perversão também o parecia. Em síntese, esta inevitabilidade pode ser garantida se tomarmos o Real como um momento constituído no movimento da negatividade (do desejo) que, considerando as pretensões de certo hegelianismo, guarda ambições universais. Desde então, tudo se passa como se não houvesse outra forma de pensar historicamente o prazer senão como inscrição do negativo, ponto de partida do impasse da transgressão perversa.

Com Lacan, na origem, ao invés da mãe, encontramos o negativo. Daí nasceu a economia do prazer, ponto irredutível da verdade do desejo. Se não há uma verdade do

180 prazer porque, para Lacan (1986, p. 261), é impossível discernir os verdadeiros dos falsos prazeres, por outro lado, há uma verdade do desejo. Sem dúvida, falamos de uma verdade peculiar, que não se pretende inteiramente dita a não ser no momento em que já “não sobra muita coisa do verdadeiro” (ibid., p. 216). Seja como for, o fato é que se usa esta “verdade”. E aqui podemos dizer: a palavra libertadora, aquela que se subtrai na fala cotidiana e guarda o ser do sujeito: “uma verdade que vamos procurar num ponto de sonegação de nosso sujeito”, diz-nos Lacan (ibid., p. 32).

Assim, até o início dos anos de 1960, se o psicanalista nega a positividade almejada pelo realismo (que ele atribui a Freud) é, em certo aspecto, para afirmá-la de um modo muito próprio, e ainda mais absoluto do que o realista, em uma linguagem dialética. Re-fundação de uma nova positividade, arriscamos dizer, porque, sobre o solo da verdade do desejo, reencontramos a normalidade do real. Agora, o normal do real é se apresentar em uma economia do desejo. Não custa repetir: Lacan está absolutamente ciente da imposição moderna do regime de normalização contra a qual sempre se opôs radicalmente. E, talvez, justamente devido à sua intolerância a um realismo que o perseguiu por anos, Lacan tenha se apegado resolutamente à saída oposta. Será que tal resolução não lhe ofuscou a extensão dos riscos inerentes a esta saída? Riscos a que estão sujeitos todos os que querem falar de uma verdade em tempos de normalização, quer dizer, tempos em que um pensamento “naturalizante” que antes seduzia os realistas agora seduz os normalizadores.

Nossos problemas começam, então, quando interrogamos o estatuto do desejo e descobrimos que, para Lacan (1986, p. 357): “É sempre por meio de algum atravessamento do limite, benéfico, que o homem faz a experiência de seu desejo”. Sabemos o que é o desejo268. Descobrimos uma ligação profunda entre o desejo e a realidade. Em uma sentença: “tudo o que existe não vive senão na falta a ser” (ibid., p. 341). E o que prova essa falta é, justamente, a falta do desprazer, inscrição do negativo que não é outra coisa senão o próprio prazer.

De fato, se “o tema do Seminário 7 é uma pergunta sobre o conceito freudiano de prazer, evocando suas raízes antigas, aristotélicas, a fim de valorizar a inovação

268 Do Seminário 1: “o desejo é essencialmente uma negatividade” (LACAN, 1983, p. 172), ao Seminário

7: “É na medida em que a demanda está para além e para aquém de si mesma, que, ao se articular com o significante, ela demanda sempre outra coisa, que, em toda satisfação da necessidade, ela exige outra coisa, que a satisfação formulada se estende e se enquadra nessa hiância, que o desejo se forma como o que suporta essa metonímia, ou seja, o que quer dizer a demanda para além do que ela formula” (LACAN, 1986, p. 340).

181 freudiana, que consiste em apontar o que ultrapassa os limites do prazer269”, não

precisamos ir além deste texto para responder o que é, para Lacan, o prazer. As suas vias são dadas ante as provas de realidade. Entretanto, o princípio de realidade lida com dados depurados por um sistema que funciona conforme a ordem inconsciente do prazer. Daí o paradoxo da realidade a partir do qual dizemos que o prazer é o principio do real, ou seja, é o que origina e regula a realidade.

O desejo se caracteriza como o que põe em movimento (dialético) o prazer, na medida em que o Real é desde sempre perdido. Isso significa que o real é “desrealizado”, diríamos até “nadificado”, pois o prazer é a inscrição da negatividade do desejo. O prazer é o que remete o desejo da pequena para a grande Coisa. Trata-se de transgredir um limite (do prazer) para encontrar o vazio (de das Ding). Aí temos já os ingredientes de uma economia, na qual o prazer é o que faz arder a falta-a-ser em que, desde então, constitui-se o desejo. Se podemos falar, portanto, de uma economia do prazer, porque este aí é o objeto – ainda que um objeto que nada tem de “objetivo” porque, de fato, é um processo, uma ausência (de desprazer) – desta economia, podemos, com mais propriedade, falar de uma economia do desejo, realizada por um desejo que vai da falta (a realidade dada na ausência do desprazer) à falta-a-ser (o processo de purificação do desejo em face do Real).

O fato é que esta economia do desejo de que falamos é um acontecimento moderno. E, do ponto de vista das implicações da posição lacaniana, somos inclinados a afirmar que tal acontecimento é tributário do trabalho do negativo, e não o contrário. A potência do negativo não se contenta em afirmar o infinito a não ser para nele se lançar, colonizando-o. Desde então, a própria História se curva a essa potência que, de certo ponto de vista, nos aparece como “a-histórica”, para usarmos um termo de Zizek (1991, p. 178): “o processo de historicização comporta um lugar vazio, um núcleo a-histórico em torno do qual se articula a rede simbólica”. Daí a necessidade de, com esta espécie de a priori a-histórico, pensarmos a origem a partir da qual o acontecimento seria inteligível, apesar, e em função, de suas tensões (de seus momentos de loucura e do ímpeto transgressor de seu movimento?). Isso porque, completa Zizek (ibid.), “a

história humana se distingue da evolução animal precisamente pela referência a esse lugar a-histórico, não-historicizável, que é um produto retroativo da própria simbolização: tão logo a realidade é simbolizada/historicizada, distingue-se o lugar

269 Palavras de Miller (2005, p. 121), que completa: “E, de maneira notável, enfática, Lacan dá ao que

182 vazio da Coisa”. Não seria este “lugar a-histórico”, contudo, aquele que, segundo Foucault, nos faria perder a memória de outra história, em que pese a proposta sedutora desta (História) determinada pelo negativo? Proposta de um solo positivo onde poderemos encontrar a verdade do desejo, mas também onde veríamos que “a dialética codifica a luta, a guerra e os enfrentamentos dentro de uma lógica, ou pretensa lógica, da contradição; ela os retoma no duplo processo da totalização e da atualização de uma racionalidade” (FOUCAULT, 1997, p. 50).

Lembremos que, para Hegel (2001, p. 107), “a existência, progresso, aparece como um avanço a partir do imperfeito para o mais perfeito”. Contudo, prossegue o filósofo, “o primeiro não deve ser tomado apenas em abstração, como o simplesmente imperfeito, e sim como o que ao mesmo tempo contém o seu próprio oposto como germe, o chamado perfeito, um impulso dentro de si mesmo”. Assim, Hegel encerra: “apenas o estudo da história do mundo em si pode mostrar que ela continuou racionalmente, que ela representa a trajetória racionalmente necessária do Espírito do Mundo”, sendo que “a palavra „mundo‟ inclui a natureza física e a natureza psíquica270

(ibid., p. 107).

Devemos estar atentos, aqui, à distância que separa Hegel de Lacan, a começar pelo fato de que este Hegel é muito mais o de Kojève – e, mesmo aí, há um empréstimo peculiar271. Por outro lado, mesmo se ignorarmos uma suposta filiação à linearidade teleológica da Razão histórica hegeliana ensaiada nas generalizações de Lacan (quando este afirma, por exemplo, que, “em toda circunstância, em toda incidência, histórica ou não”, a posição do poder “sempre foi a mesma”), resta-nos um problema.

Ao insistir no criacionismo, Lacan flerta com o pensamento dialético para o qual, em função desta origem do nada, algo se constitui graças à universalidade característica do trabalho do negativo que atravessa a contingência dos acontecimentos

270 A despeito de não pretendermos discutir a filosofia hegeliana da história, é notável que, para Zizek

(1991, p. 186), “o movimento histórico comporta em seu próprio cerne, em Hegel, a dimensão a-histórica da „negatividade absoluta‟. Dito de outra maneira, a suspensão do movimento é o momento-chave do movimento dialético: o pretenso „desenvolvimento dialético‟ passa pela repetição incessante de um começo ex nihilo, de uma anulação retroativa do conteúdo pressuposto”. Notáveis palavras não apenas porque evidenciam uma tentativa de “lacanizar” Hegel, mas também porque pretendem minimizar o caráter teleológico da história tal como concebida pelo filósofo, segundo o qual, como afirma Hartman (In: HEGEL, 2001, p. 24): “O Espírito não é apenas dinâmico, não tem apenas um índice de progresso, não é, como se poderia dizer, quantitativo; ele também tem uma qualidade, um objetivo, uma direção”.

271 Vimos no Cap 1 que Lacan se apropria da dialética hegeliana do desejo, depurada pela crítica

antropogênica de Kojève, sem, contudo, aceitar a saída revolucionária do Escravo proposta nesta análise: “Lacan não tem a menor pretensão, como Kojève, de contar uma história universal. Seu único objetivo é a subjetividade descrita de maneira determinística e rigorosa, segundo o paradigma da estrutura e da negatividade” (ALMEIDA, 2006, p. 111). Porém, o que significa, para a história, uma origem a-histórica? Eis a questão que nos interessa.

183 e a eles confere um tempo e um espaço determinados. Chamar-se-á este algo, então, de história, e certamente não se ignorará suas rupturas, suas tensões, seus ciclos, descontinuidades etc. Afinal, estes “ruídos”, em sua aparente incomunicabilidade, configurarão a inteligibilidade lógica de sua apreensão dialética, ainda que, contra um evolucionismo, o sentido da história seja dado retroativamente:

Lacan sublinha, em seu seminário sobre a ética da psicanálise, que o evolucionismo implica sempre a crença num Bem supremo, Objetivo final da evolução, aquele que guia seu curso e atua nela desde o começo. Sempre comporta, portanto, uma teleologia oculta, negada, ao passo que o materialismo é sempre criacionista, isto é, comporta um movimento retroativo: o Fim não está escrito desde o começo, as coisas recebem sua significação na posteridade, a criação da Ordem confere significação, retroativamente, ao Caos anterior (ZIZEK, 1991, p. 186).

Deixando para depois este “materialismo”, reencontramos aí, de certo modo, o motivo pelo qual Lacan se vê compelido a critica do realismo e de um Bem cuja aceitação inevitavelmente o conduziria ao plano de uma Ego Psychology. O fato é que, do ponto de vista foucaultiano, esta história, que emerge da posição lacaniana, e cujo significado é retroativamente determinado pelo significante, acaba por afirmar a raridade do discurso em prejuízo da complexidade irredutível do acontecimento272. Para Foucault (1969, p. 13), “a história do pensamento, dos conhecimentos, da filosofia, da literatura, parece multiplicar as rupturas e buscar todas as perturbações da descontinuidade, enquanto a história propriamente dita, a história pura e simplesmente, parece apagar, em benefício das estruturas fixas, a irrupção dos acontecimentos”. A força de uma linguagem dialética, para usarmos um termo em oposição ao qual Foucault tenta se situar, faz-se sentir quando lutamos para evitar o pensamento da origem que, de um modo ou de outro, implica alguma causalidade, e tudo o mais ao que “naturalmente” somos inclinados quando, deste ponto de vista, pensamos o que é história. Por isso, diz- nos Foucault, o sucesso desta luta não é tão simples. Urge que abandonemos: o “hábito de crer que a história deve ser uma longa narrativa linear” (DE I, p. 583); o “preconceito

272 Em linhas gerais, o discurso raro é aquele que, por ser objeto de uma análise histórica naturalizante,

prevaleceu em detrimento da dispersão irredutível de singularidades que caracterizam um acontecimento histórico. “Substitui-se, assim, a diversidade das coisas ditas por uma espécie de grande texto uniforme, ainda jamais articulado e que, pela primeira vez, traz à luz o que os homens haviam „querido dizer‟, não apenas em suas palavras e seus textos, mas nas instituições, práticas, técnicas e objetos que produzem” (FOUCAULT, 1969, p. 156). Cf. também Foucault, DE III, p. 467 e pp. 573-81. Dreyfus e Rabinow (1995, p. 54) comentam sucintamente o assunto. Uma relação entre estoicismo, acontecimento e raridade do discurso é analisada por Temple, G. Poder e resistência em Michel Foucault. São Carlos, 2011. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de São Carlos. Sobre esse tema cf. Foucault, 1971, p. 59.

184 segundo o qual uma história sem causalidade já não seria história” (ibid., p. 607); enfim, “a totalidade fechada e pletórica de uma significação”, “a interioridade de uma intenção, de um pensamento ou de um sujeito” e “o momento ou a marca da origem” (id., 1969, p. 164). Como afirmará Foucault (DE III, p. 145) quase dez anos depois de começar o que, então, chamar-se-á de uma genealogia:

O problema é ao mesmo tempo distinguir os acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que os ligam, uns a partir dos outros. Daí a recusa das análises que se referem ao campo simbólico ou ao campo das estruturas significantes, e o recurso às análises que se fazem em termos de genealogia das relações de força, de desenvolvimentos estratégicos e de táticas. Eis aí palavras que parecem ter um destinatário familiar – e não faltam referências, nos textos foucaultianos, em estrita consonância com elas. Nietzsche, a

genealogia e a história é, como já dissemos, um exemplo notável a partir do qual, agora, somos tentados a perguntar se aquela “origem” encontrada por Lacan do nada, e no nada, oculta uma vontade de saber a “Ursprung273”. Se “o „nada‟, a negatividade

absoluta que impele para diante o movimento dialético, é precisamente a intervenção da „pulsão de morte‟ como radicalmente a-histórica, como „ponto zero‟ da história” (ZIZEK, 1991, p. 186), não seria ele, também, a origem da história, do Bem e do Mal, “antes da queda, antes do corpo, antes do mundo e do tempo274”? Diremos, então, que,

enquanto Lacan precisa determinar uma origem, na medida em que sua clínica e sua teoria dependem disso – e aí notamos a inclinação a uma abordagem do tipo dialética – para Foucault trata-se de problematizá-la. Problematização do desejo e do prazer, particularmente, que não se contenta em fazer, como afirma Foucault (1984a, p. 11), “uma história das concepções sucessivas do desejo, da concupiscência ou da libido, mas analisar as práticas pelas quais os indivíduos foram levados a prestar atenção a eles próprios, a se decifrar, a se reconhecer e se confessar como sujeitos de desejo, estabelecendo de si para consigo uma certa relação que lhes permite descobrir, no desejo, a verdade de seu ser, seja ele natural ou decaído”. Em síntese, trata-se de não negligenciar a irredutibilidade do acontecimento275.

Para nós, uma série de acontecimentos (como o nascimento de uma ciência médica, e suas implicações nos processos de normalização a ela ligados; a simbiose

273 Entre outros usos que Nietzsche lhe confere, para Foucault (DE II, p. 137) este termo “é também usado

de maneira irônica e depreciativa”. Por isso, completa, “Nietzsche genealogista recusa, pelo menos em certas ocasiões, a pesquisa da origem (Ursprung)” (ibid. p. 138).

274 Palavras de Foucault (DE II, p. 139) em Nietzsche, a genealogia e a história. 275 Cf. Veyne, 1998.

185 entre os dispositivos de aliança e sexualidade, e suas implicações na explosão discursiva ao redor do sexo; a passagem das técnicas de confissão às tecnologias disciplinares e suas implicações à individualização; o surgimento de um “corpo” e de uma “população” e suas implicações à constituição de uma razão de Estado e de um biopoder; etc.) que se entrecruzam e podem ser agrupados pelo acontecimento mais amplo de uma vontade de saber na modernidade.

De fato, uma “história das concepções sucessivas do desejo” freqüentemente ignora os modos pelos quais o desejo e o prazer estão profundamente imbricados em “jogos” de poder e verdade276. Na análise destes jogos, “pode-se mostrar, por exemplo,

que a medicalização da loucura, a organização de um saber médico em torno dos indivíduos designados como loucos, esteve ligada a toda uma série de processos sociais, de ordem econômica em um dado momento, mas também a instituições e a práticas de poder” (FOUCAULT, DE IV, p. 724). Como se vê, o termo “jogo” deve ressaltar o caráter transitório, plástico, passageiro, difuso, artificial, tático, das produções de verdade. A cada momento esta pode estar de um lado, conforme as estratégias em jogo, pode pertencer a um grupo ou a um indivíduo e, em seguida, a outros. Não deduzimos daí que tais produções não tenham efeitos reais, pelas simples razão de que, em sua totalidade, “não podem ser dissociadas do poder e dos mecanismos de poder, ao mesmo tempo porque esses mecanismos de poder tornam possíveis, induzem essas produções de verdade, e porque essas produções de verdade têm, elas próprias, efeitos de poder que nos unem, nos atam277” (id., DE III, p, 404). Portanto, não a pergunta pela origem e, em seguida, a “história das concepções sucessivas do desejo” (id., 1984a, p. 11), mas uma genealogia do modo pelo qual “os indivíduos foram levados a exercer, sobre eles mesmos e sobre os outros, uma hermenêutica do desejo” (ibid.). Isso não significa que

276 Sobre o prazer e a verdade: “Era este o meu problema [na História da sexualidade]: o que aconteceu

no Ocidente que faz com que a questão da verdade tenha sido colocada em relação ao prazer sexual?” (FOUCAULT, DE III, p. 312). De modo geral, pode-se dizer que interessa a Foucault (DE IV, p. 669) “a história das relações que o pensamento mantém com a verdade”. Por isso mesmo, é difícil agrupar as inúmeras referências, nos textos foucaultianos e nos de seus comentadores, sobre a noção de “verdade”, enfim, sobre esta que é, como afirma Foucault (ibid., p. 723-24), “a questão do Ocidente: o que fez com que toda a cultura ocidental passasse a girar em torno dessa obrigação de verdade, que assumiu várias formas diferentes? Sendo as coisas como são, nada pôde mostrar até o presente que seria possível definir uma estratégia fora dela”. Quanto ao “jogo”, diz-nos Foucault (ibid., p. 725), “é um conjunto de procedimentos que conduzem a um certo resultado, que pode ser considerado, em função dos seus princípios e das suas regras de procedimento, válido ou não, ganho ou perda”. Sobre uma “história crítica da verdade”, cf., p. ex., DE III, p. 802, DE IV, p. 54 ou o artigo de Candiotto, 2006.

277 Para Foucault (1997, p. 22), “múltiplas relações de poder perpassam, caracterizam, constituem o corpo

social; elas não podem dissociar-se nem estabelecer-se, nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, um funcionamento do discurso verdadeiro”. Um pouco depois arremata: “somos forçados a produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade e que necessita dela para funcionar”.

186 devamos ignorar tais concepções, e sim nunca tomá-las como causas, tão-só como manifestações das “práticas pelas quais...”.

Por exemplo: quando R. Monzani (2011) nos oferece meios para analisar um percurso “descendente” pelo qual, partindo de uma concepção ética dominante no século XIX, o utilitarismo, poderíamos ser conduzidos do sensualismo de Condillac à teoria de desejo de Hobbes, não deixa de ser frutífero compreendermos como cada um dos sistemas filosóficos em jogo representa um corte em uma história das concepções do desejo278. Monzani nos mostra como é possível, e mesmo necessário, sopesarmos o corte operado pelo pensamento hobbesiano para compreendermos o que é o desejo na modernidade. Considerando que uma de nossas questões refere-se justamente a isso, vale a pena citarmos um trecho mais longo de seu texto.

Hobbes, assim como Spinoza o fará pouco depois, rompe declarada e abertamente com a concepção tradicional de um universo que, objetivamente, está estruturado hierarquicamente tanto no plano cósmico quanto no plano ético. O cosmos, tal como nos apresenta, é objetivamente desfinalizado de forma total. Objetivamente, o que existe são corpos em movimento submetidos estritamente a leis mecânicas. A ação desses corpos sobre o nosso provoca as imagens (...) como também facilita ou não o movimento vital, acionando o conatus ininterruptamente a manifestar sua tendência original de conservação e expansão. É sobre esse conatus que se estrutura toda uma nova antropologia, no sentido de que tudo é modelado por ele, assim, não só a estrutura de nossa vida passional, como também a intelectiva, na medida em que são os apetites que ordenam e dão coerência aos discursos mentais. Toda finalidade é subjetiva, e emerge no campo do sujeito (...), e se constrói a partir do jogo passional que transforma o mecanismo em teleologia (MONZANI, 2011, p. 115).

Propomos inferir duas conclusões daí. Em primeiro, o acontecimento que, na