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Terras vikingues

5. Causas das incursões

Chegados a este ponto, apresentada que está a Escandinávia antiga em alguns dos seus aspectos e momentos históricos, impõe-se a pergunta final: o que causou a Idade Vikingue? O que desencadeou as vagas sucessivas de piratas e colonos nórdicos? Podemos começar por pôr de parte a motivação religiosa. Os primeiros alvos conhecidos podem ter sido os mosteiros, mas isso dificilmente indica que o que havia a abater fosse o cristianismo: se existia uma militância religiosa ao nível de uma cruzada,

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ela encontrava-se do lado cristão, por natureza exclusivista e proselitista. Não que não tenham existido casos de paganismo militante, mas provêm, tanto quanto se sabe, do período posterior, quando a evangelização das elites gerou tensões na Escandinávia. Pensemos no jarl Hákon Sigurðarson, magnata da região de Trøndelag que governou a Noruega de 975 a 995 e que promoveu a restauração dos locais de culto politeístas destruídos pelos seus antecessores cristãos. Mas este exemplo ressente-se de dois problemas se o quisermos usar para justificar o período vikingue: é posterior em cerca de duzentos anos às primeiras incursões e o próprio Hákon, não obstante as suas convicções religiosas, não deixou de colocar-se ao serviço de Haraldr blátönn, autoproclamado senhor da Dinamarca e da Noruega que converteu os Dinamarqueses ao cristianismo, de acordo com a inscrição de cerca de 970 na pedra de Jelling (Brink 2008, 625). E, mesmo quando rompeu com Haraldr, não consta que Hákon tenha lançado uma cruzada contra a Dinamarca.

Um motivo mais plausível, ainda que com as suas limitações, terá sido a escassez de terra e a consequente pressão demográfica, que teria originado migrações e movimentos de conquista. Isto fará algum sentido para a Noruega onde, como vimos, as áreas cultiváveis são pouco abundantes, mas já não para a Dinamarca e para a Suécia. É certo, no entanto, que destes dois últimos territórios partiram também vagas de colonos, nomeadamente Dinamarqueses para as Ilhas Britânicas e Suecos para a Europa de leste. Mas será talvez mais correcto dizer que o fizeram não tanto por escassez de terra, mas por desejo de terem mais do que alguma vez conseguiriam ou em melhores condições do que na Escandinávia, onde seria necessário desbravar, drenar ou, de alguma forma, preparar o terreno para pasto ou cultivo. Para quê ter todo esse trabalho se, noutras paragens, existiam propriedades organizadas e produtivas há já várias gerações à espera de serem tomadas? Afinal, quando os Portugueses do século XVI partiam para as colónias a oriente não era por falta de terra ou de oportunidades de negócio em Portugal, mas sim porque na Índia havia a possibilidade de se enriquecer mais e mais depressa. Além disso, o argumento de uma pressão migratória escandinava deixa por explicar o porquê de as primeiras incursões à Europa ocidental terem sido ataques piratas e não expedições colonizadoras, a menos que queiramos imaginar a expansão nórdica nos moldes da espanhola na América Latina: conquistadores ou exploradores armados seguidos de vagas de colonos. E,

87 nesse caso, seria necessário perguntar pelo porquê de mais de meio século entre o primeiro ataque conhecido, em 789, e a chegada do chamado “grande exército” a Inglaterra em 869, de cujas fileiras saíram colonos nórdicos que receberam (ou tomaram para si) terras inglesas. Dificilmente poderá dizer-se que as décadas iniciais foram de exploração violenta, dado que a costa da Europa ocidental não seria terra incógnita para os escandinavos, que já tinham laços comerciais com o ocidente cristão. O objectivo inicial parece ter sido simplesmente o de chegar, pilhar e partir. Só mais tarde, quando começaram a surgir as primeiras bases permanentes, é que as vagas de colonos surgem atrás dos bandos de piratas ou forças militares nórdicas.

Na discussão sobre as causas da Idade Vikingue entra também a instabilidade política na Escandinávia. A ascensão e queda de magnatas, reis, chefes ou mesmo príncipes que falhavam a sucessão ao trono originavam grupos de exilados. E estes podiam tentar recuperar posses e estatuto além-mar, dedicando-se à pirataria para, com os fundos e fama assim conseguidos, voltarem a terras nórdicas e reclamarem uma posição de poder. Um exemplo do século IX é o do rei dinamarquês Horik, morto em 854 por um sobrinho seu que tinha sido votado ao exílio, mas que ganhou fama e fortuna como vikingue, tendo regressado então à Dinamarca para tirar o trono ao seu tio. Recorde-se a teoria que junta este motivo para as incursões com uma hipotética origem da palavra víkingr no topónimo Viken, região próxima da actual Oslo, quando a influência crescente de reis dinamarqueses sobre o sul da Noruega, nomeadamente em Vestfold, terá empurrado chefes noruegueses para o exílio e, dessa forma, para a actividade pirata em Inglaterra (Sawyer 1997, 8). A tese pode não ser unânime, mas, num processo semelhante, não é impossível que alguns chefes noruegueses tenham desejado autonomizar-se da Dinamarca, que exercia a sua influência em parte pela oferta de artigos de luxo germânicos e francos. E, partir de 800, os magnatas da Noruega podem ter passado a adquirir esses artigos directamente por via de expedições piratas (Christiansen 2006, 108).

Nesta questão, será talvez útil olhar para o Báltico, dado tratar-se de um mar mais pequeno e onde os fenómenos associados à Idade Vikingue no ocidente pirataria, migração e colonização – estavam já presentes antes das primeiras incursões na costa inglesa e francesa. Na Lituânia, os vestígios de presença nórdica parecem remontar ao século VII (Valk 2008, 488), enquanto, na região do lago Ladoga,

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actualmente em território russo e próximo da fronteira com a Finlândia, sabe-se da presença de nórdicos no posto comercial de Staraja Ladoga desde meados do século VIII, o mesmo período a que remonta Birka. Trocas comerciais entre os dois postos e mercados sazonais ao longo das costas oriental e ocidental do Báltico são uma realidade que potencia o aparecimento de pirataria e, pouco antes das primeiras incursões a ocidente de que há registo, os Rus, nome dados aos escandinavos no leste europeu, estariam já a impor tributos a oriente para, pouco depois de 800, começarem a assumir o controlo dos rios Volga e Dnieper (Christiansen 2006, 215-6).

Retomando a pergunta original, o que causou as incursões vikingues? Talvez na origem esteja a experiência de pirataria no Báltico, conjugada com a consciência das riquezas disponíveis a ocidente, de que os nórdicos terão tido uma percepção crescente graças ao tráfego comercial em locais como Hedeby e Birka. Cientes dos lucros disponíveis a leste, poderá ter surgido a tentação de procurar fortunas idênticas ou maiores a oeste, atingindo primeiro os alvos mais fáceis – mosteiros (como referimos) e pequenas povoações costeiras. Nem é preciso imaginar uma grande vaga inicial de piratas: bastam uns quantos bandos a protagonizarem raides bem sucedidos no final do século VIII para que a fama de riquezas ganhas se encarregasse de reproduzir o fenómeno alguns anos depois. Pense-se em Lindisfarne em 793 e Iona em 795, no caso de bandos vindos da Noruega; ou no exemplo dado pela expedição dinamarquesa de 810, aparentemente a mando de Godofredo e que pilhou a Frísia. Os primeiros ataques mostraram que era possível saquear as riquezas do ocidente e o precedente deu frutos poucos anos depois, quando o fenómeno cresceu e aumentaram as histórias de fama e fortuna. Um efeito dominó, por outras palavras, em que ao sucesso original de um número limitado de oportunistas sucede a multiplicação crescente de imitadores. E o fenómeno apenas ganha força quando se tornam cada vez mais evidentes as dificuldades de defesa dos reinos europeus, mergulhados em conflitos civis, divididos em pequenos Estados, desprovidos de defesas costeiras ou dispostos a pagarem somas avultadas pelo resgate de prisioneiros e pelo suborno de piratas. Há um claro crescendo nas incursões vikingues, que começam por ser sazonais para depois passarem a ser constantes com a criação de bases, permitindo evitar viagens pelo Mar do Norte durante o Inverno e possibilitando a pilhagem durante o ano inteiro. Em 852, já havia uma no Sena e, em 855, no Loire.

89 Em 865, o “grande exército” desembarca em Inglaterra, conquista quase todos os reinos ingleses e abre caminho a vagas de colonos nórdicos, que já teriam começado a fixar-se nas Shetland, Orkney e Irlanda. E tudo isto sem que se conheça uma coordenação centralizada, um “rei da Escandinávia” que enviasse vikingues para aqui ou acolá. Pelo contrário, foi um fenómeno descentralizado, levado a termo por vários reis, príncipes, chefes, magnatas e também por bandos de oportunistas e de mercenários que se faziam ao mar em busca de fama e fortuna rápidas. Havia grupos que se fundiam para depois se separarem, conforme as oportunidades que se proporcionavam, e houve até vikingues que se ofereceram para lutar contra outros vikingues a troco de somas avultadas. Do grande exército de 865, por exemplo, diz-se que teve três líderes, que depois acabaram por seguir caminhos separados. E conhece- se o caso de um grupo pirata que, em 860, entrou no rio Somme e ofereceu-se para expulsar vikingues do Sena pela “modesta” quantia de três mil libras de prata, levando o rei franco Carlos, o Calvo, a cobrar um imposto extraordinário. É o sentido de oportunidade em todo o seu esplendor!

Este fenómeno de pirataria, de fixação durante o Inverno, do pagamento de subornos ou de resgates chegaria, a seu tempo, à Península Ibérica. E foi inevitável porque a proximidade geográfica com os territórios francos assim o ditou: bastou seguir a costa, um pouco mais a sul e um pouco mais a oeste, com mais ou menos correntes ou tempestades, para os vikingues se apresentarem diante da Galiza. Independentemente dos motivos que lhes terão dado origem, os ataques acabaram por chegar à faixa ocidental da Península, datando de 844 o primeiro de que há registo, quando a Idade Vikingue estava já em pleno vigor. E é nessa fase do período em que nos vamos concentrar de seguida.

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Capítulo 6

A chegada dos vikingues à Península Ibérica