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As incursões do século

8. Sul do Douro,

O documento número 8 dos Anais Palatinos do Califa de Córdova al-Hakam II (García Gómez 1967, 48) dá notícia do avistamento de uma frota nórdica no “mar setentrional” (Galiza ou a costa a norte do Tejo?), também no ano 360 da Hégira. O califa ordenou a preparação de uma frota, que devia sair de Almería rumo ao Algarve para fazer frente aos vikingues, e ainda de um exército terrestre.

À semelhança de outros documentos do mesmo volume, o tradutor moderno fornece uma equivalência para a datação islâmica, neste caso 3 de Julho (sexto dia do Ramadão), dia da partida de Córdova do almirante Rumahis. A data confere com os

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nossos cálculos rudimentares, que indicam aproximadamente o 8 de Julho. Terá sido por essa altura que o califa recebeu a informação de que havia um bando de piratas a navegar pela costa rumo ao sul, mas não é certo se seria o mesmo grupo de nórdicos que entrou no Douro. Conforme vimos, a mensagem de Gonçalo Moniz foi selada a 9 de Julho e chegou a Córdova a 22 do mesmo mês, a fazer fé nas datas fornecidas pelo tradutor dos Anais, ou aproximadamente, se quisermos suspeitar de equivalências cronológicas precisas. Em qualquer caso, al-Hakam II terá tomado conhecimento da presença de vikingues antes ou pela mesma altura em que o conde galego enviou a sua mensagem. Podemos, por isso, estar perante notícias de dois grupos distintos a actuar na costa oeste da Península Ibérica ao mesmo tempo, um a norte e outro a sul. Mas também não é impossível que fosse de início um único bando pirata que a dada altura se dividiu: recorde-se, a respeito das incursões do século IX nas Ilhas Britânicas, como o grande exército não se manteve coeso e chegou a separar-se em dois grandes grupos; ou, no século X, de como Óláfr Tryggvason abandonou a expedição que terá liderado com Sveinn tjúguskegg. Os bandos de vikingues eram altamente voláteis, passíveis de se dividirem ou unirem conforme as circunstâncias, pelo que não é impossível que, tendo chegado à foz do Douro, parte de uma frota tenha decidido entrar no rio e outra seguir viagem para sul. A chave para o problema pode estar no entendimento que se tem da referência ao mar setentrional, se a costa a norte do Tejo ou a Galiza. Se optarmos pela primeira opção, o mais provável é tratar-se de dois grupos distintos, um a caminho do sul no início de Julho e outro a entrar no Douro pela mesma altura. Se, no entanto, optarmos pela segunda opção, então não é impossível que al-Hakam II tivesse recebido notícia do mesmo bando a que se referia a carta enviada por Gonçalo Moniz.

Seja como for, ao tomar conhecimento de que os nórdicos tinham sido avistados, o califa trata de organizar uma resposta militar. O almirante Rumahis parte de Córdova rumo a Almería a 3 de Julho e, também segundo o documento 8, al-Hakam II reuniu-se ainda com um visir Galib ibn Abd al-Rahman, a quem entregou o comando de um exército que queria enviar contra os vikingues. Se a ameaça não era assustadora – pelo número de navios ou por qualquer outro motivo que desconhecemos – é caso para dizer que, no mínimo, o califa tinha em mente os acontecimentos de 844 e não queria correr riscos. Assim, segundo o documento número 9 (García Gómez 1967, 48-

153 9), Galib parte com o seu exército a 13 de Julho, enquanto a esquadra comandada por Rumahis levanta âncora no fim do Ramadão (final de Julho), rumo a Sevilha e de lá em direcção ao mar setentrional (Anales palatinos, doc. 13; García Gómez 1967, 51).

A notícia seguinte regista o regresso da frota muçulmana sem que tenha chegado a combater os vikingues (Anales palatinos, doc. 29; García Gómez 1967, 76). Diz o texto que os piratas nórdicos foram derrotados e que desistiram de navegar para sul. Acrescenta que para isso terão também contribuído as defesas do Andalus, os exércitos recrutados e a esquadra enviada contra eles. O autor da notícia pode estar apenas a engrandecer a força militar do seu país, exagerando a sua capacidade de mobilização e descrevendo os piratas como um grupo assustado, mas pode também estar a deixar passar uma realidade distinta da do século IX: uma maior preparação do Andalus contra as investidas nórdicas. A reacção rápida e talvez até desproporcionada de al-Hakam II é disso exemplo, principalmente quando comparada o saque de Sevilha de 844. Quanto à derrota que o texto diz ter sido infligida aos vikingues, desconhece- se o local exacto. Se foi em território andalus, talvez se possa atribuir a vitória a Galib, que regressou a Córdova a 24 de Novembro com o seu exército depois de, diz o documento número 38, ter andado a perseguir ou a espiar os nórdicos. Ou terá sido literalmente isso: seguir e espiar conforme era informado da localização dos vikingues, mas sem que tenha entrado em confronto com eles. De qualquer modo, chegado o mês de Novembro, a ameaça deste grupo pirata em particular parece ter passado.

Resta recuperar a questão de se seria um único bando ou se se dividiu na foz do rio Douro. Já referimos que ambas as hipóteses são possíveis e nada nos textos nos permite concluir por uma ou por outra. Mas, para que a análise não fique incompleta, consideremos uma rota hipotética. Assumindo que à Santaver do documento número 8 corresponde a moderna Santander, o mês de Junho de 971 marca a chegada do grupo vikingue ao norte da Península Ibérica, de onde seguiu para a costa ocidental. A 8 de Julho entram no Douro, numa altura em que já tinham começado a correr notícias sobre as suas acções: o califa em Córdova já está informado da presença dos nórdicos no dia 3, enquanto o embaixador de Gonçalo Moniz parte de Astorga no dia 9. A partir daqui, pelo menos parte do grupo segue para sul, desconhecendo-se que locais atacou. Apenas se sabe que terá sido derrotado e que recuou para norte, permitindo à frota muçulmana um regresso a Sevilha ainda no Verão.

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Como é óbvio e nunca devemos esquecê-lo, tudo isto é hipotético. É uma reconstrução possível feita a partir de peças soltas que podem ser usadas para outros cenários igualmente hipotéticos. Até porque há outro, já referido, que é o de que o exército de Gunderedo, derrotado em 969, se tenha fragmentado, dispersado pela costa da Península Ibérica e levado a cabo acções de pilhagem ao longo dos anos seguintes.