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3   Dreigroschenoper (1928)

3.4   Dreigroschenoper cena a cena 123

3.4.3   Cena 2 154

Esta é a maior cena da peça, tanto na duração quanto no quantitativo de números musicais. Há números rápidos e bem inseridos na contracenação, como o Hochzeitslied que se repete três vezes, há números com canções que recebem a moldura do letreiro e da luz dourada conforme a clássica rubrica de Brecht (Seeräuberjenny e Kanonensong) e há um número final romântico (Liebeslied) que também ocorre dentro da contracenação, sem a

ruptura palco-platéia característica da canção. Além disso, há momentos em que a música se torna tema na fala de uma das personagens, marcado no gráfico acima com traços verdes finos.

A cena é uma grande apresentação de Mac e, consequentemente, uma cena de contextualização de toda a peça. Ela apresenta o bando, as relações de Mac com o padre Kimball, com o amigo e delegado Brown, como também apresenta Polly e o romance entre Polly e Mac. Estas apresentações/contextualizações são feitas também por momentos emoldurados musicalmente onde uma ou mais personagens trazem seus contextos específicos, embora toda a cena aconteça no mesmo local: a estrebaria vazia que Mac e seu bando escolheram para celebrar o casamento de Mac e Polly. O bando se encarrega de trazer um ritmo cômico com suas movimentações ao arrumar a festa, e com suas “piadas sujas”.

Há um entrecruzamento destas personagens em suas funções e contextos. Como se pode ver no gráfico temporal da cena, as duas principais canções articulam o padre

(Seeräuberjenny)49 e o delegado (Kanonensong)50, enquanto as outras não criam a moldura

com a “luz dourada”, agindo de uma forma mais naturalista sobre a contracenação, como Hochseitzlied51, que se repete três vezes na forma de uma brincadeira jocosa típica do bando,

e Liebslied52 que só ocorre quando todos já foram embora, e que funciona como conclusão

ou desdobramento da cena, representando a “lua de mel” do casal. Porém, como vamos ver, o tipo de mímese musical romântica aqui alcançada não se coaduna a uma cena típica de ópera romântica, pelo seu conteúdo e gesto irônico, tanto na letra quanto na música. E mesmo a mímese da brincadeira do bando surpreende pela elaboração do arranjo vocal de Weill, que contrasta a brincadeira com um coro a cappella, criando um forte momento de suspensão.

Um ritmo global é demarcado pelo bando e pelas três vezes que ele canta. Há também três inserções específicas que modificam este ritmo global: a) o momento em que o padre

49 Cf. em https://www.youtube.com/watch?v=DViOKwBhud0&index=14&list=PLF016038928C41E0C 50 Cf. em https://www.youtube.com/watch?v=KS8_ByF6M9g&list=PLF016038928C41E0C&index=6&spfreload=10 51 Cf. em https://www.youtube.com/watch?v=HxbE1JemYyA&index=5&list=PLF016038928C41E0C 52 Cf. em https://www.youtube.com/watch?v=9hrQe1vSgks&index=7&list=PLF016038928C41E0C

chega e que Polly canta; b) o momento em que o padre vai embora, chega Brown e cantam juntos Brown e Mac; c) o momento em que todos vão embora e cantam juntos Mac e Polly. Nesta cena começam a aparecer as notas de rodapé de Brecht a respeito dos personagens e das formas de atuação. São diversas notas, intituladas “Observações para os atores”, e que tecem diretrizes à atuação com relação ao que ele propunha como “teatro épico”, explicando como o ator (ou a atriz) deveria tanto “assumir aquela atitude através da qual o acontecimento flui com facilidade” – num sentido aqui claramente mimético, dramático – quanto, por outro lado, “narrar mais ao espectador sobre a personagem a ser representada do que [aquilo que] ‘está em seu papel’”. Brecht preocupava-se com que os atores pudessem também apresentar aos espectadores posicionamentos críticos sobre o que eles mesmos representavam. Ao se referir a Polly, por exemplo, apresentar “sua crítica às imagens usuais do espectador quanto ao que seja uma mulher de bandido, uma filha de comerciante e assim por diante” (BRECHT, 1992, p. 24). É importante notar, porém, que

estas observações só apareceram no texto que Brecht republicou em 193053. De uma forma

geral, estas observações seguiam a tendência que já havia sido delineada do espetáculo, no sentido de construir personagens de certa forma cômicos e absurdos, de forma a abrigar contradições sociais e características de personalidade não-usuais aos seus papéis sociais. A apresentação de críticas às imagens usuais poderia ser produzida a partir da direção de Brecht, que utilizava recursos de interrupção e estranhamento, e a partir do texto, tanto em sua temática de crítica social quanto na forma que Brecht o construiu, com recursos de distanciamento e de separação entre as cenas e entre as situações dentro das cenas.

Vendo por este ângulo, a entrada do número que Polly canta faz parte de uma série de articulações que já vinham ocorrendo dentro da cena, ora em um plano ainda mimético, com a quarta parede acionada, onde se faz referências textuais à música (marcadas pelas linhas verdes), ora articulando em meio duas intervenções rápidas do bando, meio mescladas à contracenação. Em seguida, temos o anúncio mais demorado de Polly quando resolve cantar, o que marca a construção gradual de um momento de interrupção e distanciamento maior.

Polly primeiro explica que vai contar uma história que presenciou, uma vez, num boteco. “Ela era a copeira e, vejam, senhores, todo mundo ria dela; mas aí ela se dirigia aos fregueses e dizia para eles o que eu agora cantarei para os senhores”. E então ela começa a montar a cena, dando as marcas, dizendo “isto aqui é o pequeno balcão, imaginem”, pede para Walter, do bando, contracenar com ela e perguntar: “Então, quando é que vai chegar teu navio, Jenny?”. E pede para Mathias perguntar: “Você continua lavando os copos, Jenny, sua noiva de pirata?” (BRECHT, 1955, p. 34-35). Esta pequena preparação, uma brincadeira de teatro dentro da cena é demarcatória de uma ruptura, ou seja, de uma quebra da moldura da cena. Mas nem por isso deixa de ser gradual. Depois que eles perguntam, ela ainda comenta: “Isso, e agora eu começo”, e assume a nova configuração do gestus, na qual ela apresenta o seu canto.

Brecht fez, em várias das cenas de Dreigroschenoper, esta preparação para o momento da canção, um tipo de ritual onde os personagens se preparam e anunciam que vão cantar. Aparece então a rubrica: “Iluminação para canção: luz dourada. O órgão é iluminado. Do alto da cena descem três refletores presos a uma barra. Nos letreiros lê-se: ...”. Isto mostra que o gestus e a sua construção por meio da música era variada, propondo diferentes intensidades de ruptura e reconfiguração da cena.