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2   Significação musical 75

2.2   Morley e os estágios do gestus musical 86

Talvez o autor que mais trouxe estímulos a esta pesquisa, na discussão sobre o gestus, foi Michael Morley, em seu texto “Suiting the action to the word: some observations on gestus and gestiche musik” (MORLEY, 1986, p. 183-201), ao propor uma leitura do gestus musical de uma maneira bem focada na performance e na relação texto-música. Morley busca “bons exemplos” de combinação texto-música na parceria Brecht-Weill. Seu trabalho chama a atenção para o seccionamento e articulação das partes da canção nas relações entre texto e música.

Uma das mais distintas características de uma canção de Brecht e Weill (mas, certamente, não apenas as canções deles) é o fato do texto e música, ao invés de simplesmente progredirem organicamente, procederem em estágios ou episódios. Uma seção distinta segue a outra ao invés de um todo emergir gradualmente do fluxo da música e texto juntos. (Em alguns casos, é claro, esta estrutura corresponde ao padrão verso/refrão ou uma simples forma A+B+C+refrão). (Ibidem, p. 192, tradução nossa).20

Este seccionamento, presente em canções tanto de Weill quanto de Eisler, articula a apresentação em partes diferenciadas, recorrentes ou até opostas, permitindo explorar a contradição, a ironia, o comentário ou o distanciamento. Mas como isto ocorre?

Em primeiro lugar, cada canção apresenta uma “síntese de uma situação dramática” (a dramatic situation in nuce) onde podemos ver o cantor, o personagem contando uma história e comentando-a para a plateia, convidando o espectador a fazer parte desta apresentação

20 One of the most distinctive features of a Weill/Brecht songs (but, to be sure, not only of theirs) is the fact that the text and music, rather than simply evolving organicaly, proceed in stages or episodes. One distinct section follows another rather than a whole emerging gradually from the flow of music and text together. (In some cases, of course, this structure corresponds to the verse/refrain pattern or a simple A+B+C+refrain form).

(Ibidem, p. 191). Tomando como exemplo a canção Barbarasong, Morley observa que o texto de Brecht sugere uma atitude a ser sustentada, um gestus até o refrão e, em seguida, uma mudança na linguagem poética, assumindo um gestus diferente, que rompe com a situação que foi anteriormente apresentada. A música de Weill, por sua vez, oferece estágios intermediários em cada uma destas duas grandes seções textuais.

Ao invés de representar apenas esta atitude, o performer é guiado pelo arranjo da música de Weill para mostrar atitudes em estágios. Este procedimento está muito perto da noção de achar os beats em uma fala de um personagem que articula o gestus de um contador e com este a atitude ingênua (talvez forçada), com a qual o público é forçado a compartilhar, não apenas por meio do “eu era assim, como você”, mas por meio do vívido balanço da música. (Ibidem, p. 192, tradução nossa)21

Estes estágios internos às partes principais da canção, portanto, funcionavam como “guias” de significação na forma de arranjos musicais criados por Weill, que serviam aos atores-cantores como referências contextuais produtivas para a sua performance. O que nos cabe pesquisar aqui é a articulação, ou seja, as formas pelas quais este significado é produzido, percebido e configurado em um contexto interartístico. Morley procura ir além da ausência de uma definição sistemática ou sucinta de gestus de Brecht ou Weill, propondo partir de um denominador comum.

Os conceitos um tanto nebulosos de Gestus e gestiche Musik [música gestual], que não foram definidos nem sistemativamente nem sucintamente por Weill ou Brecht, descrevem nada mais que uma técnica para escrever [texto e música] critica e sucintamente dentro de um contexto dramático. (Ibidem, p. 183, tradução nossa).22

21 Rather than playing only that attitude, the performer is guided by Weill’s musical setting to show attitudes

in stages. This procedure is very close to the notion of finding the “beats” in a character’s speech that

articulate a change in mood or intent. Thus, the song’s opening section establishes the Gestus of the storyteller and with it an attitude of (perhaps forced) naiveté, which the audience is invited to share, not only through the “einst so wie du” but through the jaunty bounce of the music.

22 The rather nebulous concepts of Gestus and gestiche Musik, defined neither systematically nor succinctly by either Weill or Brecht, describe nothing more than a technique for writing pointedly and economically within a dramatic context.

Para Weill, isto significa “(...) concentrar-se em concisas células melódicas e rítmicas para comunicar musicalmente o núcleo dramático fundamental de uma cena” (Idem,

tradução nossa)23. Morley observa que há canções que “apresentam personagens em palco

com uma justaposição episódica e alternância de atitude e comportamento que são refletidas na música” que se diferenciam de outras canções onde “palavras e atitudes do cantor estão

difusas e absorvidas pela música em si mesma” (Ibidem, p. 195, tradução nossa)24.

Um aspecto importante a ser notado, inicialmente, é que estas “seções” criadas por Weill nesta canção, dividindo a música a partir do texto, não tinham por objetivo uma “aclimatação” psicológica ou emocional. Buscava-se, ao contrário, dar uma referência-guia à cena de maneira autônoma, por meio da música. A música não segue a cena mimeticamente em seu clima emocional ou descritivo, como na máxima trazida por Tragtemberg para discussão: “a boa trilha sonora é aquela que não se percebe” (TRAGTENBERG, 1999, p. 13). Num extremo oposto a isto, Weill criava charmosas melodias e harmonias em cada um destes estágios que traziam efeitos singulares disponíveis para serem aproveitados pelos atores-cantores, e muitas vezes sugerindo emoções ou

metáforas em oposição, de forma irônica. Kowalke nos lembra que Weill via o gestus como

uma ampliação e mudança de foco na capacidade de comunicação da música25. O resultado

disso, bem notado por Kowalke, era múltiplo26.

Aqui vamos procurar compreender não só a relação entre música e texto, mas em uma concepção multimidiática dos momentos em que as cenções se relacionam com a cena que, por sua vez, se relaciona com todo o espetáculo. Se conseguirmos identificar efeitos compartilhados entre texto, música e encenação, podemos procurar compreender estes na enquanto camadas que se sobrepõe, sendo a canção uma destas camadas. Os efeitos produzidos pelo aparecimento da canção estão relacionados à situação cênica em que ela

23 (...) concentrating on concise melodic and rhythmic cells to convey musically the underlying dramatic kernel of a scene.

24 (...) present characters in stages with an episodic juxtaposition and alternation of attitude and behavior that are reflected in the music (...) words and attitudes of the singer become blurred by, and are absorbed into, the music itself.

25 Ver p. 49.

está sendo apresentada, ou seja, ao gestus produzido ao ser cantada. As diversas situações cênicas são as delimitações que os chamados “instantes multimidiáticos” (Cook) configuram diferentes relações entre os elementos, em um processo não só entre música e texto, mas entre música e atuação/canto, entre música e cenografia/iluminação/projeções. Além disso, as situações cênicas se transformam por meio de rupturas, configurando os “estágios” ou “episódios” que mencionava Morley. Portanto, mesmo que estas novas camadas surjam da liberdade que a música adquire perante a performance, elas também surgem na forma de outras relações de interrupção e montagem. Isto nos leva ao esforço de tentar compreender todo o espetáculo, e não só as canções, mas a contribuição conjunta entre Brecht — representado pelo texto (musical) — e Weill — representado pela música (gestual). Mas agora vamos procurar olhar para esta camada musical dentro deste conjunto de relações.

Morley nos auxilia a compreender que uma canção como Barbarasong possui uma síntese e diversos seccionamentos. Podemos ver Barbarasong como um dos momentos de uma apresentação, como um momento que interrompe outros, que se insere em um fluxo que vinha ocorrendo. Para isso precisamos compreender a cena 3, em que momento ela aparece e o que acontece com a sua aparição. Precisamos também compreender como a letra organiza

suas imagens e metáforas no jogo que ela cria com a música e vice-versa27. Considerando

todo o espetáculo, a tarefa seria compreender como cada elemento cria vínculos com os outros elementos, compondo momentos multimidiáticos delimitados, durante os quais são produzidas configurações próprias, específicas, diferentes de outros momentos, rupturas que estes momentos representam no decorrer do espetáculo, criando distanciamento, ritmo e uma significação que muitas vezes aponta para a plateia, rompendo com a quarta parede, entre outras. A análise multimidiática “(...) fornece um inventário de caminhos nos quais

diferentes medialidades podem se relacionar entre si” (COOK, 1998, p. 98, tradução nossa)28.

Vimos que as análises de Rambo-Hood e Fowler apontam para um mesmo problema: a significação musical. Porém, nenhum deles oferece modelos alternativos para análise de canções. Ao apresentar o artigo de Morley, que tem a intenção prática e explícita de analisar

27 Mais adiante, em 2.4, analisaremos Barbarasong e seu contexto de cena.

“como e porque canções em particular são efetivas em sua combinação de palavra e música”

(MORLEY, 1986, p. 183, tradução nossa)29, demos um primeiro passo em direção ao gestus,

embora a questão da encenação tenha sido pouco explorada. Em que avançamos? Reconhecemos nas partituras de Weill “episódios” diferentes entre si, que interagem com o texto e oferecem um material musical para o intérprete, delineando atitudes diferenciadas. Morley aponta para um modelo de interação texto-música-performance eficiente para a cena. Falta-nos compreender melhor como estes significados são produzidos dentro da cena. Como indagar, por exemplo — seguindo Brecht — se em Barbarasong a letra cantada se opõe à melodia? Como se dá a significação que este gestus propicia na articulação produzida pelos elementos em jogo? Para ampliar um pouco mais a discussão em direção a estas perguntas, vamos trazer agora a contribuição da musicologia da performance de Nicholas Cook e a sua proposta da análise musical em contextos multimidiáticos.