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1   Um Brecht musical 24

1.2   Os festivais de Baden-­‐Baden 34

Em 1921, um grupo de músicos alemães (no qual se incluía Paul Hindemith, Ferruccio Busoni e, mais tarde, Stravinsky), lançou um festival de música de câmara em Donaueschingen, que se chamava Donaueschinger Kammermusikaufführungen zur Förderung zeitgenössischer Tonkunst (Festival de música de câmara de Donaueschinger para a promoção da arte sonora contemporânea). Kurt Weill participou pela primeira vez em 1922 (nesse ano, ele ainda não trabalhava com Brecht). O festival foi posteriormente transferido para Baden-Baden em 1927 e passou a adotar as concepções sociais e estéticas da “música funcional” (Gebrauchsmusik), que incluía uma realização criativa de ideias músico- pedagógicas. Buscava-se um maior envolvimento e uma mudança de postura do público, em contraposição à tradicional forma de recepção da música de concerto. Além disso, o fascínio pelo surgimento do rádio e do cinema proporcionava a convergência das vanguardas. Fazia- se música para rádio, música para filme, e, no aspecto pedagógico, “música para amadores”, “música comunal” (Gemeinschaftsmusik), o que fez com que o festival de Baden-Baden atraísse “cantores de várias organizações juvenis” e criasse a peça didática, ou “ópera escolar

15 Para Imbrigota, os livros-modelo permitem uma análise do teatro épico por meio da fotografia (IMBRIGOTA, 2013, p. 57)

(Lehrstück) em que se pretendia que os intérpretes aprendessem enquanto cantavam” (WILLET, 1967, p. 163-165). Hindemith e Weill adotavam as cantatas didáticas como “uma espécie de ritual cuja finalidade era ensinar certas atitudes sociais e comunitárias genéricas,

não tanto para a plateia quanto para os que participavam do ato”16 (Ibidem, p. 146).

O festival de Música de câmara alemã em Baden-Baden (Deutsche Kammermusik Baden-Baden) expandiu-se, passando a comportar mais apresentações. Em 1927, além de música de câmera, o festival apresentou também “composição para instrumentos mecânicos, música de filme, pequenas peças teatrais musicais; estas incluíram o esquete Hin e zurück, de Paul Hindemith”. Também neste ano foi apresentada a cantata cênica Mahagonny Songspiel. Em 1928, foi apresentado “composição para instrumentos mecânicos, música de filme, pequenas peças teatrais musicais, música para órgão e cantatas de câmara”. Em 1929, foi apresentado “música para rádio, O vôo sobre o oceano

(Lindbergh Flug) e A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo (Lehrstück)”17

Figura 2 – Programas originais dos Festivais de Baden-Baden em 1928 e 1929

16 Um dos motes dos festivais era o ensino da música. Na estréia de Lehrstück (ou A Peça didática de

Baden-Baden sobre o acordo) havia um grande pôster com as palavras “fazer música é melhor que ouvir”

(BLACKADDER, 2003, p. 150).

17 Os dados e imagens foram retirados da Fundação Hindemith. Acesso em 11 de fevereiro de 2015. http://www.hindemith.info/en/life-work/biography/1918-1927/leben/baden-baden/. Há fotos históricas das performances e dos cartazes dos festivais. Imagens cedidas gentilmente pela Fundação Hindemith em Blonay, Suíça (Images courtesy of Hindemith Foundation, Blonay, Switzerland).

Apesar do Ciclo de canções Mahagonny não sido uma peça didática, ele marcou o início das experiências musicais de Brecht em uma escala aumentada, pois se tratava da primeira experiência com Kurt Weill. O gênero peça didática (Lehrstücke), embora tenha se originado no festival de Baden-Baden, era uma das experiências que o festival apresentava. A divulgação e a recepção da obra de Brecht trataram estas peças como peças escritas, na forma como temos acesso hoje. Porém, estas peças, compostas a partir de 1929, tiveram uma origem musical. Andrzej Wirth lembra: “O discurso crítico nos estudos alemães tem ignorado que as peças didáticas são libretos e só podem ser interpretadas com relação à performance vocal, musical e coreográfica” (WIRTH, 1999, p. 113, tradução

nossa)18. Embora os textos conhecidos no Brasil e traduzidos da versão da editora

Suhrkamp não façam quase nenhuma referência à presença da música nestas peças19, eles

aparecem, em sua versão original, como libretos de cantatas didáticas, falando-se aqui das

quatro primeiras: O voo de Lindbergh20, composta com Kurt Weill e participações de Paul

Hindemith; a intitulada Lerhstück21, composta com Paul Hindemith, ambas de 1929;

Aquele que diz sim22, também com Kurt Weill e A decisão, composta com Hanns Eisler,

ambas de 1930. As duas primeiras foram apresentadas no Festival de Música de Câmara de Baden-Baden e no Festival da Nova Música de Berlim23, ao passo que Aquele que diz sim estreiou noZentralinstitut für Erziehung und Unterricht também em Berlim. A decisão, de 1930, de “forte sabor político”, com canções de Eisler “revolucionárias em seu impacto”, por sua vez, teve sua participação questionada por Hindemith e os outros diretores do Festival (WILLET, 1967, p. 175) e estreiou no Berliner Philharmonie.

Houve um conjunto de trabalhos experimentais e simultâneos entre 1927 e 1932, pois Brecht e parceiros músicos tanto montavam espetáculos operísticos como também

18 The critical discourse in German studies has overlooked that the Lehrstücke are libretti and can be interpreted only in relation to the vocal, musical, and choreographic performance

19 Com exceção de Aquele que diz sim e Aquele que diz não, onde se lê o subtítulo “óperas escolares”. 20 Posteriormente intitulada O voo sobre o oceano, versão de Brecht.

21 Também chamada A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo, na versão posterior de Brecht. 22 Logo após a estreia, o espetáculo foi modificado em de duas novas versões elaboradas por Brecht. A

terceira versão foi intitulada Aquele que diz não, e Brecht tomou-a como uma contraparte dialética da primeira versão, unindo-as com nome Aquele que diz sim e aquele que diz não. A primeira versão é toda musicada e é a única adotada por Kurt Weill.

participavam dos festivais de música de Baden-Baden com obras dramático-musicais24. Embora possamos classificar estas peças selecionadas como pertencentes a um campo ou a outro (óperas ou peças didáticas), havia um entrelaçamento entre os dois tipos de trabalhos em suas estruturas composicionais e de montagem. As peças didáticas, ao contrário do que vemos normalmente divulgado, foram espetáculos com uma presença preponderante da música. O trânsito pela ópera era feito de forma crítica e não subserviente ao cânone, ao mesmo tempo em que, nos festivais de música, as experiências promoviam a interdisciplinaridade. Como observou Calico (2008), neste momento buscava-se experimentar novas relações palco-platéia por meio da música:

[...] o trabalho simultâneo de Brecht tanto nas peças didáticas quanto na ópera gerou a estrutura, a prática da performance e a experiência do público do teatro épico para um propósito fundamental de um novo contrato com o público, e a música era essencial a este projeto (CALICO, 2008, p. 40, tradução nossa)25.

Calico sugere uma gradação entre as óperas e as peças didáticas de Brecht. As duas ocupavam os dois extremos de gênero no teatro musical. As peças de aprendizagem situavam-se do lado de fora do sistema operístico, como anti-óperas, enquanto as óperas propriamente ditas (a Ópera dos três vinténs e Mahagonny Aufstieg), trabalhavam “do lado de dentro do sistema” (Ibidem, p. 16). Dois aspectos que a autora aponta para definir “anti- ópera” são: uma nova relação com a platéia (Ibidem, p. 17) e a presença maior do coro. Cantar em coro era uma forma de se tornar coletivo, de se opor à anestesia social da ópera, de enfraquecer o mecanismo de ‘diva’ e sua ênfase no cantor individual (Ibidem, p. 27).

Além disso, as experiências com as peças de aprendizagem serviam como um campo para as experiências de separação e articulação dos elementos do espetáculo (música, palavra, encenação, atuação). As peças de aprendizagem, enquanto “poemas sonoros com

24 Apesar do foco desta pesquisa ser a música em cena, não se pode deixar de mencionar que, neste período, Brecht mostrou em suas montagens uma enorme capacidade para mesclar influências diversas, como o teatro chinês, japonês, indiano, shakespeariano, a tragédia grega, as peças populares da Bavária, e dramaturgos alemães como Buchner e Wedeking. Também se destaca, neste período, a participação de Brecht no coletivo dramatúrgico de Erwin Piscator (1927), e a sua produção de textos teóricos sobre o rádio.

25 [...] Brecht’s simultaneous work on both Lehrstücke and opera generated the structure, performance practice, and audience experience of epic theater for the fundamental purpose of a new audience contract, and music was essencial to that project.

música”, envolviam uma flexibilidade de montagem por princípio. A música, como um meio disciplinador no tempo do espetáculo, permitia a ação, a declamação, o sequenciamento de eventos. Ela impunha “um grau de organização em um texto, por outro lado, flexível; e ela facilitava a participação em comum” (Ibidem, p. 23).

As peças didáticas eram experimentais e testavam limites e possibilidades. As óperas propriamente ditas, por sua vez, claramente utilizavam a ópera para criticarem a própria ópera. Mas havia trabalhos que não se enquadravam exatamente como “peças didáticas” ou “óperas”, como Mahagonny Songspiel, classificado como “cantata cênica” ou Happy End, um “teatro musical”.

Todas as peças didáticas possuíam coro, mas A decisão surpreendeu: estreou dominada por centenas de cantores de três corais de trabalhadores. (Ibidem, p. 27). Para Eisler, que já havia incorporado a música dentro de sua prática política antes de Brecht, e que em 1930

trabalhava para a Liga alemã de trabalhadores cantores26 (CALICO, 2005, p. 68) o coro era a

forma musical que atendia à nova finalidade revolucionária da música. Ele alertava aos cantores que “Todo cantor deve considerar, plenamente, o conteúdo político de seu canto; e também deve criticá-lo. Em A decisão, o coro é um orador coletivo que traz às massas um

determinado conteúdo político.[...]” (EISLER, 1976, p. 131, tradução nossa).27

O voo de Lindbergh questionava o sistema de produção e reprodução cultural, numa reflexão diretamente dirigida às novas mídias: o rádio e cinema. A montagem foi um experimento radiofônico que já prenunciava as reflexões que Brecht posteriormente

sistematizou sobre o rádio28.

[...] o rádio tem uma face, quando deveria ter duas. Ele é um mero aparato de distribuição, ele simplesmente reparte algo. [...] apresento uma proposta para a modificação de seu funcionamento: o rádio deve deixar de ser um aparato de distribuição para se transformar num aparato de comunicação. (BRECHT, 2007, p. 228)

26 DASB - Deutscher Arbeitersängerbund.

27 Todo cantante debe tener en cuenta, plenamente, el contenido político de su canto; y también debe criticarlo. En La medida, el coro es un orador colectivo que refiere a las masas un determinado contenido político.

O texto e a música também eram vistos como aparatos transformáveis. O texto de

Brecht passava também por constantes revisões29.

Aquele que diz sim30, segundo Hinton, foi o maior sucesso de Weill na Alemanha, tendo sido apresentado mais de 300 vezes a partir de 1930, antes dos nazistas tomarem o poder em 1933 (HINTON, 2012, p. 191). Recebeu duas revisões por Brecht, que queria responder às críticas recebidas. Weill musicou a primeira revisão, mas já a terceira versão textual de Brecht (Aquele que diz não), Weill não musicou (Ibidem, p. 190).

As peças didáticas eram eventos de teatro musical flexíveis em sua composição, propondo novas relações entre palco e platéia. A participação de Brecht nestes festivais mostra que havia um encontro de vanguardas na época que propiciava experiências interdisciplinares e comunitárias, tanto por parte dos músicos quanto por parte dos dramaturgos. Com isso, fronteiras entre o didático e a apresentação, ou entre música e cena, eram questionadas. Foi nesse contexto que Brecht e Weill iniciaram e desenvolveram sua rápida parceria, que durou apenas três anos (1927-1930).