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1   Um Brecht musical 24

1.4   A polêmica Brecht X Weill 45

1.4.1   Diferenças nas fontes 48

A diferença entre as partituras (de Kurt Weill e Paul Hindemith) e os textos de Brecht para os espetáculos do período é bem significativa. Vamos agora apresentar e comentar dois exemplos, entre as peças de aprendizagem. O primeiro trata da peça Aquele que diz sim e suas versões. Divulgou-se a versão final de Brecht, como peça de teatro, e poucos sabem que todo o texto-libreto de Brecht era cantado e aparecia nas linhas da pauta da partitura publicada pela Universal Edition em 1930 (WEILL, 2008). Porém, quando Brecht escreve a terceira versão, na qual o garoto se nega a ser jogado no vale, Weill não concorda em musicá-la. O que ocorre a partir disso? A ópera escolar original, que mais interessava a Weill, passa a ser apresentada por toda a Alemanha sem a contraparte de Brecht. Até antes dos nazistas chegarem ao poder em 1933, foram trezentas apresentações (HINTON, 2012, p. 191). Neste mesmo período, Brecht escrevia seus textos teóricos sobre as peças didáticas. O texto da terceira versão se torna, posteriormente, uma das peças

didáticas brechtianas, porém sem música48.

O segundo exemplo é a peça Lehrstück (1929), posteriormente intitulada por Brecht A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo. A música foi composta por Paul Hindemith, embora o texto republicado (que conhecemos no Brasil traduzido) não cite Paul Hindemith como colaborador e nem faça nenhuma referência ao contexto original de performance do espetáculo. Já a partitura original, que traz o texto de Brecht em meio as

pautas, foi inicialmente publicada pela editora Mainz: B. Schott’s em 192949. Nela constam

52 páginas divididas da seguinte maneira (conforme a tabela abaixo).

a) 4 páginas pré-textuais, com créditos e comentários de Paul Hindemith;

47 Note-se que esta temática do “dizer sempre sim” aparecia desde Um homem é um homem (1926), como atitude da personagem Galy Gay. E ao aprofundar esta temática, em desacordo com Weill, Brecht escreveu Aquele que diz não, a “contraparte dialética” de Aquele que diz sim.

48 Para uma análise extensa sobre a peça Aquele que diz sim e suas versões posteriores, ver Capítulo 4. Fizemos aqui uma opção em discutir os conflitos Brecht-Weill neste capítulo, como parte de um panorama histórico importante à esta pesquisa. Dados sobre o contexto que dizem respeito à composição dos espetáculos ficam reservados aos capítulos de análise.

b) 31 páginas de partituras onde não há texto falado, mas cantado, distribuídas em coro, multidão em uma voz, líder do coro e narrador;

c) 8 páginas com a polêmica cena dos palhaços, sendo a primeira e a segunda página (até a metade) preenchidas com 24 compassos de música instrumental (enquanto os três palhaços entram em cena e falam em voz alta; detalhe: Herr Schmitt, o gigante, vai ao pódium). Nesta parte, mescla-se texto falado com trechos de música (5 a 6 compassos) em todas as páginas;

d) 9 páginas para a cena final, seguindo a mesma configuração das páginas anteriores à cena do palhaço.

Figura 4 – Divisão das partes da publicação de Lehrstück pela editora B. Schott’s Söhne, em 1929

Figura 5 – Cena 6 (dos palhaços) em Lehrstück (1929)50

50 Foto disponível em http://www.hindemith.info/leben-werk/biographie/1927-1933/werk/zusammenarbeit- mit-bertolt-brecht/

O que podemos pensar a respeito destas questões apresentadas? Que há uma história dos espetáculos de Brecht que não acompanha a história de seus textos e teorias. Considera-se em geral, e de uma forma aceita pelo senso comum, que as peças didáticas de Brecht foram concebidas em 1930, após ele escrever suas Notas para Mahagonny e suas críticas à ópera. Marvin Carlson, por exemplo, admite que

Ao longo do ensaio de Mahagonny, Brecht mostra-se cauteloso quanto à possibilidade de a nova forma épica conseguir romper com as expectativas do tradicional teatro “culinário” e forçar o espectador afeito à aceitação passiva a um papel mais comprometido. Em parte como manifestação dessa cautela e em parte pelo desejo de explorar as possibilidades de um teatro legitimamente socialista num futuro em que formas de compromisso como Mahagonny já não sejam necessárias, Brecht, a esse mesmo tempo, começa a modelar outro tipo de drama,

Lehrstück (peça educativa) (CARLSON, 1995, p. 372).

Posicionamentos como este deixam de lado o contexto histórico e musical dos festivais. Em suas estréias, Lehrstucke e Aquele que diz sim já eram peças didáticas, não ainda nos moldes que Brecht circunscreveu depois, mas dentro do seu contexto de origem. Mas porque devemos considerar como “peça didática brechtiana” somente o que Brecht publicou posteriormente, deixando para trás as experiências das estréias e da primeira versão do texto escrita por ele? O que foi a experiência com Aquele que diz sim, antes das alterações que Brecht fez no texto? E a Ópera dos três vinténs? Teve sua estréia e seu meteórico sucesso com base em que texto? Não podemos nos privar de acessar os textos em sua origem apenas para concordar com Brecht na renovação pretendida para o seu teatro. Os espetáculos eram coletivos e foram frutos de processos criativos plurais.

O problema aqui identificado não está somente na ruptura com Weill e nem na opção de Brecht por um teatro político mais comprometido. As teorias sobre a peça didática brechtiana nasceram neste contexto e isto também é historicamente significativo, e sabemos que este projeto foi posterirmente resgatado e sistematizado por Steinweg na década de 70, encontrando também fortes correspondências em trabalhos como o de Augusto Boal ou Paulo Freire – para citar apenas alguns exemplos brasileiros. Queremos chamar a atenção aqui para uma diferença de recortes históricos com relação às Lehrstücke,

mesmo se queremos compreender apenas as peças didáticas brechtianas. Há um descompasso ou hiato criado entre a perspectiva histórica das montagens das peças didáticas e a perspectiva da produção teórica e literária de Brecht, o que gerou um afastamento da compreensão das condições de produção dos espetáculos em suas características musicais.

O estudo de espetáculos, nos anos 30, praticamente não existia na perspectiva acadêmica interdisciplinar que temos hoje. A musicologia também não considerava a música popular como objeto de estudo. Calico critica tanto os musicólogos quanto os estudiosos de Brecht sobre o abandono das origens musicais das peças didáticas.

As peças didáticas não foram sempre consideradas apropriadas para o estudo musical, mesmo tendo Weill considerado Aquele que diz sim a sua composição mais importante até 1935.

Apesar disso, ainda hoje há argumentos em prol da peça escrita. Calico ainda acrescenta:

O argumento literocêntrico agora é o discurso dominante. Ele assume que o texto da peça didática poderia se desenvolver independentemente da sua música e, por extensão, da contribuição de seus colaboradores. Ele omite a música, como se ela não tivesse desempenhado nenhum papel na realização dos principais objetivos destas peças. (CALICO, 2008, p. 22, tradução nossa)51.

Aqui encontramos o cerne da questão. Quais eram os principais objetivos destas peças? Embora houvesse diretrizes estético-pedagógicas nos festivais de Baden-Baden, elas não agradavam a Brecht. Por outro lado, não se tratavam apenas de “peças” no sentido tradicional, mas complexos processos criativos. Considerando também os conflitos entre os parceiros, torna-se difícil falar em objetivos claros e comuns sendo partilhados. Havia

51 The Lehrstücke have not always been considered worthy of musical study, even though Weill himself identified He Who Said Yes as his most important composition to date in 1935. (...) the literocentric argument is now the dominant discourse. It assumes that the Lehrstück text could and did evolve independently from its music and, by extension, the contribution of those colaborators. It omitts the music, as if it had played no role in achieving the primary objetives of these pieces.

muitas divergências. Porém, hoje há uma falsa imagem de que as peças didáticas reescritas correspondem estritamente ao que Brecht desejava para o seu teatro didático.

Vemos uma tensão entre a aceitação histórica do trabalho de Brecht por ele mesmo, conforme ele o reescreveu e reformulou a partir de 1930 – pólo que, diga-se de passagem, possui um status considerável – e a tentativa de recuperar o contexto de produção material das performances históricas e de seus processos criativos. Nesta tese, estamos mais próximos da segunda opção, procurando nos deter nas discussões sobre as diferenças e possíveis alterações que envolviam não somente os seus artistas criadores, mas todo um público participante. Claro que havia platéias nas peças didáticas, mas estas eram um outro tipo de platéia, que participavam, que respondiam a questionários e interfiriam. Mas não por isso devemos afirmar que estas peças “não possuíam platéia”, e manter uma imagem idealizada. Na crítica que Calico faz a Jameson (entre outros) isto fica bem claro, “pois Jameson escreve sobre a necessária ‘exclusão da platéia’ (grifo da autora)” (CALICO,

2008: 17, tradução nossa)52.

A complexidade desta discussão está tanto nas diferenças entre as inclinações estéticas e políticas de Brecht e Weill quanto na discussão teórica sobre a “natureza” das peças didáticas. Enquanto Calico procura defendê-las enquanto gênero musical do qual Brecht buscou os estímulos para compor sua teoria (CALICO, 2008, p. 18-23), Jameson defende que a peça didática brechtiana teve uma origem independente de suas experiências musicais (JAMESON, 1999, p. 95).

Quando Steinweg trouxe a discussão sobre as peças didáticas na década de 70, apresentando um ótimo trabalho de compilação de um modelo para estas peças a partir dos

escritos de Brecht posteriores53, tornou-se claro que as peças didáticas continham uma

excelente perspectiva de produtividade estética grupal e que Brecht teorizou sobre esta perspectiva posteriormente, reformulando-a. Porém, a metodologia proposta por Steiweg é

52 (...) Jameson writes of the necessary ‘exclusion of the public’ (emphasis added) (...). (JAMESON, Brecht

and Method, p. 63)

53 Steinweg, Reiner (ed.). Brechts Modell der Lehrstücke. Zeugnisse, Discussionen, Erfahrungen Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1976.

uma reconstrução a partir dos escritos de Brecht, e não um estudo dos eventos que ocorreram entre 1927 e 1930.

Três críticas à proposta de Steinweg me parecem relevantes:

1) A não consideração da origem musical na peça didática, observada em Krabiel54.

“A insistência de Krabiel sobre a primazia da música é um de seus principais pontos de conflito com Steinweg” (CALICO, 2008, p. 182, n. 14). Calico observa que as peças didáticas utilizaram música na maior parte do tempo de apresentação. Este quantitativo musical nas versões originais é um “grande argumento em favor da origem da peça de aprendizagem como um gênero musical” (Idem, p. 24). Os textos de Brecht foram publicados originalmente em partituras, dentro das linhas de pauta musical, quando eram cantados, ou em versos colocados entre os sistemas de pauta, quando eram falados.

2) A definição da peça didática como evento “sem público”, voltado exclusivamente para seus participantes. Não houve exclusão da platéia nas apresentações originais. “Até com a supervisão de Brecht as peças didáticas foram apresentadas mais para platéias comuns do que platéias participantes” (Calico, 2008, p. 17).

3) O modelo de Steinweg propõe a rotatividade de papéis entre os atores, que também não ocorreu. “A música de Eisler, que requeria um grande coral e pelo menos um tenor capacitado para cada um dos números solo, fazia disso impossível” (ADLINGTON, 2004, p. 399).

Observamos que a releitura de Steinweg reafirma uma visão literária de Brecht, ao trabalhar com pressupostos de um Brecht “consolidado”, ou seja, a partir das reflexões teóricas de Brecht sobre o período das peças didáticas, e das versões escritas e lançadas posterioremente, com alterações, sem as partituras e o contexto de apresentação musical.

Em função das reorientações que Brecht assumiu no decorrer de sua carreira – e o polêmico conflito Brecht-Weill foi um dos momentos críticos destas reorientações – temos hoje um acesso mais fácil a um Brecht sem partituras e rastros musicais. Mas se quisermos acessar a versão Weill (ou Hindemith), onde está a música original, encontraremos incompatibilidade entre texto e música. Não só com relação às peças didáticas, mas

também no caso dos musicais e das óperas – onde as canções utilizadas foram divulgadas em larga escala (e que são uma das marcas mais importantes da parceria Brecht-Weill, como a canção Alabama Song) – encontraremos o mesmo problema, pois Brecht

reescreveu tanto A ópera dos três vinténs em 193055 como também Mahagonny Aufstieg.