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Chave para a Construção Acadêmica e Profissional

I. RASTREAMENTO INICIAL

1.3. Prática Judiciária no Brasil: Um Outro Mundo

1.3.1. Chave para a Construção Acadêmica e Profissional

O

problema da absorção pelo Estado dos interesses sociais em choque - pedra de toque e expoente maior de toda a positividade jurídica - não se reduz em sua aparente simplicidade, querida por muitos como condição para

perpetuarem o represamento corporativo de inúmeros

privilégios, a sua exagerada razão verificadora que se traduz por um pressuposto lógico da Ciência Jurídica. Menos cientificamente do que se poderia racionalmente imaginar, muitos elementos, não autorizados, se entrechocam nesse ambiente pelo que sofre perturbações de tal maneira graves

que o próprio sistema jurídico vai perdendo

progressivamente a sua força vinculante e da qual decorre sua natureza específica: que é a natureza jurídico- normativa. Nesse contexto, o crédito social sem cuja

presença o Ordenamento Jurídico não encontraria

legitimidade política fica organicamente comprometido.

O propósito mais significativo, pois, neste item da Tese em desenvolvimento, é justamente diagramar parte desses elementos, associados à condição de ser Juiz, à arte de proferir decisões para bem justificá-las e à própria

formação profissional, como pontos de contaminação

subsistemática que produzem, não raro, a invalidez do próprio Direito Positivo, no todo ou em parte, como instrumento de pacificação social.

Situando os problemas em margens multidisciplinares, como igualmente já dito e sem, contudo, desviá-los, em proporção imediata ou mesmo remota com estruturas de raciocínio arbitrário, pretende-se, ademais, cristalizar um plano lógico algo esquecido pelas ciências puramente formais, como a Teoria Normativa, que diz com as suas próprias fontes materiais, com os seus conteúdos e com o aparato de produção de seus resultados práticos; dados que mais se observam do que propriamente se induzem. Aliás, o racional e o razoável na obra jurídica são uma constante construção. Como refere Arnio: “no es sorprendente que uno

de los tópicos centrales de la teoria del pensamiento jurídico sea la justificación de la decisión jurídica

interpretativa.”193 Aliás, já se descreveu anteriormente a observação participativa é um método científico de grande

utilidade exploratória quando se trata especialmente da revelação de fatos e circunstâncias ocultos por referências diretamente ligadas à estrutura de poder e às ideologias.194

Ao jurista de formação genuína, inspirado na vocação que o

compromete com a descoberta e a exploração das

potencialidades do Direito encerradas em suas normas há de ser permitido o recurso às incursões sociológicas que

derivam da necessidade de garantir-lhe a própria

sobrevivência dentro de espaços cientificamente

delimitados. Questionar, por exemplo, a ineficácia da Constituição e das leis não é senão um problema de sociologia jurídica195, pois quem determina o cumprimento ou não de uma norma em relação à sua regular destinação não é bem o Direito, mas o homem que se encarrega dessa tarefa inadiável para o florescimento da vida dos povos. A lógica do discurso puramente normativo cede lugar, portanto, a uma peculiaridade antropológica e é exatamente sobre essa perspectiva que se intenta trabalhar aqui em torno do assunto proposto em homenagem ao superior pensamento de Ehrlich: “O dilema da jurisprudência consiste no seguinte: apesar de ser somente uma doutrina prática do direito, continua sendo ao mesmo tempo a única ciência do direito”.196

É evidente que se não prescinde de algum escorço teórico para a abordagem dos objetos da própria observação empírica ou participativa, mas não é da pretensão deste

autor tracejar abstrações epistemológicas puras,

exaustivas, derredor do assunto, senão apontar esquemas de contaminação que inviabilizam o fluxo natural e científico- jurídico do que se concebe, em si mesmo, como ordinário, aceitável e válido.

Reunindo o escopo temático uma pretensão mais aplicativa e prática, porque também motivado de inspiração transformadora, melhor se houve deduzi-lo tal como se fez em referência à idéia, bem presente ao inconsciente coletivo brasileiro, de que, afinal, toda Justiça é acidental, já que de certa forma tirada do acaso das manifestações humanas dos seus operadores, justamente por isso tendo de ser sempre medida em função dos atributos de quem a distribui e menos porque estruturalmente assim se reclame. Com efeito, temos um Estado de Direito formalmente estabelecido segundo a ideologia democrática, mas vivemos, paradoxalmente, como se não o possuíssemos. Não é preciso ir longe para se demonstrar essa variável sociológica. Quem por ventura necessitar dos serviços de Justiça no Brasil,

193 (1991: 30)

194 (Blalock, 1979: 50, 55)

195 (Saldanha, 1989: 39, 54; Souto, 1981: 1, 11) 196 (1986: 11)

certamente entenderá ao que estas linhas remetem. A propósito, o Direito não vale pela sua pura juridicidade. Quem quiser ser só jurista, será antes de tudo um “asno”. Isso foi dito por Bartolo de Sassoferrato ainda no Medievo, que inspirou a Tullio Ascarelli, também inspirando a Rubens Gomes de Souza, que inspirou a Alfredo Augusto Becker, que vem inspirando a José Souto Maior Borges, ex-Diretor da Faculdade de Direito do Recife, acerca dos “outros mundos”, os quais transitam, influentes e sobranceiros, sobre o “mundo jurídico”, a inviabilizarem, paradoxalmente, como que a comprovação definitiva das hipóteses científicas em geral.197

Vencer as perplexidades decorrentes de um tal quadro, agravado, além do mais, por um tempo de crises por demais agudas que emergem do meio social em seu desenvolvimento tardinheiro, é o que nos cobra a Ciência por defenestrá-las da inteligência. Daí que de acordo com Borges: “Audácia teórica é uma virtude intelectual que em nada compromete a modéstia do estudioso.”198 Em primeiro lugar, é preciso, como visto, humildade que sirva ao propósito de adequá-la, eficazmente, à razão, fora de cuja perspectiva tudo será possível e tal qual uma “droga” alienante (se for razoável a metáfora de tipo clínico), as leis acabam agindo como “drogas” alienantes também, para referir o mínimo. Apanágio para todos os males, quando elas não passam de abstrações necessárias ao processo de organização social, em cujas bases se situam os assim denominados “donos do poder”, ante a emergência de um Estado forte e o estabelecimento, recorrente na história política brasileira, de um “estamento burocrático” que os acomoda.199 E para além desse espectro, na ponta do disciplinamento jurídico da vida social, será sempre possível fraudar até mesmo com os melhores propósitos e as mais refinadas razões de Estado, o sentido que a lei encerra para o atingimento de seus objetivos institucionais em um determinado tempo e lugar. Nesta linha de argumentação, pode-se dizer que o humor do operador jurídico passa, então, a constituir elemento que entra em conta de consideração ao desate do fenômeno de igual natureza. O permeio é autofágico e produz uma zona de sombras em que tudo o que se diga sobre o Direito, como Ciência, como técnica de regulação da vida social, como princípio ético, acaba desmoronando. Só uma alusão parece encontrar compatibilidade: a de que, dentro de tal contexto, o Direito é forma de dominação do homem sobre o próprio homem, jamais de libertação.

Os dramas sócio-institucionais que o autor teve oportunidade de observar na vida judiciária que vem

197 (Borges, 1994: 19, 20). 198 (op.cit.: 20).

experimentando há mais de vinte anos, em contraposição às melhores tradições do pensamento jurídico, lhe conferem a dura convicção de que o Direito, especialmente em um ambiente provinciano, como que colonizado, periférico e subdesenvolvido, serve mais ao domínio e à prepotência do que à liberdade e à Justiça. É certa a diuturna tentativa de compreender cada vez mais essa intrigante e singular

vicissitude que agride constantemente a opção de

vocacionados genuínos pela carreira jurídica, ao mesmo tempo em que se elevam o pensamento e as preocupações sobre tantos outros vocacionados de gerações que se renovam os quais terão de passar por dilemas atrozes, conforme vão sendo convocados, pela história a enfrentá-los nunca raramente sem preparo intelectual adequado e - o que é bem pior - sem um necessário refinamento moral capaz de propiciar-lhes aptidão para a hercúlea tarefa de perseguir o justo. As grandes verdades costumam ser guardadas a sete chaves, eis que de sua revelação adviria, por hipótese, a desestruturação das fraudes intelectuais e das bases de todos os esquemas de dominação e controle operantes sem justas causas (justificação) e boas razões (razoabilidade), objeto da investigação nuclear desta Tese. Um sociólogo do Direito aborrece e incomoda justamente porque revela as verdades, nem sempre virtuosas e quase sempre impunes, que se encontram por traz das puras aparências das instituições jurídicas, tidas como funcionais, refletidas por meio da linguagem. Sobre isso: “Quando os jogos de linguagem mudam, há uma modificação nos conceitos e, com as mudanças nos conceitos, os significados das palavras mudam também.”200

Pensar sobre isso tudo segundo uma tríplice

perspectiva formal, ética e prática é a razão motivadora desta modesta contribuição acadêmica que a generosidade dos doutos saberá refundir às necessárias críticas que a depurarão de suas imperfeições.

Nada pode ser mais desproporcional, desarrazoado e quimérico do que a formação jurídica posta sob bases com as quais doravante e desde logo vem se ocupando este texto por efeito de comparação.

1.3.2 As “Elites Bacharelescas” e o Problema da Formação