• Nenhum resultado encontrado

I. RASTREAMENTO INICIAL

1.3. Prática Judiciária no Brasil: Um Outro Mundo

1.3.3. A Vocação Decadente

C

orolário de uma estrutura virtualmente ultrapassada em que ainda nos dias de hoje vergasta Judiciário brasileiro, observas-se sobre o mais observa-se uma quase

inteira ausência de planificação na carreira da

Magistratura sob o crivo dos Tribunais. Uma falta de

auspiciosa transparência em sua disciplina acaba

propiciando desalento entre os membros da própria carreira judicial com evidentes reflexos na produtividade e, sobretudo, na qualidade do trabalho judicial. Esse

desalento desborda em desmotivação que inibe o

florescimento das vocações judiciárias, espaços que passam a ser preenchidos, de regra, por pessoal ávido, simplesmente, por emprego estável e relativamente bem remunerado. Os juristas de formação genuína, estes têm escasseado para a formação de uma nova geração de Magistrados melhor sintonizada com as exigências de um tempo de modernidade que no Direito reflete em questões candentes como a razoabilidade e a justificação, que extrapolam os limites das técnicas puramente dogmáticas.230 De fato, “Si hay alguna profesión que pueda servir de

modelo a toda la sociedad, en este sentido, es precisamente

la profesión del Juez.”231 Sobretudo: “O juiz integra um dos

Poderes da República, mas nem por isso declina de ser cidadão. E, mais do que o direito a ter direitos, a cidadania impõe deveres.”232

É mesmo como refere Kanitz: “Especialmente em um país onde a visão política impera sobre o certo e o errado. E neste contexto quem não tem jogo de cintura sofre, e tem poucas chances de sucesso.”233 E não são outros os episódios que a sociedade brasileira tem assistido em relação aos seus Juízes, arregimentados sob o pálio da cidadania que

230 Nota: Na direção psicológica da vida moral, deter mina o homem o seu modo de

agir. Ao dominar os próprios medos o faz com coragem. A vontade que desse fenô meno decorre adquire duas aplicações distintas: uma natural ou física, outra essencialmente volitiva ou moral. A coragem física decorre de uma constituição natural - biopsíquica - favorável ao homem, que o torna impassível diante dos perigos, seus músculos imobiliza m-se e seus sentimentos sofrem um súbito anestesiamento, eis que os nervos não se excita m. A coragem moral não esconde a sensibilidade ao medo, mas envolve uma força de vontade tamanha que o medo e os perigos acabam sendo vencidos pelo homem assim corajoso. “ Treme carcassa maldicta, que eu te farei marchar (sic)” , teria sido a frase de Henrique IV no cerco de Cahors. (Pécaut, s/d: 124, 126).

231 (Stammler, 1981: 111). 232 (Nalini, 2000: 21/09). 233 (1994: 28/07).

mascara cenas de corporativismo explícito que se traduzem, quase sempre, por disputas reivindicatórias por remuneração

e outras vantagens edulcoradas pela retórica das

prerrogativas funcionais, também quase sempre inaplicáveis. O exercício abusivo dessa cidadania reflete no gestual político da categoria dos Magistrados, até bem pouco impensável, quando adjudica, arbitrariamente e sem se aperceber do papel que representa para a sociedade e o Estado e pouco se importar com o paradoxo dessa conduta organizada, formas de luta corporativa que assumem clara feição sindical, a exemplo da decretação de indicativo de greve.234 Curiosamente, a Magistratura de primeiro grau subleva-se como autêntica linha de frente enquanto que as

cúpulas, quando interessadas nos resultados desse

enfrentamento social, não assumem o mesmo parâmetro, abertamente, e silenciam, salvo exceções, diante desses cenários reivindicatórios cujos desgastes mais pesados são assimilados, normalmente, pela primeira. No entanto, assim como nos bastidores da política partidária, também nos bastidores da vida judiciária há muitos interesses em jogo que nem sempre podem ser explicitados claramente. Esta

circunstância segue agravada, outrossim, ante a

inexistência no país de um sistema eficaz de Controle Externo e Social da Magistratura bem como de sua atividade não jurisdicional.235

Ademais, fatores administrativos como a motivação, a remuneração e o ambiente de trabalho, quando gerenciados

com inadequação funcional, impropriedade ética ou

hipossuficiência material, também consistem em elementos desabonadores da boa condução judiciária dos agentes públicos da Administração da Justiça.236 Não cabe aqui descrevê-los, senão enfatizar o plexo de circunstâncias que direta ou indiretamente possam contribuir para o abalo de um certo tipo de vocação profissional a qual se deveria ofertar incolumidade em benefício da própria dinâmica operacional do Estado Moderno: a Jurisdição. Sobre isto, também consultar Nogueira.237 Todavia, não se refuta a esclarecer um episódio bastante emblemático nessa seara de abandono velado da vocação em favor de interesses corporativos claros. Falando, pois, em termos de uma sociedade por demais desigual como é o caso da sociedade brasileira, o argumento vencimental parece mesmo perder consistência e de fato perde, porque afinal, entre pobres, quem tem o mínimo é rico. No entanto, é alegórica a alusão de ganhos estratosféricos por parte da Magistratura. Seus vencimentos podem não ser bons o quanto poderiam ser ou mesmo deveriam ser, mas também não são irrisórios. Aliás,

234 (Nogueira, 2003c: 25/07). 235 (Nogueira, 1994: 253, 261). 236 (Nogueira, 2003: 154, 159). 237 (op.cit.: 101, 133).

como Juiz a pessoa não deve produzir fortuna, mas também pode passar necessidades básicas. O grande problema não está nesse debate. O problema reside em que uma parcela significativa da Magistratura brasileira se acostumou com uma cultura de reivindicação vencimental de tal forma ostensiva e quase exclusiva que tudo o mais parece secundário, tanto para Juízes quanto para a comunidade leiga. Ao que parece, os melhores esforços da categoria são canalizados assim individual quanto institucionalmente ou pela destacada ação de um associativismo especialmente bem articulado para esse fim com evidentes prejuízos para com a marcha regular dos processos que deveria estar mais presente nas considerações dos Juízes e, simplesmente, não estão. Exemplo desse quadro está bem refletido em uma disputa ocorrida algo recentemente envolvendo Juízes da União (Federais, do Trabalho, Militares e do Distrito Federal), ante a vetusta argumentação de um impropriamente denominado “auxílio-moradia” a que teriam direito, à semelhança do que percebem os parlamentares do Congresso Nacional. Em meio a um incomum movimento organizado de paralisação da Magistratura Federal, movimento esse que estava em vias de eclodir, uma ação de Mandado de

Segurança,238 impetrada por Associação de Classe de

Magistrados e processada perante o Supremo Tribunal Federal, desde bem antes, acabou sendo, de inopinado, liminarmente provida, ao acalanto de indulgência do Governo Federal, mas, sobretudo, ao arrepio solene e descerimonioso da legislação vigente que vedava, de modo expresso, tal expedição.239 Independentemente do mérito dessa discussão, Juízes em massa que passaram a se locupletar sob o especioso escudo de uma decisão da mais alta Corte de Justiça do país, embora manifestamente ilegal do ponto-de- vista jurídico estrito, continuaram a decidir em outros casos, compreendendo interesses de terceiros posicionados em alguma situação assemelhada, mas que não tiveram a mesma

238 Nota: A Ação de Mandado de Segurança referida no texto tomou o registro de

Ação Originária nº 630-9/DF no Supremo Tribunal Federal. Contra a Medida Liminar adrede expedida pelo Ministro Nelson Jobim, Relator da matéria, o autor deste trabalho impetrou uma outra Ação de Mandado de Segurança, tombada sob o nº 23.651/PE, o que fizera e m defesa de sua independência funcional, haja vista que não lhe seria eticamente lícito negar um direito a terceiros, ainda quando vedado expressamente e m lei, se e por ocasião de se melhante benefício que lhe fora concedido nas condições da Ação referenciada. Negada a Liminar requestada, negado o recurso de Agravo Regimental, manteve-se a situação subnormal até o advento de Lei recompositora do quadro, legitimando a situação.

239 Nota: Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, art. 5º. “ Não será concedida a medida

liminar de Mandados de Segurança impetrados visando à reclassificação ou equiparação de servidores públicos, ou à concessão de aumento ou extensão de vantagens.” Além disso, a Lei nº 5.021, de 09 de junho de 1966, que dispõe sobre o pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias assegurados, em sentença concessiva de Mandado de Segurança a servidor público civil, preconiza: art. 1º.

Omissis. § 4º. “ Não se concederá medida liminar para efeito de paga mento de

sorte porque o formato desses benefícios lhes fora negado pela razão da legislação que, em relação aos Magistrados, simplesmente não vingou. Um quadro realmente obscuro que não poderia ter passado como passou, absolutamente sem resistência eficaz.

Ademais, com pertinência, Zaffaroni: “A pressão sofrida pelos juízes em face de lesão à sua independência

externa, em um país democrático, é relativamente

neutralizável, por via da liberdade de informação, de expressão e de crítica, mas a lesão de sua independência interna é muito mais contínua, sutil, humanamente deteriorante e eticamente degradante. Quanto menor seja o espaço de poder de uma magistratura, quer dizer, quanto menor independência externa possua, maior parece ser a compensação buscada pelos seus corpos colegiados no exercício tirânico de seu poder interno. Em uma magistratura com estes vícios é quase impossível que seus atos sejam racionais.”240 Realmente, não há neutralidade e real independência do Poder Judiciário frente aos demais Poderes da República no Brasil, assim como nos demais países latino-americanos.241 A propósito disto, o “ativismo judicial” iniciado nos anos ’30 na Suprema Corte Norte- americana, sob a presidência do Justice Warren, chegou à América Latina e assim ao Brasil com o sinal trocado. Ali era favorável às garantias e aos direitos individuais, sendo um exercício liberal expandido, portanto. Aqui, trata-se, ainda hoje, de um exercício conservantista de padrões seculares, focado em tradições oligárquicas em que se incluem as debilitantes dispunas vencimentais da Magistratura brasileira confrontando.

Na verdade, este é um problema de base que precisa ser enfrentado de forma mais abrangente, não setorizada, por causa de uma especificidade ajustada a um exame seletivo, como o que a presente Tese suscita: levantar as condições e as causas prováveis por que não se tem a certeza da previsibilidade ante a tomada de decisão por parte do Juiz integrante de um sistema político-social periférico como o nosso.

A realidade da Magistratura brasileira, ora como

pensamento progressista242 ora como pensamento

conservador243, não é, contudo, das mais razoáveis e em

grande medida tem se caracterizado como repositório de

240 (1995: 89).

241 (Zaffaroni, 1995: 87, 90).

242 Nota: Representado por uma vanguarda de Juízes democráticos que já vem se

organizando, com determinação e persistência, em pontos diversos do país, especialmente em São Paulo e no Rio Grande do Sul.

243 Nota: Representado por Juízes de cúpula, pelos seus protegidos e por uma maioria

silenciosa que, nada obstante e a pretexto de se sentir impotente, apenas serve ao

status quo e, por não ser capaz de distinguir realidade e utopia, tampouco produzem

profissionais angustiados, decadentes, haja vista o que se descreveu linhas atrás bem como o apanágio dessas variáveis ideológicas que a assaltam permanentemente também.244 Se para uma boa serventia profissional é sempre necessário a existência de vocações íntegras, parece óbvio que um sistema judicial montado sob bases adversas tende a não executar o plano institucional para o qual fora classicamente concebido. É o caso brasileiro que reflete uma enormidade de incongruências crônicas, como a morosidade na prestação jurisdicional, mas que começa a ser despertado à consciência política do socius, justamente porque se passou a compreender que uma tal situação produz as condições favoráveis àqueles que costumam urdir contra o Direito e a Justiça. Convém realçar com Silva: “Nossa magistratura foi concebida para os bacharéis e não os

bacharéis para a magistratura. Isso encontra-se

inconscientemente arraigado na mentalidade dos nossos magistrados, sobretudo dos carreiristas.”245

E se pode realmente concluir com Langaro: “Aquele que se deixa levar pelo desinteresse, pelas práticas viciosas, e se serve da má-fé dos litigantes não ama, nem respeita a profissão.”246 Com efeito, no mínimo transforma-a em um “banco de feira” ou em um simples vínculo empregatício sem maiores repercussões ante a responsabilidade social que encerra e as perspectivas, reprimidas, de realização pessoal e de afirmação do próprio caráter, ante uma vocação de fato inexistente ou, quando menos, amesquinhada e, como dito, decadente.

Situação que lamentavelmente afeta o rol das profissões jurídicas no Brasil em face de um permanente quadro de crise social e, de resto, da própria formação dos operadores do Direito.