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I. RASTREAMENTO INICIAL

1.3. Prática Judiciária no Brasil: Um Outro Mundo

1.3.8. Em Causa Própria

P

or mais que afirmem o contrário, membros das

carreiras de Estado como Juízes, Representantes do Ministério Público, Fiscais, Militares etc., ao discorrerem sobre os benefícios funcionais que amealharam, em detrimento do conjunto da sociedade, ao longo do tempo bem como sobre a necessidade de sua conservação, o fazem de modo claramente corporativo.

Na verdade, essas categorias não foram concebidas, como instituição, para construir o patrimônio normativo e abstrato da nação, sob encargo do Poder Legislativo,

através de sua representação parlamentar. Podem,

evidentemente, colaborar com isso, mas não têm como desviar a natureza de sua intensa movimentação política dos olhares do povo para o qual, aliás, estão a serviço.

O caráter corporativo ou particularista dessas defesas264, a exemplo da paridade entre vencimentos da ativa e proventos da aposentação, da inexigibilidade de taxação dos inativos, das prerrogativas do serviço ativo etc., consubstancia-se ante o transbordo dos limites operacionais das atividades legais confiadas a essas categorias. Sem pejo, representantes de todas elas se aglutinam de modo bem organizado, haja vista a cristalização de lobbies – já tradicionais na cena política brasileira - que fazem um

trabalho diverso daquele reservado às rotinas

institucionais de todo esse pessoal. Com efeito, não há parlamentar com um mínimo de atuação que não tenha, até agora, jamais recebido a visita de algum profissional dessas categorias a trato desses objetivos intestinos.

No entanto, o ineditismo de uma ampla reunião de cúpula realizada no dia 16/06/2003, no Supremo Tribunal Federal, vai ficar gravado na história. Convocados pelo seu ilustre Presidente, os demais Presidentes de todos os Tribunais do país, juntamente com os Presidentes de todas

as Associações de Classe de Magistrados (estes,

264 Nota: Como descreve Arthur Koestler, “ a ortodoxia corporativista tem sido a

convidados), empreenderam a sistematização de uma ação política dirigida a um objetivo estranho ao de suas atividades-fim: a luta pela conservação dos benefícios na carreira.

Ora, Magistrado algum foi admitido no serviço judicial brasileiro para realizar um tal tipo de proselitismo político, muito embora ilegalidade formal alguma, ante o poder diretivo e autonomista dos Tribunais brasileiros, resulte dessa prática. Contudo, a feição institucional de uma reunião tipicamente corporativa, ainda quando para debater questões relacionadas com a reforma em curso do próprio Poder Judiciário (também um trato político,a dizer, não técnico), não se dissimula e, por isso, não pode ser logicamente compreendida quanto defendida. Um tal propósito teria de partir dos órgãos de Estado encarregados, constitucionalmente, da tarefa reformadora que está sendo processada no âmbito do Congresso Nacional, não pelos que haverão de suportar os seus efeitos. O que se observa é que um jogo de pressões se articula no âmbito das corporações destinatárias das projeções constitucionais em gestação no Legislativo, justamente no sentido de reduzir-lhe, na prática, a capacidade de gerenciamento de suas próprias atribuições.

É evidente que o Poder Executivo, atualmente representado pelo Governo LULA, o qual, aliás, se supunha mais original do que a tradição política brasileira recomendava, também e por isso mesmo não escapa desse perfil canhestro de propugnar por esforços que visam a pressionar, com eficácia, às vezes sem critério, como quando afasta correligionários históricos e permite a cooptação de adversários tradicionais, parlamentares que haverão de decidir matérias antes concebidas por etiologias nem sempre concordantes com a vontade soberana da população. Pois é com esta que os parlamentares devem estar permanentemente sintonizados, sob risco de não serem novamente eleitos.

Nesse sentido, os propósitos do Governo não diferem dos propósitos das Corporações de Ofício que, em causa própria, igualmente, se arregimentam para pressionar o Legislativo a que decida de acordo com as suas visões localizadas e até episódicas acerca das matérias que lhe são submetidas.

É mais do que prudente, é mesmo preciso que essas categorias, notadamente a dos Magistrados, produzam uma reflexão mais cuidadosa sobre o encaminhamento de suas reivindicações, justas, talvez, em uma certa perspectiva,

mas realmente indefensáveis, noutras tantas. Ter

consciência dos próprios limites é o primeiro esforço que deles exige a nação. Porque de uma comunidade de profissionais se espera que sejam profissionais. Sair das próprias rotinas de trabalho, vergastar pruridos de

insatisfação ante o porvir e, sobretudo, lutar por causas que ficariam melhor se e quando defendidas por sindicatos, realmente, não parecem atitudes edificantes, quando tomadas por membros de carreira de Estado e até mesmo por agentes do próprio Poder Político, caso dos Juízes.

Os que exercitam alguma parcela de tais

responsabilidades devem se encontrar, resolutos, juntamente com a sociedade da qual fazem parte, na ventura de uma pátria que seja a suprema expressão da vontade de seu conjunto, não de alguns poucos privilegiados da sorte, em um sentido, e, noutro sentido, das imposturas que vêm sendo implementadas no país desde a Colônia sem solução de continuidade.

Portanto, deve-se, sobre isso, ter a consciência bem presente de que cabe, insubstituivelmente, à nação o risco de avaliar se deseja este ou aquele perfil, este ou aquele modelo, mais ou menos agradável àqueles que o haverão de recepcionar e executar em nome do povo.

Eis que o instante em que como categoria, os Juízes265

abandonem, ainda que temporariamente e por razões de natureza midiática, suas tarefas e responsabilidades, para se lançarem à empresa, mesmo velada, de lutar, qual sindicatos, por supostos “direitos” ou de fazer entender, à luz de conveniências corporativas, que um determinado regime jurídico valha mais do que outro, situações que a nação quer, outrossim, questionar efetivamente, já se terá dado motivo suficiente para o sucesso de um tal questionamento por parte do socius.266

No entanto, embalados no clima de plena abertura político-democrática que noutros tempos não lhes permitia agir com tanta desenvoltura, aliás, atípica, recrudescem os

265 Nota: Aos Juízes se soma m os Representantes do Ministério Público, Fiscais,

Militares, Diplomatas, que forma as cha madas carreiras de Estado, por exercitarem atividades típicas da função pública indelegável.

266 (Nogueira, 2003b: 22/06). Nota complementar: Publicado o artigo e m veículo de

ampla ciculação e âmbito nacional, com destaque em uma edição domingueira, não tardaram as reações mais irascíveis por parte do meio judicial, tendo-se propugnado, inclusive, em mídia interna, pela exclusão do autor dos quadros de associados da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). A propositura não surtiu êxito. Mas não poucos associados, revelando desconforto e intolerância, insiste m, senão na expulsão, na aplicação de alguma “ reprimenda” ao articulista, haja vista a simples expressão de seu pensamento. De fato, “ termômetros” dessa atitude são as listas de discussão dos Juízes, manutenidas pelas respectivas Associações de Classe. A comunicação virtual dos Magistrados tem revelado, de modo bem interessante, um viés intelectual e psicológico pouco conhecido da sociedade. Talvez em face da natureza do espaço cibernético, os Juízes, não raro, se dão a certas emissões realmente difíceis de ser assimiladas, justo porque partidas de membros de uma categoria de notáveis, obtemperados pelas próprias responsabilidades funcionais que lhe são confiadas pelo Estado. Trata-se de uma variável que pode explicar muitas incongruências refletidas até mesmo nos julgados, pois não se conhece ali uma cultura de incorporação da idéia de solidarismo universal associada aos proble mas do Direito e da própria Ad ministração da Justiça, be m por isso de participação democrática e pluralista.

Magistrados brasileiros, em grande parte, quando falam em greve, especialmente no contexto de crises políticas que mascaram reivindicações profissionais. Sobre isso, nenhum Juiz é ingênuo o bastante, mesmo na periferia, a ponto de desconhecer que o que se diz sobre greve de Magistrados é

um inteiro dislate político e uma rematada

irresponsabilidade cívico-jurídica. E que a única utilidade efetiva do especioso propósito é criar um factóide de tal envergadura a ponto de suscetibilizar as instâncias Executiva e Legislativa para que reconheçam, e cedam, em seu favor, as vantagens e os privilégios que a Magistratura intenta, desesperadamente, conservar para as atuais e futuras gerações de Juízes. Na verdade, como refere Nogueira: “Por isso se tem afirmado que há uma incompatibilidade intrínseca entre o corporativismo e o sistema democrático. No corporativismo dá-se uma tendência oligarquizante, por ser de sua substância o distanciamento entre as lideranças e as bases de sua organização social em virtude do monopólio dos instrumentos estratégicos por parte daquelas; enquanto que na democracia, a fonte de todo poder, verticalizado ante o princípio representativo, é o próprio povo, a dizer, as bases destinatárias de sua ordem.”267

Com efeito, embora formem categorias funcionais, seus serviços estão diretamente ligados à soberania do Estado e são por ela contingenciados. Disso resulta que os Juízes,

gozando de certas prerrogativas (vitaliciedade,

inamovibilidade, irredutibilidade de subsídio, conforme o artigo 95, incisos I, II e III, da Constituição Federal), não podem, no entanto, fazer tudo o que lhes vêm à cabeça. De fato, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar n° 35, de 14/03/79), no seu artigo 35, eem umera os seguintes deveres judiciários: cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e atos de ofício (inciso I); não exceder injustificadamente os prazos para sentenciar ou despachar (inciso II); determinar as providências necessárias para que os atos processuais se realizem nos prazos legais (inciso III); tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da justiça, e atender aos que o procurarem, a qualquer momento, quando se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência (inciso IV); residir na sede da comarca, salvo autorização do órgão disciplinar a que estiver subordinado (inciso V); comparecer pontualmente à hora de iniciar-se o expediente ou a sessão, e não se ausentar injustificadamente antes de seu término (inciso VI); exercer assídua fiscalização sobre os subordinados, especialmente no que se refere à cobrança

de custas e emolumentos, embora não haja reclamação das partes (inciso VII); manter conduta irrepreensível na vida pública e particular (inciso VIII).

Dessa forma, qualquer do povo pode perfeitamente compreender, e os operadores jurídicos e os teóricos do Direito tampouco ignoram, que a conduta desses Juízes,

especialmente quando se manifestando em bloco,

sistematicamente, traduz invariável ofensa ao dever de irrepreensibilidade a que estão submetidos, porque: a uma, a nação quer a viabilização dos sistemas previdenciários a ponto de suportá-los e evitar que entrem em colapso; a duas, porque dos Juízes se espera serenidade, a que também não se tornem impedidos de julgar causas no futuro das quais, no passado, se revelaram interessados; a três, porque ninguém negligencia a ostensiva pretensão dos Juízes em chamar para si a “responsabilidade” de decidir os destinos do povo, substituindo-se, pela pressão política de tipo sindical e como “arautos republicanos”, à ação parlamentar que lhes dá conseqüência prático-legislativa; a quatro, porque o Processo pelo qual se move o Juiz no exercício de sua presidência não é uma tarefa simplesmente profissional, mas a própria manifestação jurídico-política do Estado em sua dinâmica jurisdicional. Enfim, ninguém duvida que os movimentos da Magistratura, sob tais circunstâncias, prezam por uma invariável ausência de consciência sobre os próprios deveres e limites.

Se isso tudo não ofender as disposições de norma

complementar que obriga ao Juiz comportar-se

irrepreensivelmente na vida pública e particular e dar ao Processo, como manifestação típica do Estado, plena conseqüência prática, nada mais será ofensivo da Ordem Jurídica, ainda que se possa questionar, a respeito de um eventual movimento paredista, lacuna da Constituição bem

como da lei infraconstitucional que lho impeça

expressamente. Se falta lei proibitiva, não falta, outrossim, senso de razoabilidade268 para descrever, como válido, um tal preceito principiológico relativamente aos Magistrados. E se um Controle Externo e Social do Judiciário ainda não existe no país, em grande parte pela resistência desabrida dos próprios Juízes e Tribunais, interessados em garantir também esse monopólio, menos certo não é que cabe às Corregedorias Judiciais ligadas a cada um desses Tribunais, em face de sua capacidade censória, exercer a vigilância e a disciplina sobre os Juízes submetidos às suas respectivas autoridades. No caso em exame, se verificada hipótese de greve de Magistrados, compete às Corregedorias Judiciais, de início, admoestar os

268 Nota: O princípio da razoabilidade, consoante estimado ao longo deste trabalho,

ingressa no argumento de modo definitivo e substancial. As diretrizes éticas da conduta funcional dos Juízes, portanto, estão invariável e inteira mente submetidas à idéia do razoável co mo aceitação social. (Aarnio, 1991: 236, 253)

Juízes a que se conduzam de modo impecável diante da lei e do que a nação espera deles próprios, cortar-lhes os dias de serviço pela falta em razão de greve (tecnicamente não

justificável) e apurar-lhes, individualmente, as

indisciplinas desse quadro decorrentes.

Além do mais, se as Corregedorias não o fizerem, exercitando plenamente suas atribuições de competência funcional próprias, a omissão pode ser tomada como adesão subliminar ao movimento paredista e, sendo aí, Corregedores e Tribunais não escaparão do crivo censório amplificado do conjunto da sociedade para que sejam, desde logo, propostas soluções definitivas e agilizadas outras tantas, que resolvam de vez um tal estado de anomia no regime disciplinar da Magistratura Nacional brasileira.

Aliás: “Dados os vestígios deixados pelas várias formas de tráfico de influência no Brasil, seja por ação pública (motivação: razões de Estado, conjuntura) seja por

ação privada (motivação: favorecimentos ilícitos,

corrupção), pode-se pensar, objetivamente, em uma espécie

de “sicilianização tupiniquim”. O processo de

sicilianização remete à perda progressiva dos valores e dos ideais, ante o surgimento devastador dos interesses particularistas os quais se vão espraiando por sobre o

socius e encontrando seguidores, perversos, servis ou

pusilânimes por todos os lados, de todos os segmentos e classes, de todas as raças e credos. A contaminação é viral e poucos são os que escapam de sua ação degeneradora e degradante. Pode-se também referir que o momento por que se passa no país equivale ao momento de quando a máfia italiana iniciou o seu percurso de criminalidade organizada em substituição ao Estado e dele subjugando os agentes por diversas formas de persuasão moral e física, do pequeno suborno à pura e simples eliminação. O Brasil de hoje é a Itália do início do século, espaços que se ligam por um elemento comum: a impunidade. No Brasil ela se assoma e é por inúmeras razões uma constante social. Na Itália, nem tanto. A máquina Judiciária funciona, graças à crítica social em parte muito bem representada pela obra de Sciascia.269 É por causa de uma tal eficácia que Juízes vivem, constantemente, sob ameaça de eliminação física ainda nos dias que correm.”270

269 (1987; 1988a; 1988b; 1989; 1990a:; 1990b; 1991a; 1991b: passim). Nota

complementar: Sobre o autor, cabe aqui adiantar que suas obras têm um conteúdo universal em que se planifica, sem pejo, o espírito crítico e destemido do mesmo contra as manifestações odiosas da disssimulação de governos, entidades, grupos e pessoas, traçando narrativas e esgrimindo ficcões literárias forjadas a partir dos fatos da realidade, e m que a crônica impiedosa da miséria humana junto à organização social fecundou ora no desmonte das idiossincrasias da Ad ministração Judicial e das armadilhas do medo ora no da hipocrisia da sociedade siciliana a que o mesmo pertenceu.

De fato, a questão judicial é crucial para o avanço social de um povo.