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Capítulo III – Dois Rios de memórias: o cotidiano da prisão comunista

3.3. O cotidiano prisional

3.3.2 Chegada, inspeção, triagem

Ao chegar à proximidade da ilha, os militantes, que haviam ido de navio, tinham que mudar para embarcações menores que os levassem à praia de Dois Rios.389 Segundo João Lopes, a primeira coisa que os soldados da Ilha faziam quando viam o navio chegar era disparar as armas para intimidar os presos políticos, a fim de que eles ficassem “mansos”.390

Apenas em olhar par a ilha, começava a contradição desta prisão: Heitor Ferreira Lima, Leôncio Basbaum e Heron Pereira Pinto demonstraram grande surpresa em

387

RAMOS, op. cit, p.34. 388

Ibidem, p.35. 389

PINTO, op. cit, p.36; LIMA, op. cit, p.163. 390

perceber sua beleza.391 Orígenes Lessa, entretanto, teve um sentimento de humilhação e derrota por causa de tamanho isolamento.392 Esta dicotomia entre a beleza natural e as maldades sofridas na prisão fazia parte do imaginário de todos os militantes e até dos moradores, funcionários e turistas, como veremos mais tarde.

Graciliano Ramos e seus companheiros fizeram outro caminho ao chegar de balsa na Vila do Abrãao. De lá, eles partiram a pé, por uma estrada de 12 quilômetros, até a Vila de Dois Rios. Essa caminhada, para Ramos, foi especialmente difícil, já que ele ainda estava tentando se recuperar de uma operação feita antes de ser preso. Um dos soldados lhe ofereceu um cavalo, mas Ramos negou para não incomodar o funcionário.393

Depois de chegarem à ilha, passavam pelos procedimentos para se estabelecerem. Antes de tudo, deviam entregar as roupas e bens que trouxeram da outra cadeia aos soldados, mesmo coisas sem valor, como uma carteira apenas com papéis e fotos.394 Recebiam, então, um uniforme, chamado entre eles de “zebra”, por ser listrado395 e tinham os cabelos cortados de forma grosseira por outro preso.396 Sobre a necessidade de se despir de roupas mais arrumadas na hora da chegada, Graciliano Ramos afirmava: “Provavelmente não existia razão: éramos peças do mecanismo social – e os nossos papéis exigiam alguns carimbos. A degradação se realizava dentro das normas”.397

Sobre isso, Goffman mais uma vez elucida bastante a necessidade da perda de identidade do prisioneiro. Assim que chega à prisão, o indivíduo deve ser despido do apoio que ele tem na sua ligação com o mundo doméstico, como, por exemplo, as fotografias de algum ente querido. A partir daí, começam vários rebaixamentos e degradações para que o indivíduo se sinta constantemente mortificado, como o processo de admissão na instituição: fazer a ficha, tirar foto, impressões digitais, atribuir números, enumerar os bens pessoais para guardar, despir, dar banho, desinfetar, cortar os cabelos, dar o uniforme, instruir em relação às regras, tudo isso é utilizado para colocar o indivíduo na máquina do estabelecimento. Tudo isso contribui para uma

391

LIMA, op. cit, p.163; BASBAUM, op. cit, p.132; PINTO, op. cit, p.38. 392

LESSA, Origenes. Ilha Grande: jornal de um prisioneiro de guerra. apud: SANTOS, op. cit, p.191. 393

RAMOS, op. cit, pp.47; 52. 394

Ibidem, p.56. 395

LIMA, op. cit, p.166. 396

RAMOS, op. cit, p.61. 397

desfiguração pessoal, uma perda de identidade.398 Segundo Goffman, a maior mutilação que um interno pode receber é a supressão do nome e substituição por um apelido ou número,399 como aconteceu com Ramos.400

Depois de todas as etapas burocráticas, os presos foram levados para o refeitório, onde, segundo Graciliano, a iluminação era fraca, e havia um “ar nauseabundo e empestado”, parecendo existir um animal morto por perto se decompondo.401 A comida era malcheirosa, nojenta, intragável, mas todos os presos comiam como se não percebessem isso. E um deles ainda lhe revela que aquela era uma comida boa, para impressionar os novos presos!402

Logo no segundo dia dentro da CCDR, os presos foram formados no pátio e apresentados a um homem não identificado por Graciliano Ramos, mas provavelmente o Diretor da Colônia. O que ele diz é emblemático:

Aqui não há direito. Escutem. Nenhum direito. Quem foi grande esqueça-se disto. Aqui não há grandes. Tudo igual. Os que têm protetores ficam lá fora. Atenção. Vocês não vêm aqui corrigir-se, estão ouvindo? Não vêm corrigir-se: vêm morrer.403

Essas são as chamadas “regras da casa” da prisão, ou seja, mais uma forma de mostrar que os internados não estão em nenhum ambiente familiar a eles e que devem se submeter aos novos padrões estabelecidos.404

Segundo Ramos, era comum haver momentos em que a autoridade era imposta mesmo sem razão nenhuma. Havia um aspeçada405 de nome Aguiar, que exigia um respeito absurdo.406 Além disso, várias vezes ao longo do dia os presos eram obrigados a fazer a formatura geral, muitas dessas vezes sem sentido algum além de não permitir o descanso.407 A necessidade de subordinação do internado desde o início é importante para fazer um “teste de obediência”, perceber quem são os insolentes e quem merecem

398

GOFFMAN, op. cit, pp.24-28. 399

Ibidem, p.27. 400

RAMOS, op. cit, p.75. 401 Ibidem, p.59. 402 Ibidem, pp.60; 68. 403 Ibidem, p.69. 404

GOFFMAN, op. cit, p.50. 405

Segundo do Dicionário Informal da Língua Portuguesa, aspeçada “era uma antiga graduação militar do Exército, Polícia Militar e Corpos de Bombeiros militares brasileiros. Era ocupado por praças entre a graduação de soldado e cabo”. O termo caiu em desuso na metade do século XX. http://www.dicionarioinformal.com.br/aspe%C3%A7ada/

406

RAMOS, op. cit, p.57. 407

castigos.408 Mais uma vez, Goffman anuncia que a submissão do indivíduo à equipe dominantes é dada em vários níveis de convivência, como, por exemplo, a necessidade de pedir permissão ou instrumentos para se executar atividades que poderiam ser executadas sozinhas, como ir ao banheiro, fumar, telefonar, barbear-se etc. Além da humilhação, essa necessidade permite que o indivíduo sofra interferência da comissão diretora. Existe aí um sistema de autoridade escalonada em que qualquer pessoa da classe dirigente tem o direito de impor disciplina a qualquer pessoa da classe de internados.409