• Nenhum resultado encontrado

Capítulo III – Dois Rios de memórias: o cotidiano da prisão comunista

3.3. O cotidiano prisional

3.3.3 Estrutura da prisão

Dois Rios abrigava um complexo penitenciário. Segundo Heitor Ferreira Lima, a partir da praia em que se chega à vila, o presídio ficava no centro e, ao fundo, um quartel do destacamento policial. Em dois pequenos outeiros ficavam algumas casas de policiais. Atrás dos muros estava o refeitório, o alojamento de mulheres e, na frente, o escritório da Diretoria, o consultório médico e o almoxarifado. Do lado esquerdo ficavam a oficina, os bangalôs, as residências dos funcionários, a horta, um pouco mais adiante, o estábulo, que fornecia o leite dos funcionários e dos militares. Perto da praia havia um antigo casarão onde funcionava a enfermaria, também chamada de hospital.410 Dentro do presídio, havia uma série de quatro galpões de alvenaria e telha que formavam um quadrado, sem janelas por fora, com apenas uma ao fundo e uma grande ao lado, todas gradeadas. Esses galpões davam saída para o pátio interno. À esquerda da entrada do presídio, estava o banheiro, com vários chuveiros, um ao lado do outro. Os galpões mediam cerca de 20 metros por 10 metros, rodeado de um estrado de madeira com colchões cheios de percevejos.411

Quando Vitório Caneppa tomou posse do cargo de diretor, em 1934, houve algumas mudanças, como a construção de um prédio de administração que unia o almoxarifado, o açougue, o centro telefônico, a portaria e o depósito dos produtos inflamáveis, armas e munições, a parte administrativa, o gabinete do diretor e um restaurante exclusivo para os funcionários.412

Em 1936, quando Graciliano Ramos chegou a Dois Rios, não havia muita

408

GOFFMAN, op. cit, p.26. 409

Ibidem, pp.44-46. 410

LIMA, op. cit, p.165. 411

Ibidem, p.165; BASBAUM, op. cit, p.132. 412

diferença em relação ao que os dois militantes acima haviam encontrado, senão a construção do novo galpão da diretoria, as cercas de arame e a cobertura de zinco dos presídios. Os galpões não tinham mais estrados, mas tinham o chão coberto por areia, que era molhada diariamente, e eles dormiam em esteiras, insuficiente para tantos presos.413

O próprio Doutor Sardinha corrobora os depoimentos dados pelos comunistas: Naqueles antros, o cheiro dos corpos sujos e suarentos era tal forma ativo que impregnava a roupa de quem ali entrasse. (…) Lembro-me que muitas vezes fui chamado, altas horas da noite, para socorrer presos dentro daqueles covis. Quando regressava à minha casa, apesar de tomar banho e mudar de roupa, eu continuava sentindo por muito tempo aquele odor nauseante e característico, em minhas narinas. Aqueles homens já se haviam habituado e nada mais sentiam, nem mesmo sono. Estavam sempre em vigília e esperando alguma surpresa por parte dos companheiros tarados que se aproveitavam da calada da noite para a pederastia ou a vingança.414

Ainda segundo Sardinha, os presos mais fortes e valentes deveriam ser os “faxinas”, ou seja, os encarregados da ordem no alojamento, de fazer a faxina durante o dia. Entretanto, geralmente o cargo de “faxina” representava antes poder do que trabalho e, por isso, era sempre de alguém que podia mandar outro fazer o serviço, como um gestor da cela.415

As estruturas dos prédios, bem como as condições de sujeira em que viviam os presos, foram algumas vezes denunciada, mas, sempre que necessário, Filinto Muller, chefe de Polícia do Distrito Federal, dizia que os alojamentos poderiam não ser próprios para este fim, mas eram arejados, tinham água encanada, instalações com rede de esgoto, eram limpos diariamente e os presos recebiam visitas diárias do médico do presídio, que zelava pela sua higiene.416 O próprio médico da ilha, Dr. Hermínio Ouropretano Sardinha, afirma que ele atendia apenas os presos que estavam internados no hospital e os que iam até lá se consultar por causa de alguma enfermidade.417 O regulamento da colônia previa que o médico deveria atender aos presos, aos funcionários, às famílias dos funcionários e aos soldados da guarnição. Além disso, o Dr. Sardinha ainda atendia aos moradores da ilha, visto que, segundo ele, não existia

413

RAMOS, op. cit, pp.53; 63. 414

SARDINHA, op. cit, p.67. 415

Ibidem, p.66. 416

AHN – MJNI – caixa 80. In: CANCELLI, Op. cit, p.188. 417

serviço médico.418 Mais uma vez, Goffman esclarece que oferecer um meio ambiente deteriorado ajuda a deteriorar também o indivíduo, não apenas fisicamente, mas também psicologicamente, destruindo sua identidade.419

Infelizmente, sabemos apenas como eram os banheiros do presídio na década de 1930, com as memórias de Heron Pereira Pinto e Graciliano Ramos.

Era uma sala quadrada, o chão de cimento. Pendiam do teto alguns chuveiros, quatro ou seis, e junto a uma parede se alinhava igual número de latrinas, sem vasos, buracos apenas, lavados por frequentes descargas rumorosas. Em todas viam-se homens de cócoras, e diante deles estiravam-se filas, a exibir urgências refreadas a custo. (…) As pessoas agachadas contorciam-se em longos tenesmos, retardavam-se arfando; limpavam-se em farrapos, lenços, fraldas de camisas, erguiam- se exaustas, e ao cabo de minutos várias iam de novo contrair-se numa cauda da fila.420

Era ainda possível encontrar filetes e coágulos de sangue ao lado das latrinas.421 A umidade e o frio característico da ilha dificultavam ainda mais o banho matinal, e era comum alguns não quererem toma-lo por medo de agravarem suas doenças. Nessas horas, aparecia o já citado guarda Aguiar para obrigar que o detento tomasse banho ou fosse de volta para a cela, duas opções tão horríveis que o detento preferia o banho, mesmo com a proibição do guarda de se enxugar .422

Na década de 1940, quando os presos políticos de Fernando de Noronha foram transferidos para a Ilha Grande, o complexo todo tinha passado por uma grande reforma, com prédios mais modernos, com os setores de trabalho atualizados e em funcionamento.423 Os presos políticos, que antes ocupavam um barracão de zinco, foram transferidos para novos alojamentos, que, segundo Sardinha eram mais confortáveis e, portanto, deixavam os presos mais felizes.424 Noé Gertel425 disse em entrevista que o presídio tinha entre dois e três andares,426 o que possibilitava uma melhor separação entre os presos comuns e os políticos.

418

Ibidem, p.52. 419

GOFFMAM, op. cit, p.31. 420

RAMOS, op. cit, pp.80-81. 421

Ibidem, p.81. 422

PINTO, op. cit, pp.5; 53. 423

SARDINHA, op. cit, p.179. 424

Ibidem, p.180. 425

Noé Gertel ingressou no PCB em 1931, quando estudava Direito em São Paulo. Ele estava no ato que dissolveu a marcha integralista na Praça da Sé,em 1934. Como um soldado o reconheceu, teve que entrar na clandestinidade, o que garantiu, de certa maneira, que fosse preso apenas em 1940, quando foi encaminhado para a Ilha Grande. (SILVA JÚNIOR, op. cit, pp.379-380.)

426

Sobre a estrada que ligava o Abraão a Dois Rios, há uma confusão de informações. Sardinha afirmou que no início de 1931 um diretor, engenheiro, foi nomeado para empreender algumas obras na ilha, como a construção da estrada, o que gerou problemas ainda maiores conforme veremos.427 João Lopes disse que, por ser ferreiro, foi chamado pelo chefe da administração, Souto Maior, para construir uma estrada de ferro ligando Abraão a Dois Rios e uma lavanderia. Ao fim da obra foi libertado.428 Já Myrian Sepúlveda Santos diz que a estrada foi construída durante as reformas do fim da década de 1930.429 Como Graciliano Ramos cita sua jornada por uma estrada para chegar da Vila do Abraão à Vila de Dois Rios, acreditamos que ela foi realmente construída entre 1931 e 1932. Provavelmente, tratava-se de uma estrada de terra, visto que apenas João Lopes citou a estrada de ferro.