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Capítulo III – Dois Rios de memórias: o cotidiano da prisão comunista

3.3. O cotidiano prisional

3.3.8 Saúde

Além dos problemas decorrentes da péssima alimentação prisional, os detentos estavam submetidos a dificuldades ainda maiores. Por causa da umidade da ilha e das celas, a tuberculose era uma constante, assim como a sífilis, doença causada através do contato sexual.491 A contaminação da tuberculose na Ilha chegou ao ponto de, em 1943, ser lançada uma portaria que exigia um atestado médico quando o preso fosse transferido, assim poderia ser detectado os portadores de tuberculose e outras doenças infecciosas. Isso era feito não apenas em atenção aos presos, mas também aos moradores e funcionários492.

O hospital ficava na região da Barra Grande, ainda na Vila de Dois Rios. Segundo descrição do Dr. Sardinha, parecia ser grande, pois tinha um gabinete médico, ambulatório, quatro salões para as enfermarias, dois salões para a clínica médica, um para moléstias infectocontagiosas e outro para cirurgia. Tinha também sala de operações, copa, cozinha, quarto para material de empregado e dois banheiros. Sardinha reclamou do estado de conservação do hospital, com as paredes sem emboço, quase nenhum vidro nas janelas, telhado cheio de goteiras e materiais de uso diário imprestáveis.493 Já Leôncio Basbaum descreveu o hospital como uma casa com poucos cômodos e ainda acusou o médico de nunca aparecer.494 É provavelmente por isso que Graciliano Ramos recusou-se a fazer a operação da psoíte495 na ilha quando o doutor ofereceu o tratamento. “Aqui doutor? Obrigado. Não estou com desejo de suicidar- me.”496

Um dos lugares para igualar os presos comuns aos presos políticos era justamente o tratamento médico. João Alves da Mota relatou à Comissão Especial de Inquérito sobre os Atos Delituosos da Ditadura que uma vez o enfermeiro, que estava no lugar do médico, deu a ele um remédio no mesmo copo em que tinha dado o remédio a um homem que tinha acabado de sofrer um ataque epiléptico. Quando João questionou o fato, o enfermeiro apenas respondeu que não tinha importância, porque todos eram da

491

CANCELLI, op. cit, p.200; sobre as várias verminoses: SARDINHA, op. cit, p.53. 492

Portaria Ministerial nº6294, de 18 de fevereiro de 1943; IN: SANTOS, op. cit, p.266. 493

SARDINHA, op. cit, pp.35-36. 494

BASBAUM, op. cit, p.136. 495

Psoíte é a inflamação das psoas. Psoas são pares de músculos (psoas grandes, psoas pequenas) que ligam o osso do tronco do corpo às coxas. Por isso Graciliano Ramos tinha tanta dificuldade para andar.

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mesma massa e podiam ir para o inferno.497

Esse descaso nos tratamentos era uma constante na ilha. Graciliano Ramos contou que, depois do exame médico da entrada na prisão, o médico deu um remédio a todos os examinados, mas que ninguém tomou por medo do que poderia ser o remédio.

Poucos presos ficavam internados no hospital, ficando a maioria num canto das próprias celas, sofrendo de dor sem a ajuda de nenhum funcionário.498 Ramos contou de duas cenas que viu enquanto estava no alojamento: um em que um doente moribundo gritava por morfina de tanta dor e sofrimento sem ser atendido por nenhum funcionário499; e outro em que os funcionários entraram apenas para retirar o corpo de Domício Fernandes500 e enterrá-lo sem nenhuma consideração no cemitério da vila.501 O tratamento especial da prisão aos doentes era a comida do jantar, que era diferente da dos presos saudáveis: era uma sopa com algumas fatias de cebola, menos nojenta do que o normal, servida por poucos dias.502

Gregório Bezerra disse que quando chegou à ilha conseguiu permissão para ir ao hospital da Polícia Militar do Distrito Federal para fazer um exame de olhos porque estava ficando quase cego. Durante o tratamento, ele ficou na Casa de Detenção.503 Mais uma vez vemos uma diferença considerável entre os anos 1930 e 1940, porque, segundo Elisabeth Cancelli, as transferências para a Casa de Detenção ou de Correção eram conseguidas apenas em casos muito graves504, mesmo o médico da ilha, Dr. Hermínio Ouropretano Sardinha, assumia que a transferência de algum preso para o continente para fazer tratamento era muito difícil, principalmente pela distância e pelo trajeto difícil.505 Porém, Jorge Ferreira presume que, a maioria dos presos da Ilha Grande que tinham alguma doença podia ir para instituições hospitalares no continente, bastando um laudo do médico e a permissão do Ministério da Justiça e Negócios Interiores506.

497

Depoimento de João Alves da Mota: Diário do Congresso Nacional. Ano II, número 145 (28 de agosto de 1947). Rio de Janeiro, p.10.

498

RAMOS, op. cit, p.83. 499

Ibidem, p.151. 500

Domício Fernandes Lima era natural da Paraíba, motorista. Foi preso em Natal, Rio Grande do Norte, acusado de ter participado da insurreição comunista. Esteve preso no navio Manaus e na Casa de Detenção. Segundo o prontuário do DESPS, foi transferido para a CCDR em 15 de abril de 1936 e morreu em 23 de julho do mesmo ano.

501

Ibidem, p.131. 502

Ibidem, pp.105-106. 503

BEZERRA, op. cit, p.291. 504

CANCELLI, op. cit, p.198. 505

SARDINHA, op. cit, passim. 506

Embora saibamos que a falta de interesse do poder público não possa ser substituída pelos benefícios de trabalhos esporádicos, havia apenas um consolo nos tratamentos de saúde da prisão: os médicos presos. Leôncio Basbaum, um pouco depois de ter chegado à prisão, foi encaminhado para trabalhar como médico auxiliando o Dr. Sardinha.507 José Crispim, preso esquerdista e depois membro da Comissão Especial de Inquérito sobre os Atos Delituosos da Ditadura também afirma ter recebido tratamento de um médico prisioneiro, dessa vez Belmiro Valverde508, tanto em Fernando de Noronha, quanto na Ilha Grande. Segundo Crispim, mesmo Valverde sendo integralista, ele cuidava de todos os presos políticos, mas eles perderam contato depois que Valverde tentou fugir. Essa fuga não teve sucesso, e Valverde continuou na ilha, acompanhando o médico, porém, provavelmente não fazia mais atendimento dos presos comunistas.509