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Capítulo III – Dois Rios de memórias: o cotidiano da prisão comunista

3.3. O cotidiano prisional

3.3.14 Torturas e castigos

Quando um preso tentava fugir, ele não era considerado um fugitivo até pelo menos a administração considerar que ele já tinha saído da Ilha. Enquanto estava escondido pela mata podia ser recapturado. Geralmente os guardas percebiam que um preso fugiu na contagem de quando eles voltavam do trabalho. Quando isso acontecia todos se reuniam no pátio, presos e guardas, faziam uma nova contagem para saber quantos e quem tinha fugido, os guardas recebiam as ordens de captura, pegavam alimentos e entravam na mata. Os presos voltam a sua rotina.

Quando acontecia uma fuga, todas as conversas, dos presos, dos funcionários e dos moradores, acabavam girando em torno da fuga, e do que os guardas – chamados de capitães do mato – descobriam, como por onde o preso passou, se roubou algum morador ou funcionário etc. A busca durava tanto tempo quanto fosse necessário, enquanto o fugitivo continuava deixando rastros de que ainda estava na ilha, os guardas continuavam procurando por ele.563

Quando o preso era achado, todo mundo da colônia ficava a espreita, olhando o preso voltar para a prisão. O preso era encaminhado até a Casa de Ordem onde era interrogado pelo diretor e depois, provavelmente, ia para a solitária como castigo.564 Segundo o panfleto distribuído em outubro de 1933, existiam casos de presos sendo espancados quando capturados, conseguindo voltar para a prisão apenas de padiola.565

Alguns presos continuavam sofrendo castigos depois de serem capturados e castigados conforme os delitos cometidos durante a fuga. Havia o chamado “chimiling”, em que os guardas levavam os presos até a lavanderia do alojamento feminino, amarravam e amordaçavam os presos e os espancavam com cipó-camarão até o sangue escorrer pelas costas. Depois os presos eram postos, cada um num tanque, cheio de água, enquanto um guarda, com uma caneca, ia despejando lentamente água em cima dos presos. Eles podiam repetir a surra e banho quantas vezes quisessem e depois

561

BASBAUM, Op. cit, p. 138. 562

MELO, op. cit, p.19. 563

SARDINHA, op. cit, pp.149-150. 564

Idem. 565

levavam de volta para a solitária. Para fazer esse trabalho eram escolhidos os guardas mais perversos da colônia.566

Heitor Ferreira Lima conta ainda dos castigos com varas de marmelo, em que o preso era colocado no meio do pátio e espancado por quatro ou cinco guardas. Os guardas golpeavam-no incessantemente, com toda a força, com o diretor do presídio assistindo impassível, embora o surrado pedisse perdão ajoelhado agarrado às botas do diretor. Segundo Lima, os detentos estavam nos alojamentos, mas deviam assistir a tortura, embora que a maioria preferia não ver e andassem pelo alojamento de cabeça baixa torcendo para que acabasse logo.567

Segundo Foucault, ao contrário do que muita gente pensa, o suplício não tem como objetivo dar o exemplo aos demais presos, mas sim demonstrar fisicamente a presença do soberano, que aqui é o diretor da colônia. O castigo dado ao detento não é o estabelecimento da justiça, mas sim a reativação do poder do soberano.568

Os castigos eram constantes em Dois Rios, de várias formas diferentes, por vários motivos diferentes, ou por nenhum motivo. Alguns presos insistiram junto ao Ministério da Justiça para que este lhe desse garantia de vida.569 João Alves da Mota viu o soldado Aguiar dar uma cacetada de barra de ferro na cabeça de um preso comum apenas porque ele deu um maço de cigarro a um preso político. A pancada foi tão forte que o preso caiu morto na hora e foi enterrado num morro no fundo do estábulo.570 Graciliano Ramos, em sua primeira noite na CCDR, presenciou o espancamento de um preso na hora de dormir:

(...) vi a dois passos um soldado cafuzo a sacudir violentamente o primeiro sujeito da fila vizinha. Muxicões terríveis. A mão esquerda, segura à roupa de zebra, arrastou o paciente desconchavado, o punho direito malhou-o com fúria na cara e no peito. A fisionomia do agressor estampava cólera bestial; não me lembro de focinho tão repulsivo, espuma nos beiços grossos, os bugalhos duas postas de sangue. Os músculos rijos cresciam no exercício, mostrando imenso vigor. Presa e inerme, a vítima era um boneco a desconjuntar-se: nenhuma defesa, nem sequer o gesto maquinal de proteger alguma parte mais sensível. Foi atirada ao chão, e o enorme bruto pôs-se a dar-lhe pontapés. Longo tempo as biqueiras dos sapatos golpearam rijo as costelas e o crânio pelado. Cansaram-se enfim desse jogo, o cafuzo, parou, deu as costas

566

SARDINHA, op. cit, pp.150-151. 567

LIMA, op. cit, p.169. 568

FOUCAULT, op. cit, p.46. 569

É o caso de Fernando Costa, Jair Alves Braga, Edson Martins Coelho, Sebastião Silva (AHN – MJNI – caixas 15 e 526), apud CANCELLI, op. cit, p.207.

570

“Atos Delituosos sobre a Ditadura”. Diário do Congresso Nacional. Ano II, número 145 (28 de agosto de 1947) . Rio de Janeiro. p.9.

pisando forte, soprando com ruído, a consumir uns restos de furor. O corpo estragado conservou-se imóvel. Estremeceu, devagar foi-se elevando, aguentou-se nas pernas bambas, mexeu-se a custo e empertigou-se na fileira, os braços cruzados, impassíveis.571

Sardinha afirma que era comum, nas consultas, os presos aproveitarem a oportunidade para se queixarem dos guardas, acusando-os de espancamentos durante o serviço. “Ali na Colônia, os presos eram olhados mais como animais selvagens e, para que desempenhassem melhor os seus serviços eram chicoteados ou fustigados impiedosamente com o 'cipó-camarão'.”572

Goffman afirma que a insegurança física, a postura que o internado deve adotar em alguns momentos, como curvar-se para ser açoitado ou reverenciar seu superior com algum gesto são formas de manter o sujeito sem garantia da própria integridade física e também de mortificação enquanto individuo.573 Assim, fica mais fácil manter o domínio sobre o sujeito e, inclusive, uma vigilância para evitar fugas ou atos de indisciplina.

Sardinha narrou com detalhes um ato de suplício acontecido em setembro de 1933 – sobre o que o jornal O Globo, de abril de 1934 fez uma reportagem: seis presos fugiram escalando o muro do pátio interno. Os guardas foram chamados pelas cornetas para procurar os presos e depois de cinco dias eles foram encontrados escondidos nas montanhas. Primeiro, eles foram levados para o diretor e depois foram para o pátio central, onde já estavam outros presos que tinham tentado fugir em outras ocasiões. Os presos estavam escoltados por guardas armados com cipó-camarão. Depois entrou a banda, feita por presos, que ficou ao lado. Quando o diretor e o almoxarife chegaram, o diretor mandou executar a marcha “Três Corações” e os guardas começaram a espancar os presos. Segundo Sardinha, os gritos eram abafados pela música, mas a matéria do jornal afirma que os moradores tiveram que trancar as casas e fechar as janelas para tentar não ouvir os berros.574 Não houve ordem para que parasse e o suplício só acabou quando uma grande quantidade de cães, inclusive o cão Vigilante, começou a morder os guardas. A música parou de repente e houve uma debandada geral.575