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Capítulo 4 Coisas para dispor: compartilhamento e troca

5.2. Chegada e recepção dos visitantes

Na data prevista e informada pelos Kalapalo aos Kuikuro, algumas dezenas de pessoas se deslocaram de Aiha e de outras aldeias menores (também kalapalo) para participar do evento, totalizando cinco barcos. A maior parte do grupo era composto por homens (praticamente todos os homens adultos de Aiha participaram), mas também havia algumas mulheres e crianças. A presença delas só não foi maior por falta de espaço nos barcos. Essa impossibilidade de participarem provocou uma certa frustração em algumas mulheres que estavam bastante ansiosas com a realização do uluki, mas nenhuma manifestou essa insatisfação de forma muito contundente, já que efetivamente não havia nada que pudesse ser feito a esse respeito, não havendo mais barcos disponíveis para o transporte (alguns dos barcos utilizados foram, inclusive, emprestados de aldeias de poutros povos, localizadas próximas a Aiha).

Ainda no porto próximo à aldeia anfitriã, os Kalapalo se pintaram e se enfeitaram, gritando “küu”, um grito que indica alegria e uma certa descontração, além de servir para informar aos anfitriões sobre sua chegada. Ao longo do caminho até a aldeia também era possível ouvir os mesmos gritos vindos dos homens kuikuro, reunidos na casa dos homens, onde também estavam se pintando e enfeitando. Os Kalapalo entraram na aldeia Kuikuro em fila, liderados por três chefes – chamados ugihongo (“aquele que vai sobre o banco”) – que

discursaram. No caso do uluki que presenciei, nenhum dos ugihongo tinha esse discurso,17 que foi, então, recitado pelo segundo cacique de Aiha, Tühoni. Não pude, nesse dia, registrar os discursos proferidos, pois os Kalapalo não sabiam muito bem como os Kuikuro reagiriam à presença de brancos levados por eles para assistir ao uluki e, por isso, solicitaram a mim e aos demais antropólogos que os acompanhavam que não registrassem a festa com fotografias, gravadores ou mesmo escrevendo ostensivamente. Além disso, como já afirmei em outro momento do texto, os narradores Kalapalo se recusam a gravar comigo coisas que eles sabem que já foram registradas por Antonio Guerreiro, sendo esse também o caso do discurso do uluki. Por essas razões, utilizo aqui como referência a versão publicada por Guerreiro (2015, p. 352- 353), que reproduzo a seguir.

Uluki itagimbakitoho (“Feito para cumprimentar no uluki”), executado pelo chefe do grupo visitante, ao entrar na aldeia anfitriã18

1 Ah, uhisuü̃daõ uhisuü̃daõ uhisuü̃daõ

Ah, meus irmãos, meus irmãos, meus irmãos 2 Ah, uge muke akangaba egei muke

Ah, eu

3 Ah, ehisuü̃daõko muke gele akangaba higei ũãke

4 Atokondu inkgatitanügü muke gele akangaba higei uheke

Ah, trago um grupo de amigos formado por seus irmãos, ainda agora como antes 5 Ünago nigihukipügüna muke gele uheke

Para o lugar que foi aberto por aqueles 6 Ehisuü̃daõko muke gele

Formado por seus irmãos

7 Atokondu inkgatitanügü muke gele igei uheke Um grupo de amigos eu trago

8 Ah, ünago muke gele akangaba higei 9 Apüngeke muke gele akangaba higei

Ah, na falta daqueles

10 Ehisuü̃daõko muke gele higei ũãke

11 Atokondu inkgatitanügü muke gele higei ũãke

17 “Ter um discurso” significa ter passado por processo de aprendizado e, além de saber recitá-lo completamente, já tê-lo feito em algum ritual. Os ugihongo do uluki realizado em Ipatse foram, em ordem: Kumeti Kalapalo (morador da aldeia Barranco Queimado), Kayaltá Kalapalo (filho mais velho do primeiro cacique de Aiha e morador, naquele momento, da aldeia Lago Azul) e Amusa (o filho mais velho de um dos agentes de saúde de Aiha, que tinha, à época da festa, cerca de 16 anos de idade e assumia, pela primeira vez, a posição de ugihongo). 18 Executado por Ageu em 04 de setembro de 2010. Franchetto (comunicação pessoal) aponta que uma versão desse discurso registrada por ela entre o final de 1980 e o início de 1990, possuia uma sequência de blocos formuláicos (semelhante àqueles presentes nos discursos do egitsü, nos quais se nomeiam chefes antigos; ver Guerreiro [2015, p. 341 et. seq.]), cada um dos quais “celebrando as especialidades [produtivas] alto-xinguanas” e tratando os povos como seus oto.

12 Ah, uheke muke gele higei ũãke

Eu trago um grupo de amigos, formado por seus irmãos, ainda agora como antes 13 Ah, kutaũpüaõko muke ata hale igei ũãke

Ah, mas nossos avós

14 Etijipügüko etinhahikitsügü muke ata hale igei ũãke

Quando seus filhos já tinham força nas mãos, agora como antes 15 Einkgatilü heke muke ata hale igei ũãke

Traziam, agora como antes

16 Ah, isagingoila muke gele akangaba higei ũãke Ah, mas não é igual, ainda agora como antes 17 Ehisuü̃daõko muke gele higei ũãke

18 Atokondu inkgatitanügü muke gele higei uheke

Eu trago um grupo de amigos, formado por seus irmãos, ainda agora como antes 19 Ünago muke gele akangaba higei ũãke

20 Apüngeke muke gele akangaba higei ũãke Na falta daqueles, ainda agora como antes

21 Ehisuü̃daõko atokondu inkgatitanügü muke gele higei uheke Eu trago um grupo de amigos, formado por seus irmãos 22 Kutaũpüaõko muke ata hale igei ũãke

Mas nossos avós, agora como antes 23 Etijipügüko muke ata hale igei ũãke

Seus filhos, agora como antes

24 Etinhahikitsügü inkgatilü heke muke ata hale igei ũãke

Traziam, quando eles já tinham força nas mãos, agora como antes

Como pode-se observar, nesse discurso, os chefes visitantes se referem aos chefes anfitriões chamando-os de irmãos e dizendo que trazem consigo um “grupo de amigos formado por seus irmãos”, ou seja, amigos-irmãos dos anfitriões. O uso desses termos é bastante significativo, marcando a informalidade da festa e serve também para estabelecer o tom das relações entre os grupos, na medida em que é para os irmãos que se pede coisas sem que isso gere (ao menos em teoria) vergonha (ihütisu) e é com os amigos que se realizam as trocas efetivamente, conforme discutido no capítulo anterior. Mas, se os visitantes se apresentam como amigos-irmãos, os anfitriões assumem, no discurso de recepção, uma posição mais respeitosa, rebaixando-se frente aos visitantes. Assim, ainda que a distância e a inimizade (potencial) estejam o tempo todo presentes nos atos e nos discursos, o que se procura deixar marcado com mais ênfase durante o uluki são os momentos e possibilidades de aproximação e identificação entre os grupos, como deve ficar mais mais evidente ao longo da descrição.

Após executarem o discurso, já próximos do centro da aldeia, os ugihongo foram conduzidos pela mão por homens kuikuro para se sentarem em bancos colocados à frente da

casa dos homens, com os demais kalapalo se posicionando atrás dos seus chefes-representantes. Nesse momento, o principal cacique kuikuro, considerado “dono da aldeia” (ete oto), saiu de sua casa, devidamente paramentado com as insígnias de chefe – diadema de couro de onça,19 colar de placas de caramujo e colar de garras de onça, segurando um arco preto com sua flecha – e começou a discursar, parado em frente à sua casa, olhando para o centro da aldeia (um discurso que não pude registrar naquele momento e do qual não possuo nenhuma versão kalapalo). Ao terminar, o chefe kuikuro se dirigiu ao centro da aldeia e, voltado para a casa do segundo cacique, novamente discursou, chamando-o para o centro. Repetiu o procedimento, voltado para a casa de um rapaz que assumiu a função de ugihongo junto com os outros dois caciques. Os dois chefes convocados se dirigiram ao centro e também discursaram para o cacique kuikuro (esses momentos ocorrem sempre aos pares, com os dois falando ao mesmo tempo, olhando para o chão ou para o lado – nunca olhando diretamente para a pessoa a quem o discurso se dirige –, em tom de voz muito baixo). Depois disso, o chefe kuikuro (doravante me referirei aos chefes kuikuro como imünhilo, “adversário”, a forma como os Kalapalo chamam os ugihongo da aldeia anfitriã) se dirige ao ugihongo kalapalo e, curvado, olhando para o chão, discursa, enquanto o ugihongo também discursa.20 Não possuo nenhum registo do discurso proferido pelos ugihongo nesse momento e, novamente, utilizo a versão publicada por Guerreiro (2015, p. 354-355). Todavia, a versão aqui reproduzida é do discurso proferido pelos kalapalo nesse momento da festa quando estão na posição de anfitriões sendo, possivelmente, diferente daquela executada pelos kuikuro.

Uluki itagimbakitoho (“Feito para cumprimentar no uluki”), executado pelo chefe anfitrião, agachado em frente ao chefe visitante21

1 Tongisa, uege kana etibegatiga ünago nigihukipügüna Chefe, você que chega no lugar aberto por aqueles 2 Ah, muke ata hale igei ũãke

Ah, mas agora como antes 3 Ünago muke ata hale igei ũãke

Aqueles, agora como antes

4 Tongisa toho mukata hale igei ũãke

Que são chamados de tongisa, agora como antes 1 Ataginhombalü heke igei ũãke

19 Faixa de couro de onça amarrada com algodão, colocada horizontalmente sobre a cabeça.

20 Assim como o discurso de entrada na aldeia, nenhum dos ugihongo possuía esse discurso, que foi recitado, as três vezes, pelo primeiro cacique de Aiha, Uaja.

Conversariam com você, agora como antes 2 Ah, isagingoila muke gele akangaba higei ũãke

Ah, não é igual, ainda agora como antes 3 Egea muke gele higei ũãke

Deste jeito, ainda agora como antes 4 Ünago muke ata hale igei ũãke

Mas aqueles, agora como antes 5 Ataginhombalü heke igei ũãke

Conversariam com você, agora como antes 6 Ah, tongisa toho muke ata hale igei ũãke

Ah, mas os que são chamados de tongisa, agora como antes

É possível notar que, diferentemente do discurso efetuado pelos Kalapalo quando estão na condição de visitantes, nesse discurso (feito apenas pelos anfitriões), os chefes não se referem uns aos outros como amigos ou irmãos, mas utilizando o vocativo tongisa, sinônimo de anetü (“chefe”), com uma conotação muito mais respeitosa do que esse último termo. Essa diferença se explica pelo fato de que há, entre os povos do Alto Xingu, uma grande preocupação em “receber bem” as pessoas em sua casa (e, neste caso, em sua aldeia), o que significa que os anfitriões devem não apenas ofertar mingau e outros alimentos, mas também “falar bem” com o visitante. Assim, por exemplo, todas as vezes em que alguém visita a casa de outra pessoa (com a exceção de parentes muito próximos, com quem não há, idealmente, nenhuma formalidade), é recebido pelos anfitriões com um banco ou algum outro objeto que cumpra essa função, que será colocado próximo à porta da casa, onde se sentam, visitante e anfitrião(ões), para conversar. No caso do uluki, ocorre algo semelhante: os chefes visitantes são colocados sobre bancos e os anfitriões “conversam” com eles por meio dos discursos de recepção, tratando-os com extremo respeito por meio do uso do vocativo tongisa. Também é significativo, neste caso, que os visitantes não sejam convidados, como ocorre em outros eventos interaldeãos da região, mas serem eles próprios que incitam o evento.

Quando terminaram os discursos, o procedimento se repetiu com o segundo imünhilo e depois com o terceiro (as posições dos ugihongo são definidas por termos etários, sendo o que senta no meio o mais velho e considerado principal, seguido pelo que senta à sua esquerda e, posteriormente ao que se senta à sua direita). Assim como se se espera que os anfitriões alimentem os visitantes recebidos em suas casas, ao final dos discursos, as mulheres das casas dos imünhilo (suas esposas, filhas, noras e netas, dependendo do caso) trouxeram grandes panelas com mingau, peixe cozido, além de peixe assado e beiju, que foram entregues aos ugihongo pelos imünhilo. A quantidade de comida ofertada nessas festas é sempre comentada,

posteriormente, sendo esse um importante critério de avaliação do evento e da hospitalidade dos anfitriões.

Após receberem a comida, os ugihongo entregaram os presentes que haviam levado para os imünhilo, que devem retribuí-los posteriormente (neste momento, os ugihongo não dizem o que esperam em troca do presente). O pagamento só será combinado no último dia da festa, quando ocorrerem os discursos de despedida. Esses presentes são sempre objetos de alto valor (tihipükoinhü), idealmente itens representativos das especialidades produtivas regionais, como colares de caramujo branco kalapalo, cerâmicas wauja ou mehinaku, arcos pretos kamayurá, colares de caramujo rajado matipu e sal aweti. Na ausência desses objetos, todavia, pode-se optar por oferecer outras coisas de valor, como panelas de alumínio, missangas, etc. A disponibilidade de riquezas é sempre o principal critério utilizado pelos homens para aceitar ou não a posição de ugihongo nesses eventos (no caso do uluki, eles são indicados pela comunidade e, nos demais rituais, pelo dono da festa); caso não possuam nada de grande valor, mas não queiram abrir mão da posição de ugihongo, as pessoas também podem solicitar algum(ns) objeto(s) aos cônjuges e/ou familiares próximos. Voltando à descrição da festa, os imünhilo recolheram, então, os presentes que lhes foram entregues (neste caso, colares e cintos de caramujo inhu) e se iniciaram as lutas.