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Como já observei, minha relação com os Kalapalo teve início há pouco mais de 10 anos, período no qual realizei diversas viagens, algumas mais longas e outras mais curtas, além do contato mais cotidiano mantido com eles quando estão nas cidades, seja pessoalmente, por telefone, e-mail ou, atualmente, pelas redes sociais. Durante o doutorado, realizei quatro viagens ao Xingu: a primeira delas entre abril e julho de 2014; a segunda, uma pequena viagem de cerca de dez dias entre outubro e novembro do mesmo ano;24 a terceira, também uma viagem curta (estive na aldeia por menos de 20 dias), realizada em fevereiro de 2015; além de uma estadia de cerca de 40 dias entre outubro e novembro de 2015, totalizando, assim, pouco mais de 5 meses de pesquisa.25

Na primeira viagem que fiz após meu ingresso no doutorado, assim que tive oportunidade, reuni-me com os homens no centro da aldeia – um modelo de reunião solicitado pelos próprios Kalapalo todas as vezes que precisam tomar decisões atinentes à comunidade, especialmente aquelas que envolvem a estadia de pesquisadores ou turistas – para apresentar minha pesquisa e quais atividades pretendia desenvolver durante minha permanência na aldeia. Sentamos todos à frente da casa dos homens e expliquei meus objetivos de pesquisa, com o auxílio de um tradutor.26 Os Kalapalo reiteraram sua concordância com minha permanência na aldeia e demonstraram aprovação ao meu projeto de pesquisa, dizendo que “o dinheiro” – foi essa a forma como eles próprios identificaram meu objeto de pesquisa, após as explicações feitas – era um tema muito importante para eles também.

24 Essa viagem foi realizada no âmbito do projeto “Cultura material e vida ritual: documentando conhecimentos e práticas associadas ao pilão na cultura Kalapalo” desenvolvido pelos Kalapalo junto ao Museu do Índio e à UNESCO, do qual fui consultora. Durante essa estadia na aldeia realizamos uma oficina de documentação da fabricação do pilão, que deu origem ao filme “Kohü” (11 min). Mais informações sobre o projeto estão disponíveis no sítio eletrônico do Museu do Índio (http://prodocult.museudoindio.gov.br/etnias/kalapalo/projeto).

25 Somado ao período de pesquisa do mestrado, totaliza cerca de 12 meses.

26 A esse respeito, é importante salientar que possuo pequeno domínio da língua karib, sendo capaz apenas de entender algumas conversas e estabelecer conversas cotidianas. Em função disso, as informações que coletei dependeram, quase sempre, da presença de um tradutor nas conversas, especialmente quando os interlocutores eram pessoas mais velhas, mulheres e crianças que, na maior parte dos casos, não falam e pouco entendem português. Com os homens jovens eu conseguia estabelecer conversas não mediadas, intercalando trechos em português com trechos em karib.

Nessa mesma reunião, combinei que faria uma visita a cada uma das casas da aldeia a fim de atualizar o censo que possuía de pesquisas realizadas anteriormente por mim ou por outros pesquisadores que trabalham com os Kalapalo, com quem atuei conjuntamente em diversos momentos,27 além de coletar informações sobre os benefícios recebidos pelas pessoas. Fazer esse censo foi a forma como encontrei de iniciar um levantamento de informações sobre o tema da pesquisa, mas, principalmente, de me (re)aproximar das pessoas da aldeia, especialmente aquelas que residem em casas que eu pouco frequento (da mesma forma que as pessoas da casa onde me hospedo todas as vezes que estou na aldeia, desde 2007).28 Além disso, considerei que essa seria uma forma prática de me atualizar acerca de quem estava morando em Aiha, quem havia mudado para outas aldeias e quem estava morando na cidade.

A ideia foi bem recebida pelos próprios Kalapalo – já acostumados com procedimentos semelhantes de outros pesquisadores –, que também aproveitavam minha visita para tirar dúvidas sobre o Bolsa Família. Nessas visitas, anotei informações sobre as pessoas que tinham alguma fonte de renda fixa, incluindo informações sobre qual o tipo de renda – fruto de salário, benefício social ou outra fonte – e, quando possível, o valor recebido, o que me proporcionou um censo não apenas demográfico, mas que contemplou também informações sobre a renda das famílias. Sobre esta questão, é importante notar que, muitas vezes, as pessoas não sabem precisar os valores que recebem, especialmente considerando o fato de que não sacam os valores recebidos todos os meses, nem com uma frequência regular, em função dos altos custos e das dificuldades enfrentadas para viajar às cidades da região.

Nesse ínterim, uma questão que, a princípio, parecia-me muito simples – elencar os moradores das casas –, mostrou-se bastante complexa. Ao perguntar sobre quem morava em cada casa, percebi que as pessoas elencadas nem sempre correspondiam com as informações passadas por outras pessoas, ou com aquelas que estavam listadas no último censo realizado pelos agentes de saúde (que já estaria, teoricamente, atualizado com os dados mais recentes). O censo da saúde não incluía, por exemplo, as pessoas que estavam residindo nas cidades – também chamadas de morado (lê-se “moradô”) pelos Kalapalo –, mas que eram referidas pelas pessoas residentes na aldeia como parte efetiva de suas casas, ou eles, inclusive, estavam

27 Informações levantadas em colaboração com Antonio Guerreiro e Marina Cardoso, no âmbito do projeto “Sistemas terapêuticos indígenas e a interface com o modelo de atenção à saúde: diferenciação, controle social e dinâmica sócio-cultural no contexto alto xinguano”, processo CNPq n° 401240/2005-3 (CARDOSO, 2004). 28 Apesar de já ter contato com os Kalapalo há muitos anos, como fiquei algum tempo afastada da universidade, minhas últimas estadias na aldeia antes de iniciar o doutorado haviam sido muito curtas, em períodos de festas, nos quais pouco circulei entre as casas, tendo contato muito mais restrito ao grupo familiar no qual me insiro atualmente. Tratarei um pouco mais sobre a circulação de coisas e pessoas entre as casas em um momento posterior do texto.

presentes nas casas no momento da minha visita. Percebi, então, que tratar desses morado como “índios citadinos” em oposição aos “índios aldeados” não daria conta da questão. Por isso, optei por contabilizar todas as pessoas e famílias que estivessem morando temporariamente na cidade (ou em outras aldeias) como parte das casas. Fiz isso porque há uma noção, frequentemente reforçada pelas pessoas da aldeia, de que a permanência dos morado na cidade é temporária; e, efetivamente, o trânsito entre a aldeia e a cidade acontece cotidianamente. Mesmo residindo nas cidades, essas pessoas mantêm-se fortemente vinculadas a casas específicas e são parte importante do circuito de mercadorias e de dinheiro na aldeia – tanto na condição de receptores quanto de fornecedores, como mostrarei com mais detalhes no Capítulo 2. Por estas razões é que optei por contabilizá-los quando trato da população total da aldeia e das casas, apontando, apenas quando necessário, se, efetivamente, trata-se da população residente na aldeia (no período especificado, já que o trânsito é contínuo), ou se estou me referindo à população temporariamente ausente (a quem me refiro, quando for o caso, como “pessoas em trânsito”).29 Este grupo de pessoas se diferencia daquelas que saem definitivamente para residir em outras aldeias, seja em função de casamentos, seja em função de arranjos familiares ou de preferências individuais relativas à localização da aldeia de destino (mais ou menos próxima da cidade, ou localizadas em regiões onde existiam antigas aldeias kalapalo). Assim, por exemplo, um rapaz que se case e vá residir na aldeia de sua esposa não é considerado mais como “parte” de Aiha, devido ao casamento uxorilocal, ainda que possa decidir retornar com ou sem sua família, de forma temporária ou definitiva, a esta aldeia. O mesmo se passa quando famílias inteiras mudam para aldeias já existentes ou abrem uma nova aldeia. Isso, todavia, não os impede de se juntarem aos moradores de Aiha para participar, como “um povo”, de festas interaldeãs, por exemplo.

A diferença básica está na expectativa que se mantém do retorno dessas pessoas ou famílias para residir novamente em Aiha e, ao mesmo tempo, dos investimentos que os familiares da aldeia fazem nessas pessoas, em termos de recursos materiais (com a disponibilização, quando possível, dos recursos dos pais ou avós, provenientes de aposentadorias ou outras fontes)30 ou afetivos (já que há uma grande marcação do sofrimento e

29 Sobre isso é importante notar que os Kalapalo consideram altamente reprovável o comportamento de pessoas que constantemente mudam de aldeia, a quem se referem de forma pejorativa como migrante. Em contraposição a essa percepção, Horta (2015) aponta para a importância da ideia de movimento para os povos alto-xinguanos, em oposição a uma pressão no sentido da fixidez (de identidades-nomes, endereços) promovida pelo ambiente urbano.

30 Ainda que haja uma grande circulação de bens e de recursos entre familiares que residem em distintas aldeias (pais que enviam coisas a filhos e vice-versa, por exemplo), esse tipo de compartilhamento é mais frequente e,

da saudade proporcionados por esses deslocamentos) para garantir sua manutenção e a continuidade de seus estudos.

Quando trato da população da aldeia, portanto, existem diferentes categorias de agregação de pessoas: quando faço referência à população total, estou falando tanto dos residentes na aldeia quanto das pessoas em trânsito; quando pretendo diferenciar esses grupos, trato especificamente da população residente ou das “pessoas em trânsito”. Dentro da categoria população residente, por sua vez, diferencio as casas, que são as residências físicas compostas por agrupamentos familiares que podem incluir diferentes gerações e parentes mais ou menos próximos (o tamanho das casas é também bastante variado, existindo casas com apenas 2 moradores e casas com quase 30 pessoas). Como procuro mostrar mais adiante, as casas são uma categoria de análise importante para se compreender a circulação de alimentos, enfeites, dinheiro e mercadorias – além de pessoas – na aldeia.31 Dentro da categoria “pessoas em trânsito” também existe a diferença entre quem é morado, que são aquelas pessoas que residem na cidade (qualquer cidade), e as pessoas que estão residindo (temporariamente) em outras aldeias.

De forma complementar ao levantamento de informações feito em campo, também acessei dados oficiais divulgados publicamente pela Caixa Econômica Federal (CEF), com a lista de beneficiários do PBF. Há, no sítio eletrônico do agente pagador do PBF, uma ferramenta de consulta pública, o Sistema de Benefícios ao Cidadão (SIBEC). A busca pode ser feita por UF, município ou família (indicando o nome do beneficiário e seu Número de Identificação Social – NIS32), dando como retorno uma lista que contempla os responsáveis familiares e seus dependentes,33 indicando as datas de nascimento e os NIS de cada um (CEF, 2014). Realizei a consulta para os três municípios que abrangem a região do Alto Xingu – Canarana, Querência

arrisco dizer, de maior monta, quando os parentes residem (ou ao menos exista essa expectativa) na mesma casa, ou, ao menos, na mesma aldeia.

31 Se essa linguagem utilizada aqui pode remeter à discussão feita por Lévi-Strauss sobre as “sociedades de casa” (société à maison) (LÉVI-STRAUSS, 1981, 1991), entendo que não é bem disso que se trata. Penso aqui nas relações entre as casas (moradias) mais como operacionalizações possíveis de relações de parentesco, sem que isso equivalha necessariamente a “bens materiais e imateriais e que se perpetua[m] pela transmissão do nome, da fortuna e dos títulos em linha real ou fictícia” (LÉVI-STRAUSS, 1981, p. 154), como definido pelo autor. Por essas e outras razões já apontadas por Guerreiro (2015, p. 294-307) é que considero importante diferenciar as casas xinguanas das Casas (enquanto conceito analítico) lévi-straussianas.

32 Quando as famílias são cadastradas no Cadastro Único, é atribuído um código familiar a cada uma delas – que faz o vínculo entre o domicílio, a família e as pessoas que a compõem – assim como é atribuído o NIS para cada uma das pessoas cadastradas. Esse número é fundamental para que as pessoas sejam contabilizadas no cálculo da renda familiar per capita, utilizado para a concessão do PBF e depende da apresentação de documentação de cada um dos membros da família, conforme apresento no Capítulo 3.

33 A listagem não possui todas as pessoas da “família” cadastradas no Cadastro Único, mas apenas o responsável familiar e seus dependentes, categoria que, segundo informações fornecidas pelo call center do MDS, inclui apenas os filhos menores de 18 anos, que são aqueles que contam no cálculo do valor do benefício.

e Gaúcha do Norte – e, posteriormente, fiz uma busca simples pela palavra-chave “kalapalo”. Depois de fazer esse primeiro filtro, analisei caso a caso, comparando os nomes e datas de nascimento indicados, a fim de separar apenas as pessoas residentes em Aiha. Nesse processo, alguns registros podem não ter sido corretamente identificados por mim em função da forma como os nomes estão registrados nos programas (seus nomes “oficiais”, que constam nos documentos de identificação), que nem sempre conferem com as informações sobre nominação que possuo. Tentei minimizar esses erros comparando as datas de nascimento e os nomes dos dependentes que constam no SIBEC com as informações de que dispunha. A intenção dessa pesquisa não foi de conferir as informações que havia recebido em campo, mas apenas precisar a quantidade de beneficiários, qualificando a informação com a identificação dos dependentes cadastrados, o que possibilitou fazer uma melhor estimativa acerca dos valores recebidos por cada uma das famílias. Esse trabalho pode parecer, à primeira vista, excessivamente técnico, mas considero importante, já que me permitiu ter uma visão mais global acerca da quantidade de dinheiro que circula nas casas, além de possibilitar que acompanhasse a situação cadastral das famílias, facilitando o esclarecimento de alguns questionamentos feitos a mim pelos Kalapalo acerca do programa como um todo e de seus casos em específico (por exemplo, questões sobre quem pode ou não se cadastrar, a diferença entre os valores recebidos pelas famílias, ou mesmo sobre cadastrados bloqueados ou cancelados).34

Paralelamente à pesquisa na aldeia, realizei entrevistas em Canarana com alguns representantes de órgãos estatais (como a Funai ou o Centro de Referência de Assistência Social – CRAS), gerentes de bancos e lojistas, a fim de entender suas percepções acerca da relação dos índios da região com o dinheiro e, mais especificamente, os benefícios sociais. Essas entrevistas não serão apresentadas integralmente (já que não foram gravadas), mas servem como pano de fundo para a contextualização de algumas informações acerca das relações dos indígenas com a cidade. Uma questão importante sobre o conteúdo dessas entrevistas é que, por ser uma região com alto fluxo de indígenas de etnias e regiões diversas, as respostas dos entrevistados não diziam respeito especificamente aos Kalapalo. Em suas falas, o que aparece, em geral, é uma distinção entre “os Xavante” – identificados sempre como “mais bravos e mais pobres” – e “os índios do parque [indígena do Xingu]”, que seriam “mais bem arrumados e amigáveis”. Ouvi relatos, inclusive, de comerciantes e donos de pousadas que afirmam que “não aceitam Xavante” em seus estabelecimentos. Os alto-xinguanos, por sua vez, são tratados

34 Sobre o funcionamento do PBF, ver sítio eletrônico do MDS: http://mds.gov.br/assuntos/bolsa-familia/. Acesso em 13 de setembro de 2017. Algmas questões são, também, abordadas no Capítulo 3.

de forma mais ou menos indistinta, com pequenas exceções, quando se referem a pessoas específicas (“ah, o cacique fulano, de tal etnia, é meu amigo”, ou “aquele ciclano, de tal etnia, vem sempre aqui”).

Além dessas questões, penso ser fundamental apresentar a forma como me situo na aldeia, considerando minha posição específica em uma determinada parentela. Não é nenhuma novidade o fato de antropólogos serem “adotados” por grupos familiares nos locais onde realizam suas pesquisas, e comigo não foi diferente. Ainda em São Carlos, nos primeiros contatos que tive com os Kalapalo, recebi um nome e, com ele, uma posição em uma parentela que me permite traçar redes de parentesco com quase todos na aldeia, ainda que nunca tenha mantido uma relação particularmente próxima com as pessoas a quem me refiro como “pai” e “mãe”. Essa distância aumentou ainda mais quando a família que me adotou mudou de aldeia. Isso, somado ao fato de que me casei, pouco tempo depois das minhas primeiras viagens a campo com o outro antropólogo que atua em Aiha e que também possui sua própria família na aldeia, mudou significativamente minha posição na aldeia: ao invés de me inserir nas redes de parentesco por meio de relações de consanguinidade, minha inserção é, atualmente, pelas vias da afinidade. Em resumo, a casa onde me hospedo em Aiha é composta pela família que adotou meu esposo (o dono da casa e seus irmãos e irmãs o chamam de uhisuü̃gü, “irmão” – B) e, como consequência, as mulheres (suas “irmãs” – Z), me chamam de uhametigü (“cunhada”, BW) e têm comigo uma relação de “respeito/vergonha”, evitando meus nomes (tanto meu nome “de branco” quanto o nome kalapalo que me foi dado – ao menos em minha presença). O mesmo tipo de respeito se estende à família do primeiro cacique (que é também ete oto, “dono da aldeia”, categoria que discutirei adiante), “tio” (ijogu, MB) do meu marido e, portanto, meu “sogro” (uhütisoho, HMB), à família do segundo cacique, cujas esposas também me tratam por uhametigü (ambas primas paralelas do meu anfitrião – MZD) e a diversas outras famílias da aldeia. O fato de ter “cunhadas”, “sogros” e “sogras” espalhados por quase toda a aldeia (em ao menos 10 das 23 casas de Aiha há pessoas que se referem a mim utilizando os termos equivalente a “cunhada” ou “nora”) me fez aprender na prática – cometendo um sem número de gafes e recebendo diversas cobranças –, algumas questões implicadas nessas relações e que são fundamentais para a compreensão da circulação de bens na aldeia, de forma geral, e entre consanguíneos, afins, parentes próximos e distantes, de maneira mais específica. Uma questão interessante a esse respeito é que os moradores da casa onde me hospedo encontraram uma forma para me consanguinizar através da geração -1. Fazendo um cálculo da relação por outras vias, os pais orientam os filhos e filhas das “cunhadas” (HZ) com quem coabito na aldeia a se

referirem a mim como ama (“mãe”, termo de referência utilizado para M e MZ) e os filhos e filhas dos meus “cunhados” (HB) a me chamarem de etsi (“tia”, termo de referência utilizado para FZ e posições correlatas).35 Feitos esses esclarecimentos, passo a seguir à apresentação da estrutura do texto, a fim de situar o leitor acerca do caminho que percorrerei.