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Capítulo 4 Coisas para dispor: compartilhamento e troca

5.1. Programação e preparativos do uluk

A realização de um uluki interaldeão11 é uma iniciativa que parte sempre da aldeia visitante, que decide, com alguma antecedência, realizar o evento, dando tempo para seus lutadores se prepararem. Essa preparação envolve tanto sessões de treinamento quanto escarificações seguidas da aplicação de remédios e a ingestão de eméticos (preparados a partir de plantas e raízes específicas). Os visitantes informam a aldeia anfitriã sobre a realização da festa apenas alguns dias antes da data que planejaram chegar, de modo que seus lutadores sejam pegos de surpresa, fracos e “com cheiro de sexo”12, o que os tornaria adversários mais fáceis. Diferentemente dos demais rituais alto-xinguanos, para o uluki interaldeão não se envia nenhum mensageiro para fazer um convite formal. A intenção de realizar a festa é apenas informada pelo rádio alguns dias antes de acontecer. Quando ainda não havia rádios nas aldeias, a aldeia anfitriã ficava sabendo da decisão dos visitantes apenas quando estes chegavam gritando –

10 Os cinegrafistas Tauana e Kohizinho “Viola” Kalapalo filmaram parte do uluki realizado em Ipatse e me disponibilizaram a filmagem, ao que agradeço, já que contribuíram para a composição da descrição apresentada a seguir.

11 Chamar esses eventos de interaldeãos é uma forma simplificada de dizer que são eventos que agregam mais de um povo, já que muitos dos povos, como é o caso dos Kalapalo, estão dispersos em váras aldeias. Todavia, nesses eventos, essas aldeias se agregam e se apresentam como “um”, no caso, “um povo”, “os Kalapalo”, em contraposição ao outro povo visitado, no caso aqui descrito, “os Kuikuro”, também reunindo pessoas de distintas aldeias.

12 A aplicação de remédios e a ingestão de eméticos envolvem restrições alimentares e sexuais, pois o sabor ou cheiro de alguns alimentos, bem como o cheiro de sexo e de sangue menstrual incomodam os espíritos donos das plantas utilizadas (responsáveis por “dar força” aos lutadores) que, em função desse incômodo, podem provocar males – com chances de culminar em morte – a quem não cumpre as restrições. Sobre as lutas kalapalo, ver Costa, C. (2013).

gritos específicos que informam a chegada e são utilizados somente no uluki – às proximidades da aldeia visitada.

A decisão de onde fazer uluki passa por questões como a presença de “bons lutadores” nas aldeias anfitriãs,13 mas também pela fama de cada uma acerca da qualidade e efetividade dos pagamentos feitos, além de considerações acerca da presença ou não de feiticeiros no local. Nesse sentido, cheguei a ouvir alguns comentários como “naquela aldeia as pessoas demoram para pagar e às vezes nem pagam”, ou “lá não tem bom lutador, então é ruim fazer uluki” ou ainda, “não gostamos de ir naquela aldeia porque lá só tem feiticeiro”. Além disso, outro fator que é levado em consideração é a disponibilidade de “casas grandes” para hospedar as pessoas da aldeia visitante, que devem ser recebidas, idealmente, em uma única casa na aldeia anfitriã. Todavia, apesar dessas considerações, é praticamente impossível cumprir com todos os requisitos ideais para a escolha de onde fazer um uluki, e o que acaba sendo decisivo é o fato de que o uluki é, ele próprio, um ritual que exige uma retribuição: a aldeia visitante deverá receber a aldeia anfitriã em um momento posterior (o que pode levar alguns anos para acontecer). A aldeia visitante não fará um uluki novamente com a aldeia anfitriã até que o retorno (opijü) do ritual aconteça, o que acaba limitando as opções disponíveis. Os Kalapalo passaram ao menos dois anos sem participar de nenhum uluki com outro povo alto-xinguano, pois estavam aguardando o retorno de três aldeias que foram visitadas em anos anteriores e que ainda não haviam retribuído o ritual. Como um ciclo de dádivas, essa “devolução” não promove uma “quitação” da relação, mas gera um novo ritual que deverá ser “devolvido” pela aldeia visitada, e assim sucessivamente. Ouvi dos Kalapalo, por exemplo, que o uluki que fizeram em Ipatse teria sido uma devolução de um uluki realizado em Aiha, com a presença dos Kuikuro, por volta de 2005. Entretanto, ao final da festa realizada em 2015, os Kuikuro já estavam combinando quando iriam a Aiha “devolver” esse uluki. No limite, importa muito pouco se a festa realizada é ou não uma devolução – já que todas podem ser assim consideradas, não havendo um “começo” –, desde que a relação permaneça e novos eventos como esse continuem acontecendo.14

O uluki interaldeão que acompanhei se originou em uma intenção inicial dos Wauja de realizarem tal evento na aldeia Aiha. Cerca de uma semana antes da data que chegariam em Aiha, os Wauja avisaram pelo rádio de suas intenções. Desde esse dia as pessoas já

13 Ouvi de um rapaz que “através do lutador é que tem uluki. Sem lutador [na aldeia anfitriã] ninguém vai”. 14 Arrisco a dizer que essa é uma das razões pelas quais as origens desse ritual são pouco marcadas na mitologia local.

demonstravam muita ansiedade e alegria, conversando conosco (estava acompanhada de Antonio Guerreiro, e uma de suas alunas) sobre o que iria acontecer e perguntando o que havíamos trazido para trocar. Ao ouvirem respostas como “não trouxe nada” ou “não trouxe muita coisa”, via-se a frustração em seus rostos, já que há sempre uma expectativa de que os brancos que visitam as aldeias sejam, no mínimo, fontes de bens industrializados. Ao mesmo tempo, especialmente as mulheres, se aproximavam de mim e descreviam o tipo de objetos que os Wauja trariam (cerâmicas), indicando seu “baixo valor” (me diziam que as menores podiam ser trocadas por algumas unidades de sabonete) e o quanto eram bonitos (“hekitebe!”), indicando que participar das trocas era praticamente “irresistível”. Meu anfitrião descrevia as cenas de trocas possíveis dizendo (em português) “nossa, aí quando eles colocam lá [oferecem alguma cerâmica muito bonita] eu não aguento. Eu tenho que pegar”.15

As pessoas começaram a se mobilizar e apenas alguns dias depois do aviso dos Wauja, famílias kalapalo residentes em outras aldeias já haviam chegado a Aiha para acompanhar o uluki, trocar seus pertences e, mais importante de tudo, receber as tão requisitadas cerâmicas wauja.16 Os jovens da aldeia também organizaram alguns dias de treino de luta. Foi bastante grande a frustração quando, poucos dias antes da data prevista para sua chegada, os Wauja avisaram pelo rádio que não viriam mais em função de um de seus chefes ter sido hospitalizado e eles estarem muito tristes por isso. Foi essa expectativa frustrada que levou os Kalapalo a se organizarem para ir à aldeia kuikuro, afinal, grande parte do esforço – a mobilização das pessoas para a realização de uma atividade coletiva – já havia sido feito e a expectativa de realização da festa os havia deixado muito animados e “com vontade de fazer festa” (uma tradução livre da expressão esükijü).

A preocupação passou a ser a logística necessária para o transporte de todos (pessoas e seus objetos) até Ipatse, além da realização de “ensaios” das festas que seriam executadas entre os Kuikuro. Esses “ensaios” compõem a preparação de todas as festas, especialmente aquelas que envolvem outros povos, quando podem se repetir por longos períodos, chegando a mais de um ano no caso do egitsü, por exemplo. Mas, ao contrário das festas de homenagem

15 Essa fala indica como o desejo cria uma espécie de impulso para a troca.

16 As cerâmicas – especialmente as grandes panelas redondas com bordas extrovertidas e arredondadas – são muito requisitadas e, ainda hoje, mesmo depois da introdução de panelas de alumínio, são utilizadas, especialmente no preparo de kuigiku (caldo doce de mandioca). Além dessas, as pequenas panelas zoomorfas são muito apreciadas pelos Kalapalo que, todavia, pouco ou nunca as usam diretamente. Eventualmente, alguma delas é utilizada para preparar e guardar pequenas quantidades de sal – produzido a partir da cinza de um aguapé –, por exemplo, mas, em geral, essas “panelinhas”, como as chamam em português, são guardadas para servirem como presente ou como pagamento de uluki realizados com brancos. A relação dos Wauja com esses artefatos parece ser diferente, conforme descreve Barcelos Neto (2006).

aos chefes, que envolvem preparações mais longas e ensaios mais recorrentes, as festas do uluki são muito pouco ensaiadas. A principal razão para isso é a proximidade com que se decide realizar esse evento, mas também penso que o uluki seja um momento marcado por pouca formalidade e pelo improviso, características que marcam as relações de amizade no Alto Xingu e que contrastam com a formalidade que caracteriza os demais rituais regionais. Além disso, no evento que acompanhei, um dos “ensaios” teve que ser cancelado em função de um Kalapalo residente em outra aldeia ter sido operado de apendicite. Esse incidente deixou a todos muito preocupados, acompanhando diariamente as atualizações sobre sua recuperação e fez com que a data de realização do uluki fosse adiada por alguns dias. Ele chegou mesmo a ser quase cancelado, em função da preocupação de seus parentes e a tristeza que afetava a todos, mas felizmente, a recuperação do paciente ocorreu sem maiores incidentes, permitindo que os Kalapalo mantivessem seus planos de realização da festa na aldeia kuikuro.