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Capítulo 4 Coisas para dispor: compartilhamento e troca

4.2. Donos de coisas da comunidade

Para compreender a relação dos donos com as coisas da comunidade é preciso, antes, entender do que se trata essa comunidade, tomada como um sujeito de direito, uma “unidade política”, e cuja origem parece estar relacionada, em alguma medida, à atuação das associações indígenas na região. O termo Kalapalo que é traduzido como comunidade é katutolo (cuja tradução mais literal seria “todos”), um coletivo que é evocado em algumas situações específicas. A primeira delas é nas conversas sobre as razões pelas quais as pessoas estudam, seja na aldeia, seja nas cidades. Em geral, em suas respostas, as pessoas dizem que estão “pensando no futuro da comunidade”, ou que “querem ajudar a comunidade”. O segundo (e principal) momento em que a comunidade toma forma é durante as “reuniões” (akitsene) cotidianas realizadas no centro da aldeia, com participação dos homens adultos. Essas reuniões não são formais, nem propriamente organizadas. Em muitos casos, o que ocorre é apenas um prolongamento do espaço cotidiano de conversas e brincadeiras masculinas, todos os finais de tarde, em frente à casa dos homens, bem próximo de onde se localiza o principal campo de futebol da aldeia. Nessas ocasiões, mesmo quando há algum assunto da comunidade sendo discutido, é frequente que as pessoas estejam conversando sobre outros temas, em conversas paralelas ou ainda, assistindo ao jogo que, porventura, esteja acontecendo no campo (que, por sua vez, pode envolver tanto homens quanto mulheres). A realização de reuniões em que são decididas questões relativas à comunidade, em geral, depende da presença de ao menos um dos caciques principais26; qualquer um dos demais homens que queira pode participar, assim como pode também optar por não participar, não existindo nenhum tipo de cobrança neste sentido, a não ser quando as decisões envolvem pessoas específicas. As mulheres nunca participam dessas conversas, que ocorrem em uma região da aldeia raramente frequentada por elas. Nesses momentos é que se decide sobre a realização de festas ou outros eventos (como campeonatos

26 Atualmente, Aiha conta com dois caciques principais, Uaja, o “primeiro cacique”, e Tühoni, o “segundo cacique”. Sobre essas posições, ver Guerreiro (2015).

de futebol, ou oficinas, por exemplo), ou sobre a participação das pessoas em eventos realizados em outros lugares, ou ainda, quando são feitos informes sobre a utilização dos equipamentos da comunidade, como barcos e motores, ou sobre a realização de alguma atividade coletiva ou mutirão nos dias subsequentes. Todos os presentes podem se manifestar sobre o tema discutido, ainda que raramente os homens mais jovens o façam.

Apesar de a associação da noção de comunidade às reuniões remeter a uma ideia de consenso, muitas das decisões não são consensuais e não é raro que se ouça reclamações ou comentários posteriores discordando das decisões que foram ali tomadas. Esse tipo de comentário, entretanto, é feito sempre no ambiente doméstico, acompanhado de afirmações mais ou menos conformadas de que “foi isso que a comunidade decidiu”. A não conformidade com as decisões tomadas nesses espaços também é razão para alguns homens optarem por não estar presentes nesses momentos. Raramente ocorre um debate propriamente dito, já que a ética local prega pela cortesia e pelo não confronto (ao menos publicamente), a não ser em casos extremos de acusações de feitiçaria, em que os acusadores podem ficar muito exaltados, e que podem levar até mesmo à morte do acusado. Não há ninguém que dê “a palavra final” sobre os assuntos, ainda que se espere que alguém sempre conduza o debate e dê os devidos encaminhamentos. Algo um pouco diferente ocorre apenas, me parece, quando se trata da aplicação do dinheiro da associação de Aiha (Associação Aulukumã do Alto Xingu). Nas decisões que acompanhei a esse respeito, coube sempre ao primeiro cacique (que, é importante ressaltar, não era, naquele momento, presidente da associação) a decisão final de quanto dinheiro seria utilizado para as atividades propostas pela comunidade. Ainda assim, lhe cabia apenas a decisão sobre a quantia aplicada e não exatamente sobre a forma de aplicação da mesma; essa decisão coube, em todos os casos, à comunidade.

Esse ponto remete novamente ao tema dos donos das coisas da comunidade, já que, no caso exposto acima, o primeiro cacique parece ser identificado, ao menos em algumas situações, como dono da referida associação. Mas ao falar das coisas da comunidade (katutolo engü, “o que é de todos”) não me refiro apenas aos recursos financeiros e mercadorias adquiridos com o dinheiro da associação – como barcos, motores, trator, gerador, bolas, uniformes de futebol, dentre outros –, mas também às canoas de uso coletivo, aos caminhos principais da aldeia, à casa dos homens, à escola, à Unidade de Saúde e aos remédios disponibilizados pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI). Como já apontei, mesmo sendo consideradas “coisas de todos”, cada um desses itens possui um dono específico, que é quem cuida e se responsabiliza pelo objeto/espaço em questão e que é tanto seu oto quanto seu

intsü. O uso do termo oto remete aos cuidados dispensados pelo dono com relação ao bem possuído, conforme discutido na seção anterior. Por outro lado, entendo que, ainda que não seja usual, o dono dessas coisas possa também ser tratado como intsü exatamente por se tratar de uma relação que envolve a comunidade. O dono-intsü é uma espécie de “razão de existência” do objeto enquanto tal para a comunidade, estando aí, segundo essa interpretação, a relação de “origem”, envolvida no uso de intsü.

De qualquer maneira, a escolha do dono dessas coisas cabe à comunidade, exigindo ainda, que a pessoa aceite a indicação. Assim, por exemplo, é o primeiro cacique, Uaja, que é o dono dos barcos, motores e de um dos rádios da comunidade, mas o gerador, o trator e mesmo a escola e o posto de saúde possuem outros donos. São essas pessoas que devem cuidar do objeto/espaço, garantindo sua conservação, o que implica em controlar a forma como são utilizados e também realizar as atividades técnicas e mecânicas que estejam a seu alcance e que contribuam para o pleno funcionamento dos equipamentos e dos espaços (incluindo consertos, limpeza, etc.) – o que nunca ocorre com o mesmo esmero de quando se trata de um objeto/bem patikula. Em geral, os custos financeiros exigidos para essa manutenção são arcados pela associação de Aiha, mas eventualmente seus donos acabam contribuindo com pequenas quantias (provenientes de seu dinheiro patikula) para adquirir peças ou insumos necessários para seu funcionamento. Por essa razão, em muitos casos, os donos dos equipamentos da comunidade são pessoas assalariadas, ou com acesso a alguma fonte regular de renda. Algumas pessoas recusam assumir essas funções, consideradas bastante complexas porque exigem, além desse dispêndio financeiro, uma negociação constante com as demais pessoas da comunidade interessadas no uso do objeto/espaço. Essas negociações, por sua vez, podem gerar críticas e fofocas em relação ao dono, que se sente sempre muito suscetível e pressionado a ceder, mesmo contra sua vontade pessoal.

Foi às voltas com o evento “copa do mundo de futebol” que pude perceber de forma mais clara algumas implicações do que significa ser dono de algo da comunidade. Acompanhei não apenas o evento em si (que durou 30 dias, entre os meses de junho e julho de 2014), mas também os preparativos realizados em Aiha para assistirem aos jogos. Foi algo que mobilizou toda a aldeia, levando a maior parte das pessoas a reorganizarem suas atividades para que não coincidissem com os horários dos jogos. As mulheres passaram a frequentar as roças antes dos jogos, e os homens iam pescar somente ao final das partidas. Além disso, houve uma grande mobilização para viabilizar a transmissão do evento, considerando que a energia elétrica da

aldeia era provida por um gerador da comunidade, movido a gasolina,27 ao qual todas as casas estavam ligadas por uma fiação providenciada pelo dono do gerador, um dos professores da aldeia.

Em dias “normais” – sem grandes eventos televisivos –, era comum que o gerador ficasse ligado apenas algumas poucas horas, quando havia combustível disponível para isso. Isso porque a quantidade de combustível necessária para o funcionamento daquele gerador era muito alta (para permanecer ligado por cerca de 2 horas, eram necessários 3 litros de combustível, cujo preço nos postos em Canarana varia sempre muito acima da média dos preços das principais capitais do país), fazendo com que sua utilização fosse bastante cara. Apesar do uso do gerador ser compartilhado, “coletivo”, o seu abastecimento é, cotidianamente, feito de forma patikula: quem dispõe de gasolina e tem interesse em ligá-lo (em geral para assistir a algum programa de televisão ou então para usar algum equipamento eletrônico específico) entrega o combustível ao dono do gerador que o liga. Depois de ligado, todavia, o uso é comunitário, já que todas as casas possuem uma ligação elétrica com esse gerador. Em função da grande diferença de valores recebidos pelas pessoas na aldeia e do fato de existirem algumas pessoas que não possuem nenhum tipo de fonte regular de renda, os assalariados acabam sendo os principais responsáveis por ligar o gerador, mas não são os únicos que o fazem, e não fazem com a mesma regularidade (alguns contribuem mais do que outros, muitas vezes por solicitação de suas esposas e filhos, que acompanham algumas das novelas e jornais de transmissão diária). Além desse gerador da comunidade, algumas casas possuem geradores patikula que são utilizados eventualmente. Seus donos optam por esses geradores quando o gerador da comunidade não está funcionando ou quando precisam de energia e possuem pouco combustível disponível e ninguém abasteceu o gerador da comunidade (são geradores menores com capacidade para ligar menos aparelhos, tendo um consumo de combustível bem menor do que o gerador da comunidade). Mas seu uso frequente é malvisto “pela comunidade”, pois é considerado egoísmo da parte de seu dono. Assim, as pessoas se empenham para garantir o funcionamento do gerador da comunidade, mesmo sendo donas de geradores patikula, utilizados apenas em último caso.

27 Gerador que foi dado à comunidade por uma equipe de filmagem, como parte do pagamento pelo registro de um ritual alguns anos antes. Este gerador quebrou diversas vezes ao longo dos anos de uso, sendo consertado (ou remendado) e voltando a funcionar. Todavia, em função da sobrecarga de uso, foi finalmente inutilizado logo após a copa do mundo de 2014. Alguns meses depois, foi substituído por um gerador mais potente, movido a diesel, e adquirido com recursos da Associação Aulukumã.

Já nos dias em que há partidas de futebol dos campeonatos estaduais e nacionais, o consumo de combustível para o gerador é maior do que nos dias sem jogos. Prevendo a dificuldade no abastecimento do gerador durante a copa do mundo realizada no Brasil (em que os jogos eram transmitidos diariamente, chegando a ter quatro partidas televisionadas em um único dia), alguns homens da aldeia organizaram uma mobilização para fazer uma “vaquinha” para comprar combustível “para a copa”: a meta era arrecadar dinheiro suficiente para comprar combustível para assistir a todo o evento (o que foi estimado em cerca de 250 litros por um dos idealizadores da “vaquinha”, além do óleo necessário para o funcionamento do motor do gerador). A mobilização, coordenada por alguns rapazes que, todavia, não eram identificados como seus donos, ganhou grandes proporções e envolveu praticamente todos os homens da aldeia (além de mim e de outro antropólogo que trabalha com os Kalapalo, que sequer estava presente), que contribuíram com quantias que variaram bastante. De forma geral, os assalariados contribuíram com valores maiores do que os não assalariados, considerando que também eram eles que possuíam a maior quantidade de eletrodomésticos que consomem muita energia (como é o caso dos freezers). Os organizadores da vaquinha tentavam convencer as pessoas que ainda não haviam contribuído a darem algum valor, ou mesmo aquelas que já haviam, a fornecerem valores maiores, dizendo que “todo mundo usa o gerador pra carregar a bateria do celular e da lanterna” e que, portanto, todas as pessoas da aldeia deveriam colaborar. Até mesmo uma parte do dinheiro da merenda foi utilizada para complementar a “vaquinha”. Mas o total de recursos arrecadados foi bastante aquém do que imaginavam ser o ideal, permitindo a aquisição de apenas 130 litros de combustível e mais alguns frascos de óleo, o que foi suficiente apenas para assistirem aos primeiros 10 dias do evento. Durante esse período, apesar dos protestos de algumas pessoas que diziam que “a gasolina não ia durar [até o final dos jogos]”, o gerador era ligado em todos os jogos, independentemente das seleções envolvidas. E foi assim até que, efetivamente, o combustível acabou, muito antes do final do evento. Neste caso, como o combustível não era patikula, mas da comunidade, já que fruto da “vaquinha”, ele foi utilizado seguindo a mesma lógica de consumo das demais coisas da comunidade, que é também a forma como os Kalapalo de Aiha consomem os alimentos disponíveis (sejam eles “tradicionais” ou comprados na cidade, patikula ou da comunidade): tudo o que estiver disponível é consumido em grades quantidades, de acordo com o desejo das pessoas, até que se esgote. No caso do combustível “da copa”, qualquer pessoa que sentisse necessidade/vontade de assistir a um dos jogos poderia solicitar ao dono do gerador que o ligasse.

Assim, depois que o “combustível da copa” acabou, o gerador voltou a ser ligado utilizando a lógica do patikula: quem tivesse combustível disponível e interesse (ou que fosse convencido/coagido a fazê-lo), abastecia o gerador. Essa mudança significou uma redução do tempo em que o gerador ficava ligado: ao invés de assistirem a todos os jogos inteiros, muitas vezes o gerador era ligado somente na metade do segundo tempo dos jogos considerados “menos importantes” (envolvendo seleções “menores”), somente para “ver o resultado”. Apenas os jogos considerados mais importantes por meus anfitriões (em geral, aqueles que envolviam seleções que contam com jogadores famosos que atuam nos principais campeonatos europeus) eram assistidos em sua íntegra.

A situação se complicou um pouco quando, no final da primeira fase do evento (fase de grupos), que concentrou a maior parte dos jogos, e justamente no dia de um dos jogos da seleção brasileira, o gerador da comunidade quebrou. Ele já vinha falhando há algum tempo, mas sempre com alguma possibilidade de “conserto” (em geral, “remendo”, utilizando os materiais e ferramentas – além da criatividade – disponíveis na aldeia). Todavia, dessa vez não houve nenhuma possibilidade de conserto e o gerador não pôde mais ser utilizado até o final da copa, quando foi enviado à cidade para ser reparado. Assim que o gerador da comunidade deixou de funcionar, começaram alguns comentários sobre a necessidade dos donos de geradores patikula “liberarem” seu uso para que as pessoas pudessem assistir aos jogos, acompanhados de reclamações de que os donos desses geradores “não os emprestam para a comunidade”. Os donos, por sua vez, se defendiam das acusações dizendo que “não emprestam o gerador porque se acontece alguma coisa não é a comunidade que vai pagar pelo conserto”. Entretanto, nesse caso, como não se tratava (apenas) de emprestar o gerador para a comunidade, mas sim de suprir a própria vontade de assistir aos jogos, os geradores patikula foram utilizados para assistir a todos os demais jogos até o final da copa, sendo ligados, muitas vezes, concomitantemente (existiam três geradores em funcionamento naquele momento). Para assistir às partidas as pessoas de toda a aldeia se reuniam nas poucas casas onde havia televisões ligadas à rede patikula – que eram as casas dos donos dos geradores ou então aquelas casas cujos donos foram autorizados a “puxarem um fio” de energia dos geradores patikula para o funcionamento de seus televisores.28 Foi desta forma que as pessoas conseguiram assistir aos

28 Isso ocorre, por exemplo, quando várias pessoas contribuíram para a compra do gerador e, portanto, podem dispor dele quando quiserem, ou então no caso de casas de parentes próximos, autorizados a compartilhar do gerador. O mais curioso no caso dos geradores comprados “coletivamente” (com dinheiro patikula de várias pessoas) é que eles também possuem um dono: apenas a pessoa que fica responsável por seu funcionamento é assim considerada, ainda que as demais pessoas que contribuíram para sua compra possam utilizá-lo quando quiserem.

jogos finais da copa, esgotando todos os estoques de combustível patikula da aldeia, o que significou inclusive a necessidade de esvaziar os tanques de parte das motos. A despeito de todos esses esforços, o resultado não poderia ter sido pior: a derrota do Brasil por 7 a 1 para a Alemanha na final foi razão de grande tristeza para muitas pessoas, que reproduziam as análises feitas por comentaristas da televisão e exclamavam coisas como “o Felipão [técnico da seleção naquele momento] é muito ruim” ou “isso aconteceu porque os jogadores fizeram sexo”. A tristeza provocada foi tanta que, para evitar possíveis problemas provocados por esse estado de tristeza, assim que se encerrou o jogo alguns jovens resolveram se reunir na casa dos homens e ensaiar músicas da takuaga, o que sempre “deixa as pessoas felizes”.

Após essa apresentação, espero ter deixado claro que, conforme apontado por Fausto (2008) e Costa, L. (2013), a relação dos donos com suas coisas extrapola uma relação de “propriedade”, e abrange, fundamentalmente, formas distintas de cuidado e responsabilidade. E como já ressaltei anteriormente, compreender essa relação é importante na medida em que são apenas os donos que podem dispor (ofertar, trocar, vender, destruir) os objetos de que dispõem. Farei a seguir uma discussão sobre a circulação de bens entre as pessoas, mostrando como esse tipo de relação contribui para a criação e manutenção das relações de parentesco e aliança, apontando para as transformações proporcionadas pela introdução de bens industrializados nessas redes.