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Capítulo 1 Os brancos e suas coisas

1.1. Dois retratos da aldeia

Acompanhei, nos últimos anos, um crescimento bastante intenso na disponibilidade de “coisas de branco” em Aiha, que são, ao mesmo tempo, efeito e causa de uma série de transformações que podem ser observadas no cotidiano da aldeia. O que pretendo fazer a seguir é ilustrar as mudanças a que faço referência e procurar, etnograficamente, deixar mais claro quais são os elementos e as relações que estão em questão quando trato de transformações e quando os próprios Kalapalo distinguem um comportamento “tradicional” – dos antigos (ngiholo) –, de um comportamento atual, associado ao “mundo dos brancos”. Não pretendo, com isso, reificar essa distinção, já bastante criticada na teoria antropológica, mas contribuir com aportes etnográficos para pensar as situações de encontro colonial e mesmo de expansão do capitalismo global. Farei, então, uma apresentação da aldeia Aiha, uma espécie de retrato da aldeia. Um não, na verdade dois, comparando distintos momentos, um de Aiha em 2006, ano de minha primeira visita, e outro mais recente, com as impressões que tive da aldeia nas últimas viagens que realizei.

Utilizo aqui a ideia de retrato não de forma aleatória, mas por algumas razões específicas. A primeira delas é dar uma dimensão (ainda que um tanto impressionista) das transformações a que me refiro. Nesse sentido, considero interessante fazer um esforço comparativo, o que é facilitado se tomarmos como parâmetros dois recortes espaço-temporais específicos, dois retratos. Reconheço, por um lado, que mostrar “como as coisas eram antes” e “como são hoje” não dá conta de explicar os mecanismos e relações envolvidos nas transformações a que faço referência, mas, por outro lado, o processo descritivo e comparativo muitas vezes exige esse tipo de estratégia. Além disso, penso aqui nesses retratos como objetificações, ao mesmo tempo índice e causa das relações entre sujeitos. Como definido por Guerreiro (2015, p. 430, grifos no original), “toda objetificação exibe, de alguma maneira, as

relações que a produziram enquanto cria ou afeta outras relações (pois só se objetifica algo a fim de exibi-lo ou oferecê-lo para alguém cujas relações se deseja afetar)”. Nesse sentido, os retratos (ou as imagens, de forma geral) devem ser abordados a partir dos efeitos que produzem (seja para si próprios, seja para outrem), considerando as “formas que oculta[m] ou revela[m]” (STRATHERN, 2014, p. 215).

Essa definição nos leva à segunda razão pela qual creio que a ideia de retrato possa ser utilizada aqui de forma produtiva, que é o fato de que a estética (entendida aqui como uma forma específica de apresentação visual), um elemento fundamental na sociocosmologia alto- xinguana, se tornou também um dos principais “bens simbólicos” desses povos na relação com os brancos e também com outros povos indígenas. Segundo Coelho de Souza, no processo de interação com os brancos,

a própria auto-apresentação dos alto-xinguanos como povos pacíficos, que haviam substituído a guerra pelo ritual intertribal, propiciou a construção, da qual também participaram os agentes não indígenas da construção do Parque (dos Villas-Boas aos antropólogos), de uma imagem específica dessas sociedades que veio a circular ela própria como provavelmente o principal “bem simbólico” das trocas cerimoniais que caracterizam as relações dos xinguanos com os brancos (COELHO DE SOUZA, 2010, p. 100).

Esse imaginário acerca dos povos alto-xinguanos provoca certa obstinação tanto da parte dos indígenas locais quanto dos não indígenas que frequentam suas aldeias no sentido de produzir imagens no formato de fotografias e filmes, mas pouco se discute acerca do tipo de imagem produzida ou, o que me parece mais interessante neste momento, sobre o tipo de efeito que produzem. Nesse sentido, considero importante entender dois dos elementos que contribuem para a composição de qualquer imagem fotográfica, que são o foco e o enquadramento. O foco é o que irá determinar quais elementos estarão mais ou menos nítidos na imagem e, consequentemente, quais objetos (ou planos) terão destaque na composição final. O enquadramento, por sua vez, consiste na decisão acerca do que irá ou não aparecer na imagem final, qual o corte que será feito. Nessa composição, certos atributos da imagem são revelados, enquanto outros permanecem ocultos, cabendo ao observador imaginá-los.

Pensando a respeito das imagens produzidas dos e pelos Kalapalo, o que se oculta, em geral, são os “objetos dos brancos”, como roupas, panelas, carros e motos, reproduzindo um ideal de “pureza” que é compartilhado pelos próprios alto-xinguanos. Assim, não é incomum ouvir deles afirmações de que são “índios de verdade” em oposição a outros povos que “não têm mais cultura” (algo já ressaltado por Fausto [2005] e Coelho de Souza [2010]). Não entrarei

aqui na discussão sobre como a produção de certas imagens dialoga com uma apropriação específica da noção de cultura, o que exigiria um grande desvio de caminho, neste momento. O que pretendo ressaltar com essa afirmação é que, ao produzirem imagens de si ou se deixarem fotografar ou filmar, os Kalapalo escolhem um foco e um enquadramento (literal e metaforicamente falando) visando um efeito específico tanto no que diz respeito à sua relação com o “mundo de fora” do Xingu, quanto – e talvez, principalmente – no que trata dos processos de fabricação de corpos e pessoas propriamente xinguanos, a partir de conceitos nativos de estética e beleza. Nesse sentido, não é à toa que, das milhares de imagens deles que circulam, são raras as que retratam cenas cotidianas ou que destaquem suas relações com objetos industrializados (com exceção dos colares de missangas) que, quando aparecem, ocupam um lugar bastante marginal, quase invisível. O efeito final que se vê são imagens “limpas” (também pensadas como “puras”) e, ao mesmo tempo, incrivelmente belas, com todas as nuances de cores, luzes e sombras que produzem um impacto visual impressionante e que só retroalimentam essa própria autoimagem produzida e reproduzida.5

Apenas para exemplificar essa questão, há poucos anos os Kalapalo realizaram, em parceria com o Museu do Índio e a Unesco, um curta-metragem sobre os colares feitos a partir de conchas de caramujo inhu (Megalobulimus sp.), um item da cultura material caracteristicamente alto-xinguana, cujos donos6 – e produtores – são os Kalapalo. O vídeo foi muito bem avaliado pelos críticos (não indígenas) e, inclusive, premiado em um evento internacional em 2012.7 Todavia, alguns anos após seu lançamento, quando foi exibido para as demais lideranças alto-xinguanas, os comentários foram de que o filme não estava tão bom porque as pessoas que apareciam nele contando histórias sobre o caramujo não estavam devidamente enfeitadas, vestiam roupas “de branco” – shorts e camisetas, como os homens se vestem cotidianamente nas aldeias – e que nos próximos vídeos os Kalapalo deveriam ter o cuidado de mostrar as pessoas enfeitadas, portando seus ornamentos e pinturas corporais característicos. Alguns anos depois, em 2015, os Kalapalo de Aiha decidiram produzir um novo vídeo em parceria com o Museu do Índio e da Unesco, agora sobre a fabricação do pilão (kohü). Todavia, poucos dias antes do início das atividades uma das filhas da irmã do primeiro cacique

5 A proliferação de telefones celulares com câmeras fotográficas acopladas tem alterado um pouco esse padrão, incluindo no roll de imagens também as selfies, ou autorretratos, nos formatos divulgados cotidianamente através das redes sociais. A análise dessas imagens seria, todavia, tema para outra tese.

6 Categoria que será discutida no Capítulo 4.

7 Inhu (21 min) conseguiu, em 2012, o primeiro lugar no Concurso de Fotografias e Vídeos realizado pelo Centro Regional para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da América Latina (CRESPIAL), sediado em Cusco, no Peru.

da aldeia faleceu, deixando todos de Aiha muito tristes e enlutados. Apesar da tristeza, eles optaram por continuar a oficina de produção do vídeo, mas, novamente, sem estar enfeitados, agora em função do luto. A solução encontrada por eles foi, então, incluir como cena inicial do filme a explicação do ocorrido como justificativa para o fato de não estarem devidamente “vestidos” com seus cintos, colares e pinturas corporais.

Esses casos mostram um pouco a produção intencional de efeitos específicos que a captura de imagens – fotografias ou vídeos – permite e o tipo de relação que é colocada em jogo pelos alto-xinguanos nesses momentos: não há problema em se vestir “como branco” no cotidiano, mas no momento em que a imagem é capturada para ser exibida, a situação assume outra forma. Seja para a exibição em contextos externos ao universo alto-xinguano (para os brancos ou para outros povos indígenas), quanto em seu próprio cotidiano, as imagens que os retratam devem, em sua avaliação, sempre reproduzir seu ideal de beleza: uma “pessoa de verdade” (kuge) deve ter seu corpo enfeitado (tüengikondokinhü, “pessoa pintada, portanto cintos, colares, plumárias”).

Considerando essas questões, os retratos produzidos por mim na sequência serão bastante diferentes das imagens dos alto-xinguanos mais comumente encontradas em livros, revistas, programas de televisão e na internet. Nesse jogo de revelações e ocultamentos, de figura e fundo, farei um foco um pouco invertido, dando destaque não (apenas) à beleza característica dos rituais, mas ao aspecto mais cotidiano (e às vezes ritual...) de suas relações com o dinheiro, as mercadorias e “o mundo dos brancos”. Ainda que seja um retrato não tão belo quanto as fotografias mais comuns – produzidas inclusive por mim8 –, nem por isso são menos interessantes ou dignas de nota. Entretanto, como apontei anteriormente, tenho que fazer todo o esforço possível para evitar que esse texto possa ser percebido pelos Kalapalo como o inverso da “boa fala”, a fofoca, um tipo de ação que não apenas não constrói relações, como contribui para desfazer as relações existentes (ou refazê-las de forma negativa, destrutiva). Passemos então aos retratos.

Cheguei na aldeia pela primeira vez em julho de 2006, às vésperas do encerramento de um dos principais rituais regionais alto-xinguanos, o egitsü (ou kuarup, como é mais conhecido)9 que, naquele ano, acontecia também na aldeia Aiha Kalapalo. Não demorou muito

8 Ver, por exemplo, Novo (2013), contendo um ensaio fotográfico do egitsü.

9 Ritual mortuário realizado para chefes ou “pessoas importantes”, conforme afirmam os Kalapalo. Para descrições desse ritual, ver Guerreiro (2015) e Agostinho (1974).

até perceber que aquela não se tratava de “uma das aldeias mais isoladas do mundo”, como foram descritos no reality show da emissora britânica BBC, filmado na aldeia naquele mesmo ano.10 Os índices da “modernidade” (ou da “aculturação”, conforme definida por Gow [1993]) podiam ser vistos em todos os lugares: roupas, utensílios de pesca e cozinha, bicicletas, trator, caminhão, televisão. Todavia, mesmo aos olhos das pessoas mais puristas, estavam também ali presentes todos os elementos do que é identificado à “tradição”: festas, enfeites, cantos, danças, feitiçaria e xamanismo tomavam conta do cotidiano da aldeia.

Naquele ano, Aiha contava com aproximadamente 250 pessoas, que residiam em 21 casas. O cotidiano da aldeia variava (e pouco mudou neste sentido) bastante em função do período do ano. De forma bem esquemática, no auge da estiagem, entre os meses de junho e setembro, é quando ocorrem as principais festas interaldeãs e, em geral, as pessoas estão muito mobilizadas com estes eventos. Os lutadores se preparando para as lutas, e os dançarinos e cantores realizando ensaios frequentes. Esse período também coincide com a colheita e o processamento da mandioca para produção do polvilho que será estocado para ser consumido ao longo do restante do ano. O trabalho na roça nesse período é intenso e as atividades femininas de processamento da mandioca se iniciam ainda de madrugada e se estendem por grande parte do dia. Com a disponibilidade de mais ferramentas e equipamentos que aceleram o trabalho das mulheres, esses horários vêm sendo cada vez mais flexibilizados, embora ainda existam algumas mulheres na aldeia que mantêm uma rotina semelhante àquela que acompanhei em 2006. Com o início das chuvas, entre outubro e dezembro, se faz a coleta do pequi que, assim como a mandioca, é processado e armazenado em grandes quantidades. Esse momento do ano que coincide, não por acaso com o final das festas, para evitar que os lutadores se machuquem antes das principais festas, é também quando se realizam os torneios de futebol, envolvendo times de muitas aldeias da região. Esses torneios se tornaram, com o passar dos anos, cada vez maiores e mais frequentes e já fazem parte do “calendário oficial” de eventos regionais, conforme apontaram meus interlocutores. O auge das chuvas vai de janeiro a março, quando são realizados os uluki – rituais de troca que serão apresentados no Capítulo 5 – envolvendo mais de uma aldeia. Com as chuvas, o ritmo da aldeia também muda, já que as famílias passam a frequentar menos as roças e também as cidades, na medida em que as estradas ficam com alguns trechos alagados, dificultando a passagem de carros e motos.

10 “Last man standing” foi um reality show filmado pela BBC em que seis diferentes atletas viajaram o mundo aprendendo distintas práticas esportivas “tradicionais” de diferentes povos nativos. O primeiro episódio da série, filmado durante essa minha primeira estadia na aldeia, foi acerca da luta Kalapalo (kindene, também conhecida como huka huka).

Em qualquer momento do ano, para quem se desloca até a aldeia, a viagem se inicia em Canarana/MT, município por onde passam quase todas as pessoas que entram e saem da TI e que é também uma das principais cidades da microrregião em termos de comércio e serviços. Em 2006, o trajeto de Canarana até o rio Culuene era feito exclusivamente por meio de caminhonetes e pequenos caminhões que, naquele momento, eram todos de propriedade de não indígenas, contratados para prestar serviço de frete. De qualquer um dos portos do rio Culuene até o porto da aldeia Aiha o trajeto é fluvial, realizado com voadeiras de propriedade dos índios, de suas associações e, em alguns casos, “da saúde”, que são os barcos fornecidos pelo Distrito Sanitário Especial Indígena de Saúde (DSEI Xingu). Existem vários portos diferentes ao longo do curso do rio e que podem ser acessados por carro. Até 2006, o principal porto utilizado era o da fazenda Sayonara, vizinha à fronteira sudeste do Parque e ao então Posto Indígena de Vigilância Kuluene (atual Coordenação Técnica Local Kuluene), a uma distância de cerca de 6 horas de viagem de barco até o porto de Aiha. Esse ainda é o principal porto utilizado durante as chuvas, mas com o passar dos anos, novas e melhores estradas foram sendo abertas, com o auxílio da Funai e dos governos municipais locais. Esses novos trajetos visam facilitar o acesso terrestre, principalmente no período de seca, a portos mais próximos das aldeias que estão na porção mais central da TI, como é o caso de Aiha. Atualmente, no período de seca, o porto mais utilizado pelos Kalapalo dessa aldeia é o chamado “Porto III” ou “Jagi”. Deste local é possível acessar o porto de Aiha em pouco mais de 30 minutos de barco.11

Naquele momento, ao chegar ao porto da aldeia – localizado a cerca de 6 km desta – o deslocamento até Aiha era feito com bicicletas, o mesmo meio de transporte utilizado pelos Kalapalo para irem às roças ou à lagoa onde tomam banho. As bicicletas eram os objetos não indígenas mais valiosos e desejados por todos: quem não tinha estava sempre tentando conseguir uma, e eram frequentemente solicitadas como “presentes” aos visitantes não indígenas. Os motores de popa também eram muito desejados, mas por seu alto valor, estavam

11 Nos últimos anos, as prefeituras dos municípios do entorno da TI têm atuado no sentido de melhorar as condições das estradas, construindo pontes mais resistentes e passando tratores e patrolas com mais frequência. Somado a isso, o regime de chuvas também tem apresentado algumas alterações, percebidas pelos próprios alto-xinguanos (que reclamam, por exemplo, da perda de plantações e da diminuição da vazão dos rios), fazendo com que o período em que as estradas ficam intransitáveis seja bastante curto. Sobre as percepções dos xinguanos acerca das mudanças climáticas, ver o filme “Para onde foram as andorinhas?”, com roteiro de Paulo Junqueira, do Instituto Socioambiental, e Mari Corrêa, do Instituto Catitu, disponível em <https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias- socioambientais/premiado-curta-lancado-para-internet-alerta-para-mudancas-climaticas-no-xingu>. Acesso em 23 de agosto de 2016.

sempre fora do alcance da maior parte das pessoas da aldeia que, quando necessitavam se deslocar, utilizavam o motor da comunidade ou o motor da saúde.12

Nas primeiras viagens que fiz a Aiha, quase não havia “comida de branco” disponível na aldeia. As provisões que levávamos eram sempre muito cobiçadas por parte das pessoas, ao mesmo tempo em que outros (principalmente os velhos e as mulheres), se mostravam relutantes à introdução de novos alimentos e, especialmente, novos temperos, em seu cotidiano. Naquele momento, apenas duas casas possuíam aparelhos de televisão que funcionavam com pequenos geradores patikula, ganhados como presentes de amigos brancos que haviam visitado a aldeia em algum momento recente. O afluxo de dinheiro na aldeia era bem menor, pois os programas de transferência de renda praticamente não eram acessados (não sei precisar ao certo quantas eram as famílias que acessavam algum programa desse tipo, nem mesmo se havia alguma; de qualquer forma, esse não era, ainda, um assunto recorrente em Aiha) e existiam apenas seis pessoas contratadas, trabalhando na aldeia: dois professores, três agentes de saúde e um agente de saneamento (todos Kalapalo). As pessoas de Aiha ainda estavam aprendendo a captar recursos por meio da associação, recém-criada, principalmente oriundos de pagamentos efetuados por equipes de filmagem que visitavam a aldeia durante as festas regionais. Eram poucos os homens que falavam português e era possível contar nos dedos de uma mão as mulheres e crianças que compreendiam um pouco essa língua – e nenhuma delas se arriscava a falar. Adicionalmente, o fluxo de pessoas para as cidades do entorno era muito restrito, pois muito caro. Quase não havia aparelhos eletrônicos na aldeia e os poucos que existiam – principalmente lanternas e alguns poucos gravadores de fita k7 – dependiam de pilhas, que eram consumidas em grandes quantidades. O pouco acesso ao dinheiro também significava menor acesso a objetos industrializados de uso mais cotidiano, como comidas, roupas – especialmente entre as crianças –, panelas de alumínio e até mesmo missangas.

Oito anos depois, a experiência de chegar à aldeia foi consideravelmente diferente,13 a começar pela estadia em Canarana. Bastaram algumas horas por ali para cruzar com diversos homens e mulheres Kalapalo (e de outras aldeias e povos alto-xinguanos), que moravam ou estavam de passagem por ali, seja para participar de reuniões, ou viajando para outras cidades do país, ou ainda, para fazer compras ou resolver pendências relativas ao acesso a benefícios

12 Antes da Associação Aulukumã possuir recursos para a aquisição de motores e barcos, o único motor da

comunidade disponível para qualquer atividade era o da saúde, ou seja, o motor fornecido pelo DSEI Xingu para a deslocamento das equipes de saúde. Atualmente, como há outros motores, há uma diferenciação mais clara entre os usos do motor da comunidade e o da saúde que fica sob os cuidados dos agentes indígenas de saúde.

13 Para uma apresentação de um processo semelhante de transformações na aldeia kuikuro Ipatse do Alto Xingu, ver Fausto (2011).

sociais. Muitos – especialmente os que moram na aldeia e estão de passagem pela cidade – andavam a bordo de seus carros e motos, os mesmos veículos utilizados por eles no deslocamento entre as aldeias e a cidade, algo praticamente impensável quando iniciei minhas pesquisas por lá. Carregavam celulares novos e usavam roupas que não deixam a desejar a nenhum jovem de classe média das cidades da região.

Chegando à aldeia, a experiência da transformação continuou, com uma série de kagaiha engü (“coisas de branco”) que se espalhavam pelas casas: freezers, motos, redes, panelas, bicicletas, telefones celulares, aparelhos de som, fogões a gás, roupas, sapatos, brinquedos, itens de higiene e beleza e tantas outras coisas que seria impossível listá-las todas aqui. O consumo de alimentos industrializados adquiridos nas cidades também aumentou consideravelmente, especialmente entre aqueles que estejam com alguma restrição alimentar em relação aos peixes, como é o caso de mulheres menstruadas ou recém paridas, por exemplo. Arroz, feijão, macarrão e frango compõem, atualmente, a dieta das pessoas, ainda que o consumo desses alimentos não seja diário, dependendo sempre da disponibilidade de recursos, associada à possibilidade de viagem a alguma cidade próxima para sua aquisição. Além desses alimentos, os sucos em pó, bolachas, doces e balas são largamente apreciados – especialmente pelas crianças – e adquridos em grandes quantidades. A esse respeito, foi possível perceber, ao