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CAPÍTULO 3. ELEMENTOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS PARA A

3.2 As ciências sociais e a Ciência Política

Do dito até agora resulta que o modelo empirista-positivista de conhecimento que está na base do paradigma científico dominante está vinculado com uma “ideologia tecnocientífica” (Nunes, 2001: 300). Isto é, com o que Habermas identificou como o conteúdo ideológico do discurso da ciência moderna.

Para Habermas (1968), a base da legitimação de um projeto histórico deveria ser dada pela ação prática, ou seja, pela discussão racional e deliberação pública na procura dos valores que hão de fundamentar a vida em sociedade. O que aconteceu, pelo contrário, foi que a racionalidade científica moderna substituiu a ação prática pela ação teleológica e fez do progresso científico o discurso de legitimação da dominação política (Habermas, 1968).

Esta situação interroga o papel desempenhado pelas ciências sociais em geral e pela Ciência Política em particular, na sua condição de consciência crítica da sociedade. Em contraste com essa vocação crítica, a natureza eurocêntrica das ciências sociais tem contribuído, ao longo da sua história institucional, para a consolidação do que Wallerstein (1997: 93) denomina a “geocultura do mundo moderno” e a sua ideia de desenvolvimento.

O discurso do desenvolvimento, que foi explorado em detalhe no primeiro capítulo, guarda uma estreita relação com as ciências sociais e com a dimensão política da sua prática. Como refere Wallerstein, “depois da Segunda Guerra Mundial, o «desenvolvimento dos países subdesenvolvidos» foi uma rúbrica que justificou o envolvimento dos cientistas sociais de todos os quadrantes políticos na reorganização social e política do mundo não-Ocidental” (Wallerstein, 1997: 100).

A progressividade, a universalidade e a irreversibilidade do desenvolvimento, assim como a ideia de «civilização», foram denunciadas por Wallerstein como elementos centrais do discurso eurocêntrico refletidos na ciência social. Ela “é um produto do mesmo sistema histórico que tem elevado esses valores ao nível de uma hierarquia. Os cientistas sociais (…) têm incorporado esses valores nos conceitos que têm inventado e com os quais analisam os

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problemas, e nos indicadores que utilizam para a medição dos conceitos” (Wallerstein, 1997: 97).

Para ilustrar esta dinâmica, Wallerstein assinala a diferença estabelecida entre ciências nomotéticas e ciências ideográficas. Por um lado, a antropologia, a história e os assim chamados estudos orientais, constituem as ciências ideográficas (Wallerstein, 1995), preocupadas com o estudo de fatos e processos singulares sobre uma base de individualismo metodológico. No entanto, este individualismo metodológico não impediu que os próprios estudos orientais, por exemplo, confecionassem as suas ferramentas teóricas e metodológicas a partir dos mesmos critérios de diferenciação e controlo construídos para o estudo das sociedades ocidentais.

Por outro lado, a sociologia, a economia e, mais recentemente, a Ciência Política constituem as chamadas ciências nomotéticas. Elas devem esta denominação à procura de leis gerais que caracteriza a sua prática científica e da qual deriva a sua identificação metodológica com o positivismo. Assim, “[o] nível de compromisso das três disciplinas [nomotéticas] com as técnicas quantitativas e até com os modelos matemáticos foi aumentando nos anos imediatamente posteriores à Segunda Guerra Mundial. Os seus enfoques metodológicos diferenciaram-se cada vez menos” (Wallerstein, 1995: 51).

O elemento central que permite compreender este fenómeno é a pretensão de neutralidade valorativa característica deste tipo de ciência social, pretensão que tem como fundamento a ideia das «duas culturas». A propósito deste conceito, afirma Wallerstein:

Nenhum outro sistema histórico tem instituído um divórcio fundamental entre a ciência, por um lado, e a filosofia e as humanidades, por outro, ou o que considero que pode ser caracterizado como a separação entre a procura da verdade e a procura do bem e da beleza (…). Foram necessários três séculos para esta separação se institucionalizar. Hoje, no entanto, é fundamental para a geocultura e forma as bases do nosso sistema universitário (Wallerstein, 1997: 106).

Em síntese, a ciência social nomotética de cunho positivista apresenta as seguintes características para Wallerstein:

Seu interesse em chegar às leis gerais que supostamente governavam o comportamento humano, a disposição para entender os fenómenos estudáveis

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como casos (e não como indivíduos), a necessidade de segmentar a realidade humana para a analisar, a possibilidade e desejabilidade de métodos científicos estritos (como a formulação de hipóteses, derivadas da teoria, para serem provadas com os dados da realidade através de procedimentos estritos e, preferivelmente, quantitativos), a preferência pelos dados produzidos sistematicamente (por exemplo, os dados de inquéritos) e as observações controladas sobre textos recebidos e outros materiais residuais (Wallerstein, 1995: 35).

O exemplo da Ciência Política pode servir para ilustrar algumas destas características das ciências nomotéticas. A origem desta disciplina é frequentemente associada ao nascimento de escolas de Ciência Política nos Estados Unidos a partir de 1880 e, em 1903, à fundação da

American Political Science Association o que, no entanto, não significou ainda uma

“verdadeira autonomia científica da disciplina” (Maltez, 1996: 79). Em palavras de Lara (2011: 154), “[a] autonomização da Ciência Política não se fará senão no século XX e ainda assim dificilmente”.

Na procura dessa autonomia científica, de acordo com Maltez (1996) tiveram um papel importante o positivismo, o evolucionismo, o utilitarismo, o pragmatismo e o comportamentalismo. Nesse sentido, afirma o autor que “[c]om efeito, a partir de 1900, o crescimento da disciplina inseriu-se num ambiente de luta contra aqueles que, muito pejorativamente, eram qualificados como teóricos, filósofos, sonhadores e utopistas” (Maltez, 1996: 81). A influência desta perspetiva foi determinante nas etapas iniciais de desenvolvimento da Ciência Política.

Desenha-se assim um movimento dito realista que se insurge contra o que, então, se qualificava como normativismo, o da germânica ciência do Estado (Staatswissenschaft), também dita teoria geral do Estado (Allgemeine Staatslehre). Era a época áurea do darwinismo e da consequente sociologia de luta, ao mesmo tempo que o organicismo se impregnava de psicologismo (Maltez, 1996: 82).

No que diz respeito às formas de representação do objeto de estudo, a Ciência Política recebeu uma forte influência, nas suas origens, do discurso liberal que considera que as esferas produtiva, social e política são compartimentos separados e claramente diferenciados. Segundo Wallerstein (1995), esta representação de uma sociedade compartimentada

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contribuiu para a delimitação das fronteiras disciplinares da Ciência Política emergente, por oposição ao objeto de estudo das esferas económica e social.

Os contributos de Marcel Prélot e Giovanni Sartori servirão para ilustrar estas afirmações e a relevância que, ainda para a ciência política do século XX, tiveram as formas de representação tanto da ciência da política como do seu próprio objeto de estudo.

Marcel Prélot, num texto originalmente publicado em 1961 intitulado A Ciência Política, fundamenta a sua conceção da disciplina na diferenciação entre “o político” e “o social” como esferas separadas. Para Prélot, o termo “social” designa precisamente “as instituições, os costumes, os comportamentos não organizados diretamente pelo poder, como sejam a família, a propriedade e as classes sociais” (Prélot, 2008: 35). E, a partir desta definição, lamenta-se pelo fato de, dentro das ciências sociais, existir uma “exaltação do social” que “desvaloriza a politologia”.

Posteriormente, no seu esforço por definir a teoria política, Prélot propõe a seguinte definição de teoria:

A teoria é resultado da observação. Situa-se no terreno do conhecimento positivo, mas não consiste apenas na comprovação de fatos; transcende-os primeiro para os agrupar e, depois, afastando-se, para os explicar. Com este fim utiliza-se o que na lógica das ciências se denomina “hipóteses”, que, uma vez verificadas, transformam-se em leis. Portanto, a teoria corresponde ao conjunto de fatos, não só comprovados e ordenados, mas explicados e organizados (Prélot, 2008: 40).

Esta conceção da Ciência Política é subsidiária do positivismo metodológico do século XIX e começos do século XX. Evidências disto são o recurso à observação, à separação metodológica entre o sujeito e o objeto de conhecimento, às hipóteses e à explicação (isto é, ao conhecimento como estabelecimento de relações de causalidade) e, finalmente, a confiança na possibilidade de generalizar os resultados de investigação sob a forma de leis.

Isto teve efeitos sobre a disciplina, tais como o afastamento da teoria prescritiva e a influência da escolha racional, do behaviorismo e do institucionalismo sobre os cientistas políticos.

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Efeitos estes que também estão presentes no exemplo de Giovanni Sartori. Numa tentativa de diferenciar a Ciência Política da filosofia política, Sartori utiliza os mesmos critérios de demarcação elaborados pelas ciências nomotéticas de cunho positivista.

Assim, para Sartori, o tratamento filosófico está baseado em três elementos: a) coerência dedutiva, dado que a filosofia não constitui conhecimento empírico; b) justificação, uma vez que o seu propósito é normativo; c) avaliação, porque a filosofia desenvolve-se no âmbito do valorativo e o axiológico. Por sua vez, as características do tratamento científico são: a) verificação; b) explicação (entendida como o estabelecimento de relações causais entre variáveis) e neutralidade axiológica (Sartori, 2011: 96-97).

Além disso, Sartori argumenta que o conhecimento científico tem um caráter operativo e que a sua validade está associada ao seu grau de operacionalidade (isto é, as possibilidades que uma teoria tem de ser posta em prática). Nesse sentido, a filosofia em geral e a filosofia política em particular seriam, seguindo este autor, inaplicáveis pois os seus programas têm fracassado sistematicamente, como o demonstra a evidência empírica disponível, desde Platão até Marx. O único conhecimento válido sobre a realidade política seria aquele construído pela Ciência Política que, para ser tal, deve ser verificável, explicativa e axiologicamente neutra.

Esta diferenciação entre Ciência Política e filosofia política celebra uma ciência baseada na pretensão de neutralidade da qual deriva boa parte das problemáticas políticas e ambientais do mundo contemporâneo. A repercussão desta separação sobre as disciplinas sociais contribui para o reforço das fronteiras entre elas, ao diferenciar e compartimentar os seus objetos de estudo. No entanto, de todas estas características, a pretensão de neutralidade é a que tem implicações políticas maiores. Como refere Lander:

Tendem a identificar-se as condições criadas pelas desigualdades extremas e crescentes na distribuição do poder com leis objetivas e inalteráveis da realidade histórico-social. Em lugar de indagar sobre os agentes, os interesses, as estratégias, as forças que incidem sobre os extraordinários processos de transformação que acontecem no mundo atual, estes processos são naturalizados sob os nomes de modernidade ou globalização, numa descrição do mundo na qual, ou têm desaparecido os sujeitos ou o único sujeito realmente existente é o consumidor (Lander, 2000: 63).

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Consequentemente, a conceção das ciências sociais nomotéticas como capazes de neutralidade valorativa, exatidão e reprodutibilidade tem relação com a noção de desenvolvimento também em termos ideológicos, como se verá a seguir.

A lei de caráter universal que estas ciências visavam demonstrar era a inevitabilidade do progresso. A este respeito Wallerstein refere que “a visão da separação nomotético- ideográfico foi parte da parcela do cientificismo e o otimismo que tem formado a cola ideológica do nosso sistema histórico atual, a economia-mundo capitalista. Esta ideologia atingiu a sua versão madura no Iluminismo do século XVIII e no seu compromisso religioso com a inevitabilidade do progresso humano” (Wallerstein, 1991: 145).

Isto permite compreender o porquê, como fora acima referido, de os conhecimentos produzidos pelas ciências sociais nomotéticas terem estado diretamente orientados para a reprodução do paradigma histórico de desenvolvimento baseado da industrialização.

Com base nestas críticas, desde os finais do século XX, emergiram tendências alternativas nas ciências sociais (com as quais, como já foi dito, o positivismo inerente às ciências nomotéticas entra em conflito). Entre elas, interessa destacar a proposta de Wallerstein (1995) que consiste em “abrir as ciências sociais”.

Esse processo de abertura começa por reconhecer a historicidade inerente à configuração institucional das ciências sociais contemporâneas. Para isso é importante identificar os interesses e atores que participam da delimitação dos objetos e da seleção dos métodos, assim como da definição dos critérios de cientificidade no exercício da investigação e disseminação do conhecimento.

A principal consequência desta abordagem é o reconhecimento de que a nossa capacidade de compreensão e transformação da realidade social tem estado limitada historicamente pela compartimentação do conhecimento assente na separação entre ciências nomotéticas e ciências ideográficas, entre disciplinas dentro de cada uma destas classificações, bem como entre ciências da natureza e ciências do espírito (sobre o assunto veja-se: Dilthey, 1981).

Uma segunda consequência é a ideia segundo a qual a separação disciplinar é resultado, não da dinâmica interna das próprias tarefas científicas, mas de uma “conceção liberal do Estado e da sua relação com setores funcionais e geográficos da ordem social” (Wallerstein, 1974: 11). Em contraste com essa conceção, Wallerstein propõe uma abordagem integradora com base

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numa unidade de análise, ela própria, abrangente. Nas suas palavras, “[N]ão estou a chamar para uma abordagem multidisciplinar do estudo dos sistemas sociais, mas para uma abordagem unidisciplinar” (Wallerstein, 1974: 11).

Uma ciência social assim entendida rejeita, naturalmente, a pretensão de neutralidade e reconhece que o trabalho científico desempenha um papel dentro do sistema social, papel esse que se orienta para a procura de um mundo mais “igualitário e libertário” (Wallerstein, 1974: 10).

O reconhecimento desta busca, isto é, o fato de os investigadores explicitarem os seus compromissos com este propósito, constitui a objetividade. “Pensar de outra maneira é, no melhor dos casos, auto-engano. A objetividade é honestidade dentro deste quadro” (Wallerstein, 1974: 9).