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CAPÍTULO 1. POLÍTICAS PÚBLICAS E DESENVOLVIMENTO: ELEMENTOS

1.2 Paradigmas de desenvolvimento e a sua relação com o conhecimento científico

1.2.1 O paradigma da modernização

Nesta perspetiva, a sociedade descreve um caminho linear e ininterrupto, caracterizado por uma sucessão de mudanças qualitativas que, ao longo da história, têm permitido aos povos ultrapassar as limitações da tradição e atingir estádios cada vez mais avançados de desenvolvimento. A presença da teoria evolucionista clássica reflete-se na conceção unidirecional do processo de mudança, na valoração positiva que se faz desse movimento histórico, por representar uma etapa de civilização e progresso social, e na natureza gradual (evolutiva, não revolucionaria) da mudança social (So, 1990).

Por sua vez, o contributo da tradição funcionalista serve para interpretar essa dinâmica como o resultado da interação harmoniosa e coerente das instituições sociais que agem como as partes de um organismo vivo. A adequada coordenação destas partes à escala sistémica permite a procura do equilíbrio ao mesmo tempo que a sociedade avança em direção à modernidade. A racionalidade, a secularização, a prevalência de formas afetivamente neutras de relacionamento, a especialização funcional, a auto-suficiência, são considerados os rasgos distintivos da mentalidade moderna (So, 1990: 23).

Como resultado, o pressuposto básico da perspetiva da modernização é que a história é um contínuo que avança em direção à modernidade, e que este avanço constitui um imperativo do qual participam, sem exceção e sem alternativa, todas as sociedades. Isto gerou uma conceção da história e do tempo que prescinde da complexidade e da diversidade das histórias locais. Como salienta Santos:

Baseado no que designo como monocultura do tempo linear, o historicismo parte da ideia de que toda a realidade social está historicamente determinada e deve ser analisada em função do lugar que ocupa num processo de desenvolvimento histórico concebido como unívoco e unidirecional. Por exemplo, num período

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dominado pela agricultura mecanizada e industrializada, o pequeno campesino tradicional ou de subsistência deve ser considerado como algo anacrónico ou atrasado. As duas realidades que acontecem simultaneamente não são necessariamente contemporâneas (Santos, 2006: 56).

Mesmo dentro das perspetivas críticas é possível encontrar discursos que participam desta «monocultura do tempo linear», ao argumentar que muitos dos empreendimentos europeus que fazem parte do processo modernização tinham sido concebidos e executados, embora em diferente medida, por outras civilizações. Isto equivale a afirmar que a história tem um sentido predeterminado e que esse sentido se realiza com independência das características ou circunstâncias do ator que a executa.

Num texto sobre o eurocentrismo ao qual se voltará mais à frente, Immanuel Wallerstein questiona esta postura porque ela constitui uma forma anti-eurocêntrica de Eurocentrismo. Primeiro porque na base desta afirmação está a teoria dos estádios de desenvolvimento, segundo a qual caminhos paralelos foram sempre prosseguidos por todas as sociedades, em diferentes lugares do mundo, em direção à modernidade e ao capitalismo. Em segundo lugar, porque:

[A]o tentar diminuir o crédito da Europa por esta façanha, por este suposto sucesso, é reforçada a ideia de que isto foi de fato um sucesso (…). E, ainda pior, está presente a implicação, não muito longe da superfície, de que, dada uma oportunidade, chineses, indianos ou árabes, não só poderiam ter feito, mas teriam feito o mesmo, isto é, lançar a modernidade/capitalismo, conquistar o mundo, explorar os seus recursos e pessoas, e eles próprios desempenhar o papel de heróis malvados (Wallerstein, 1997: 102-103).

Em síntese, nas suas múltiplas variantes, o discurso modernizador apresenta a Tradição e a Modernidade como dois extremos de um mesmo percurso contínuo e inevitável. O trânsito de uma à outra é visto como uma mudança qualitativa, atribuída pelos teóricos adscritos a esta tradição a processos endógenos (no caso dos países «desenvolvidos») e, no caso dos países «subdesenvolvidos», essas mudanças “derivam primordialmente do processo exógeno de difusão dos valores modernos e das mudanças estruturais” (Sosa, 2014: 92) promovidas pelos países já modernizados.

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Consequentemente, o processo de desenvolvimento consiste, para os países do chamado

terceiro mundo, no conjunto articulado de ações que lhes permitiriam atingir o mesmo estágio

de desenvolvimento dos países que servem de referência em termos de industrialização, rendimentos per capita, etc.

Esta abordagem, conhecida como catching up, incorpora os valores da sociedade industrial, baseada na iniciativa privada e na economia de mercado, como via para a superação da sociedade tradicional. Isto seria feito ao longo de um caminho que transita das sociedades pré- industriais (segundo os cálculos realizados por Herman Kahn na década de 1960, aquelas que tinham uma média de rendimentos per capita de 50 dólares americanos até 200 dólares americanos) até às sociedades pós-industriais (a partir dos 4000 dólares americanos de rendimentos per capita) (Inozemtsev, 2002: 4).

Apesar da sua aparência de descrição objetiva do devir histórico, esta proposta tem consequências em termos ideológicos. Desde logo: o eurocentrismo, tão denunciado pelas perspetivas críticas da modernização; o conservadorismo associado às explicações funcionalistas da mudança social; o esquecimento das restantes dimensões do desenvolvimento (social, cultural, ambiental); e o enfraquecimento das soberanias nacionais.

Em síntese, à medida que o desenvolvimento industrial se tornou um valor absoluto, localizado além de qualquer ideologia política, os países menos desenvolvidos deviam seguir os passos dos mais ricos e, todos eles, deviam ser parte do processo abrangente de evolução das sociedades Ocidentais.

Consequentemente, os aderentes da modernização “reduziram toda evolução social ao movimento contínuo da sociedade arcaica para a sociedade moderna” (Inozemtsev, 2002: 2) numa atitude tecnocrática. Daí resulta que “a modernização é um esforço por adaptar instituições tradicionais às novas funções decorrentes de um crescimento sem antecedentes do papel daquele tipo de conhecimento [científico] que tornou possível o controlo do meio- ambiente” (Inozemtsev, 2002: 2). Isto é o que Santos denomina “conhecimento ortopédico”:

Nos últimos duzentos anos o pensamento ortopédico, tanto à esquerda como à direita, e a razão indolente que lhe subjaz, atribuíram um sentido e uma direção à história assente numa conceção linear do tempo (progresso) e numa conceção evolucionista das sociedades (do subdesenvolvimento ao desenvolvimento). Com

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base nesta conceção, foi possível definir alternativas, determinar o movimento da história e também definir o seu fim, o estado final da evolução (idade positiva de Comte, solidariedade orgânica de Durkheim, industrialismo de Spencer, comunismo de Marx, etc.) (Santos, 2010b: 483).

O conhecimento, nesta perspetiva, desempenha um papel de grande importância. Se o problema dos países do Terceiro Mundo reside na sua escassa capacidade produtiva, “a solução consiste na provisão de assistência em termos de capital, tecnologia e perícia” (So, 1990: 30). Portanto, o papel determinante que os países industrializados desempenham no desenvolvimento dos países mais pobres não se limita à difusão de valores, atitudes (como a motivação para o sucesso, a secularização, e o individualismo) e modos de vida considerados

modernos, mas abrange também a partilha de conhecimento técnico utilizável com fins de

inovação produtiva.

Esta iniciativa tem consequências práticas quer em termos económicos, quer em termos políticos:

A penetração das modernas empresas capitalistas nas economias arcaicas provoca a co-existência, na mesma economia, de um setor primário de subsistência, de um outro ligado ao comércio externo e, finalmente, de um setor industrial vinculado ao mercado interno. Este setor industrial desenvolve-se pela produção dos produtos (sic) outrora importados, o que significa que a preocupação principal dos industriais da periferia é imitar o produto estrangeiro e adotar métodos de produção que lhes permitam competir com o exportador estrangeiro. Assim sendo, as inovações tecnológicas que lhes parecem mais vantajosas são as que lhes permitem fazer a estrutura interna dos custos e preços dos bens industriais assemelhar-se à estrutura de custos e preços dos países desenvolvidos, e não aquelas que lhes permitem uma transformação (…) da estrutura económica (Patrício, 2012: 55).

Os críticos do desenvolvimentismo e da modernização têm compreendido, então, que a importação de conhecimento técnico, por si própria, não garante a consecução dos propósitos modernizadores, “pela simples razão de que os países subdesenvolvidos não podiam reproduzir as condições e as experiências históricas e sociais que permitiram o desenvolvimento tecnológico dos países avançados” (Patrício, 2012: 55) e, no melhor dos

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casos, desenvolver-se-á só aquele setor da economia local vinculado ao comércio com os países centrais.

As teorias da modernização insistiram, ao contrário desta evidência, em representar as economias menos «desenvolvidas» como se fossem o reflexo de etapas anteriores da história dos países desenvolvidos (Sosa, 2014), ideia com a qual forneceram uma justificação ideológica para a assimetria das relações de poder entre as sociedades chamadas «modernas» e as «tradicionais».