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CAPÍTULO 3. ELEMENTOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS PARA A

3.1 O papel das ciências no mundo contemporâneo: a tarefa crítica da epistemologia

Segundo Santos (2010), o paradigma dominante da ciência moderna é produto da revolução científica que teve lugar no século XVI. Esta revolução científica sintetizou um processo de desenvolvimento do pensamento ocidental no qual convergem importantes mudanças culturais, tais como a crise da preponderância ideológica da Igreja de Roma, impulsionada pela revolução copernicana, pela Reforma Protestante e pelo Renascimento.

Estes processos, entre outros, geraram uma conceção antropocêntrica do mundo e da cultura e impulsaram movimentos de emancipação política perante os antigos poderes ideologicamente justificados pela religião e pelo monopólio do conhecimento.

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Por outras palavras, a moderna racionalidade científica representou, nas suas origens, um movimento com alto potencial emancipatório. Ela despiu a realidade da aparência de sacralidade com a qual tinha sido coberta pela Igreja e pelo poder monárquico. Inaugurou-se, assim, uma nova tradição baseada na recusa do dogmatismo e na confiança na razão como ferramenta humana por excelência para a procura da verdade e para a construção de uma história à escala humana.

No entanto, ao longo do seu processo de desenvolvimento, o paradigma científico dominante da ciência moderna deu origem a uma nova forma de dominação, desta vez baseada na oposição entre o ser humano e a sociedade, entre a natureza e a cultura, e entre o conhecimento científico e todas as outras formas de conhecimento, em detrimento destas últimas.

A origem destas oposições está na rutura epistemológica entre sujeito e objeto necessária para a realização do método cartesiano, sendo que a sua principal consequência é uma representação mecanicista da realidade própria da física de Newton. Como refere Santos:

Segundo a mecânica newtoniana, o mundo da matéria é uma máquina cujas operações se podem determinar exatamente por meio de leis físicas e matemáticas, um mundo estático e eterno a flutuar num espaço vazio, um mundo que o racionalismo cartesiano torna cognoscível por via da sua descomposição nos elementos que o constituem (Santos, 2010: 17).

A física newtoniana tornou-se o modelo de referência do conhecimento científico, em grande medida graças à possibilidade, por ela criada, de explicar o mundo a partir de leis simples e universais. Por essa via, a capacidade humana para descrever e explicar causalmente o comportamento do mundo natural deu lugar à capacidade humana para o transformar e dominar.

Daí a estreita relação deste tipo de conhecimento com o desenvolvimento do capitalismo. Na verdade, a visão mecanicista do mundo constitui “um dos pilares da ideia de progresso que ganha corpo no pensamento europeu a partir do século XVIII e que é o grande sinal intelectual da ascensão da burguesia” (Santos, 2010: 17).

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Como consequência, o projeto económico do capitalismo e o seu imperativo de crescente acumulação geraram uma necessidade de mudança tecnológica permanente que está na base do vínculo entre:

a) A ciência, considerada a única forma válida de conhecimento;

b) A tecnologia, como a sua manifestação prática ou o que Siqueira (2009: 171) denominara, na sua interpretação do trabalho de Hans Jonas, “o braço armado” da ciência;

c) A «técnica» que pode ser definida “como uma regra ou conjunto de regras que permitem a reprodução de uma ação” (Filho, 2009: 20)1;

d) A economia, cenário de materialização dos avanços científicos e tecnológicos graças aos quais se realizaria a promessa do progresso.

O século XX foi o cenário da estabilização de uma relação entre ciência e capitalismo que acabou por afirmar a superioridade epistémica da ciência sobre todas as outras formas de conhecimento. Nas palavras de Santos, “os problemas dignos de reflexão passaram a ser apenas aqueles a que a ciência pudesse dar resposta. Os problemas existenciais foram assim reduzidos ao que deles pudesse ser dito cientificamente, o que implicou uma dramática reconversão conceptual e analítica” (Santos, 2010b: 475).

Essa reconversão conceptual e analítica teve pelo menos dois grandes efeitos. Em primeiro, deu origem a uma ciência virada para a pretensão de neutralidade baseada na separação entre a prática científica e as consequências dessa prática sobre o contexto socio-histórico (Santos, 2006). Esta forma de entender a neutralidade serviu para ocultar o claro conteúdo ideológico de uma forma de saber (a ciência) que, ao negligenciar a reflexão sobre os seus próprios efeitos, legitima uma determinada ordem social.

O segundo resultado foi a exclusão dos conhecimentos não científicos do espetro dos conhecimentos válidos e com base nos quais é possível orientar a ação humana. Isto reflete-se claramente no discurso da ciência como conhecimento universal. No entanto, “hoje é mais evidente que nunca que a universalidade da ciência moderna é um particularismo ocidental cuja especificidade consiste em ter poder para definir como particulares, locais, contextuais ou situacionais todos os conhecimentos que com ela rivalizam” (Santos, 2004: 12).

1 No entanto, é importante acrescentar que a ideia habermasiana de técnica vai para além de uma “regularidade comportamental” e atinge o âmbito do conhecimento que torna possível aquela reprodução da ação (Habermas, 1965a).

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A ideia da superioridade epistémica da ciência europeia foi validada pelo discurso filosófico da modernidade que, ao longo dos séculos XVII e XVIII, assumiu preponderantemente a forma de epistemologia.

O discurso epistemológico, como também declara Santos (2002), foi “uma tentativa genuinamente frustrada de investigar as causas da certeza e da objetividade do conhecimento científico para daí deduzir a justificação do privilégio teórico e social desta forma de conhecimento” (Santos, 2002: 29).

Com efeito, foi a necessidade de refletir sobre o conhecimento científico, sobre as suas limitações e possibilidades, que deu origem à epistemologia moderna (Nunes, 2010). O objetivo era compreender como é possível o conhecimento, quais são os critérios que permitem afirmar a validez de um determinado saber e quais os métodos que garantem a construção de conhecimento certo.

Desta forma a epistemologia tornou-se num “projeto paradoxal”. Como enfatiza Nunes, “[a]o mesmo tempo que postulava a soberania epistémica, porém, a epistemologia tomava como modelo uma das formas de conhecimento que se propunha avaliar, a ciência” (Nunes, 2010: 241-242).

Em função desta posição de soberania epistémica, a epistemologia erigiu-se a si própria no projeto filosófico encarregue da avaliação independente da verdade e do erro, do verdadeiro e do falso, nas práticas de produção de conhecimento. Passou a ser, por fim, teoria do conhecimento científico.

Nunes (2010) tem advertido que, ao longo das últimas três décadas, emergiram e ganharam corpo propostas de rejeição da reflexão epistemológica, desde logo fundamentadas e justificadas através de diversos argumentos. Exemplo destes argumentos são: a) a sua cumplicidade com a justificação de um tipo de conhecimento que teve impactos sociais e ambientais negativos; b) a sua negação das exclusões que suportam o edifício da ciência (denunciada, entre outros, pela epistemologia feminista); e c) a construção de critérios de demarcação e validação que negligenciam a dimensão crítica, entre outras.

E, no entanto, o próprio Nunes (2010) (e é também a perspetiva assumida nesta investigação) reivindica a importância da reflexão epistemológica. A esta reflexão corresponderia, não a legitimação da soberania epistémica da ciência moderna sobre as outras formas de

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conhecimento, mas a tarefa de salientar a natureza histórica, contextual e politicamente condicionada de toda prática científica e dos seus resultados. Esta tarefa passa também por sublinhar a relevância das consequências do saber e a relação atávica entre o/a cientista e o seu meio social (Santos, 2002).