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CAPÍTULO 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS NO

1.7 SOCIEDADE CIVIL

1.7.1 A Sociedade Civil Não Organizada

1.7.1.3 Cidadania

Quino

Inicialmente, deve-se levar em conta que a definição de cidadania não é estanque, apresentando-se muito mais como um conceito histórico e, portanto, variando seu sentido em função de tempo e espaço. Ou seja, o termo foi diversamente compreendido a partir das diferentes épocas e até mesmo em espaços políticos distintos nas mesmas épocas. Nesse contexto, busca-se, aqui, tratar a ideia de cidadania apenas pelo viés da noção que o termo abrange e não por uma definição conceitual exaustivamente precisa. Destaca-se, inicialmente, um aspecto que caracteriza singularmente a história da cidadania, no mundo: é o de que o termo confunde-se, em muitos momentos, com a história das lutas pelos direitos humanos, uma vez que a expressão "ser cidadão" presume, em sua essência, ser também um "sujeito de direitos", aí incluído o direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade, ou seja, um sujeito que possui direitos civis, políticos e sociais. Nesse sentido, exercer a cidadania plena é deter direitos civis, políticos e sociais, que resultaram de um longo e difícil processo histórico, cujos resultados levaram a sociedade ocidental a conquistar ao menos parte desses direitos (PINSKY; PINSKY, 2003).

Em uma perspectiva mais ampla, como entende Dallari (1998, p.14), "A cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo". Todavia, o termo cidadania envolve não apenas os direitos do indivíduo, mas também pressupõe seus deveres, como parte do complexo organismo representado pela coletividade. Assim, em um estado democrático, a cidadania diz respeito a um status jurídico e político que atribui ao

cidadão tanto os direitos individuais (como os civis, políticos e sociais) quanto os deveres e obrigações.

O percurso histórico do sentido de cidadania ocorreu, justamente, em estreita vinculação ao estabelecimento dos direitos. T.S. Marshall, sociólogo e autor do livro "Cidadania, classe social e status", propôs que a trajetória do surgimento da cidadania, na Inglaterra, obedeceu a três etapas, as quais foram se constituindo ao longo de três séculos. A primeira, no século XVIII, caracterizou-se pelo reconhecimento dos direitos civis e das liberdades fundamentais de todos os indivíduos, que dizem respeito ao direito de dispor do próprio corpo, a liberdade de ir e vir, o direito à justiça, entre outros. A segunda etapa, no século XIX, foi marcada pela conquista dos direitos políticos, garantindo aos indivíduos a participação livre na atividade política de seu país. E, por fim, já no século XX, o reconhecimento dos direitos sociais do cidadão, voltados a atender às necessidades humanas básicas, como o direito à remuneração justa pelo trabalho prestado, à saúde, à educação, dentre outros.

Assim como ocorreu com os direitos, também em relação à cidadania não houve uma sequência única para sua evolução em todos os países. Os caminhos foram distintos e nem sempre lineares. De acordo com Carvalho (2002), no Brasil, por exemplo, duas diferenças contrastantes podem ser assinaladas. A primeira refere-se ao fato de que, no país, a ênfase foi sempre dada a apenas um dos direitos, o social; e a segunda refere-se à alteração na sequência em que os direitos foram adquiridos: diferentemente do modelo inglês descrito por T.S. Marshall, no Brasil a conquista do direito social precedeu os demais direitos. Dessa forma, a natureza de cidadania se diferencia na sua essência ao se falar, por exemplo, em cidadão inglês, ou norte- americano, e em cidadão brasileiro.

Contudo, o cenário atual, no país, mesmo após anos de alentadora esperança despertada pelo texto constitucional de 1988, que reintegrou aos cidadãos brasileiros ao menos parte dos direitos que lhes cabem por natureza, assegurando-lhes os direitos fundamentais, ainda se ressente dos longos anos de regimes políticos antidemocráticos que impediram o pleno exercício da cidadania pela população. Os princípios previstos pela lei constitucional, em sua totalidade, ainda estão distantes da realidade da maior parte dos cidadãos. Persistem problemas sociais históricos, como analfabetismo, oferta precária de serviços de saúde e de educação, agravados por outros mais recentes,

como o crescente desemprego ou a ineficiência da segurança pública. Também se mantêm no país a grave concentração de renda e seus resultados, a exemplo da miséria e da exclusão social. Parte desses problemas é, sem dúvida, atribuída a uma atuação vacilante e muitas vezes omissa por parte do Estado, que não criou, a contento, políticas públicas adequadas e eficientes que visem corrigir tais desigualdades sociais.

Tem-se, portanto, que a mera garantia dos direitos políticos e civis não solucionou os problemas relacionados à cidadania historicamente perpetuados na trajetória do país. Esta garantia traz, porém, a possibilidade de se criarem movimentos sociais capazes de propor discussões e mobilizar forças na busca de uma cidadania plena, reiterando, dessa forma, a importância da mobilização e da participação social na construção de uma consciência cidadã. Como bem coloca Siqueira (2010, p.1)69:

[...] a nova cidadania está diretamente relacionada aos novos movimentos sociais representados por inúmeros agentes e, como tal, é exercida em diversos níveis de espaços articulados, reconstituindo gradualmente os espaços comunitários e abrindo novas dimensões para inserção dos indivíduos. Isto é o que a torna mais global e mais participativa, possibilitando aos indivíduos tomarem parte principal no seu processo de desenvolvimento.

Essa nova cidadania habilita novos aspectos da vida em sociedade de modo a se tornarem parte do processo político, reestruturando, assim, as formas de atuação e o próprio campo da política (SIQUEIRA, 2010). O exercício desta nova cidadania, que busca legitimar novos direitos e buscar soluções para problemas, porém com autonomia, constitui-se em um processo permanente de emancipação, a qual é obtida por meio de conquistas (DEMO, 1988a).

Por essa via, também o conceito de cidadão não se limita, hoje, a categorizar indivíduos que detêm o direito de voto ou os demais direitos formais garantidos por lei e cujo exercício é mediado pelo Estado, conforme previsto na cidadania dita tradicional. Baracho (1995) entende que esta nova cidadania se traduz na ideia de uma consciência cidadã no trato com a coisa pública, seja por meio da escolha dos dirigentes, seja no trabalho social a ser cumprido.

69 Em artigo originalmente publicado no jornal "A Razão", em 26.08.2002 (Disponível em:

Para Londero e Richter (2010, p.6), "A nova cidadania está intimamente relacionada a uma nova movimentação social, a qual se representa por inúmeros agentes e se exerce em variados níveis de espaços articulados".

O sentido de cidadania, hoje, passa, então, por um processo de reconstrução e deve, necessariamente, estar atrelado a uma nova ideia de movimentação social representada por diferentes agentes e ser exercida em diferentes níveis de espaços articulados, o que reforça ainda mais a importância da participação social na construção de uma cidadania plena.

A ênfase na promoção do direito à cidadania e na participação social, de fato, permeia toda a constituição de uma sociedade que se diga democrática, como visto anteriormente. Nesse sentido, Coelho e Favareto (2007, p.101) postulam a "presença de uma sociedade civil organizada, sobretudo na forma de associações e movimentos sociais capazes de aproximar as demandas sociais das políticas sob gestão nos espaços participativos". Assim, constitui-se em condição essencial para que se alcance, por meio dessa participação, resultados significativos no que diz respeito ao empoderamento da cidadania.

Evidencia-se, portanto, a necessidade de ampliação desses canais de represen- tatividade dos setores organizados para atuar junto às instituições públicas, cuja existência vem demonstrando um importante potencial na construção de atores sociais com objetivos comuns que visam a mudanças na gestão da coisa pública, intervindo na vida pública a partir de uma motivação social (JACOBI; BARBI, 2007, p.239).

A configuração e a dinâmica da participação social e reafirmação de sua autonomia como agente de mudanças não pode, assim, prescindir do estabelecimento de canais de intermediação entre as organizações representativas dos interesses sociais e as instituições representativas do Estado como forma de promover a participação e a representação social na gestão de políticas públicas.