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CAPÍTULO 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS NO

1.1 SOBRE AUSÊNCIA E DESCONTINUIDADE

Quino

A propriedade da ausência está fortemente vinculada à inexistente e (ou) frágil ação do Estado na área da Cultura, mantenedor da exclusão social, que por muito tempo não tomou providências para configurar outra postura e lógica de funcionamento para a área, nem propôs alterações substanciais no seu modo de conduzir as transições de uma gestão a outra, que, em grande parte, foram interrupções de programas, redução de dotação orçamentária, desmanche de instituições e entrega ao mercado dos mecanismos de financiamento para a área.

A ausência16 mencionada por Rubim (2008, p.3) diz respeito à falta de ambientes

e condições para que emergissem políticas culturais nacionais em distintos momentos da história do país, sendo as ações nesse campo na maioria das vezes pontuais e esporádicas, principalmente nos períodos de democracia e voltadas a segmentos específicos, a exemplo da preocupação com a área do patrimônio em alguns estados da federação. Como se vê nesses períodos, foram poucas e esparsas ações, direcionadas a um ou outro segmento artístico e (ou) cultural, a exemplo do patrimônio, e não voltadas para uma rede de ações para distintas áreas. Ainda, cabe salientar a ausência como uma propriedade existente pela falta de demanda da própria sociedade por mecanismos legais e recursos para a a área da Cultura.

As considerações de Rubim acerca da falta de ambiente e condição dialogam com uma característica geral básica da abordagem sistêmica, o Meio Ambiente – o

sistema que envolve o sistema de referência (VIEIRA, 2006) – e age sobre as componentes do sistema ou é objeto de sua ação (BUNGE, 2006).

Como um "toma lá dá cá", os componentes de um sistema que se encontram em determinado ambiente estabelecem relações entre si e entre aspectos do ambiente configurando a estrutura17 do sistema. Assim como observado e discriminado

anteriormente no que concerne ao autoritarismo, que emerge das relações estabelecidas entre superiores e inferiores, que provocam um ambiente com falta de espaços de participação e inércia, sem indignação suficiente que mobilize esforço para que se conquiste equanimidade de recursos e direitos, por exemplo.

No caso da cultura não emergiram propriedades de continuidade ou de estabilidade para a área em virtude também da falta de condições18 no ambiente em que a

cultura se encontrava. Se a cultura não "teve efeito", não se efetivou como política nacional é porque lhe faltou contribuintes que a afirmassem como necessária, que a reconhecessem como importante, quer nos sistemas da política, da economia, quer mesmo na própria sociedade: "a presença de uma coisa em um dado tempo é necessária para sua percepção" (BUNGE, 2006, p.67). Para que a cultura, como estrutura do sistema político e do econômico, pudesse ser percebida nesses ambientes ela deveria ter existido por um dado tempo suficiente para que fosse percebida como necessária e se engatasse no dia a dia das instituições. Afinal, como se dar conta da ausência de algo sem se ter a percepção anterior de sua existência? Ou como se mobilizar por melhores condições e equiparação de direitos quando a percepção que se tem da própria área-corpo-instituição e do ambiente é de impossibilidade de transformação?

Essa questão é embebida em ambivalência já que a cultura e as artes são vivenciadas cotidianamente no fazer e no imaginário das pessoas; contudo, segundo a contextualização apresentada, não é entendida como sistema que requer estabilidade em sua organização política e econômica, e tampouco é incluída na endoestrutura19

17 Tanto a estrutura do sistema pode ser reconhecida pelo estudo do comportamento das componentes

individualmente e das relações estabelecidas, assim como pelas propriedades que emergem destas relações (BUNGE, 1979, 2006).

18 Condição para Bunge (2006, p.67): Ontologia – "Uma causa necessária (ou contribuinte) de um

evento é um evento sem o qual o efeito não aconteceria."

19 A endoestrutura de um sistema é a coleção de relações entre os componentes do próprio sistema

em questão. Já a exoestrutura de um sistema é o conjunto de relações entre os componentes do sistema e os itens ou componentes ambientais (BUNGE, 2006).

destes outros dois sistemas. A cultura necessita, para sua permanência, como todas as outras áreas ou campos de conhecimento e saber, de condições para sua sobrevivência, a exemplo da necessidade de marcos regulatórios próprios que poderão provê-la de subsistência econômica contínua, tal como ocorre com as áreas da educação e da saúde.

E sob esse aspecto faz-se necessário considerar as relações intersistêmicas entre os subsistemas20 da economia, da política e da cultura, pois se este último, pela

privatização da iniciativa cultural e, portanto, pela frágil ou ausente presença do Estado, inexistiu como política pública é porque não esteve presente nos ambientes e estrutura dos outros dois subsistemas. E, pela falta de compreensão e do estabelecimento dessas relações intersistêmicas, justifica-se muitas vezes o desconhecimento dos políticos e gestores pelas causas ou demandas da área da cultura. A cultura permanece ausente como preocupação por parte dos gestores, candidatos a gestores e pela sociedade que não a demanda como espaço de discussão. Questões como a segurança pública e a educação permanecem como as requisitadas para os debates públicos.

Um dos mecanismos21 que "escamotearam" a ausência de políticas de finan-

ciamento e a de poder de decisão do Estado na área da cultura foram as leis de incentivo22 (CASTELLO, 2002, p.645 apud RUBIM, 2008, p.13), tendo sido estas

"entronizadas" como política cultural, assim como o mercado com "o poder de decisão acerca da cultura brasileira" (RUBIM, 2008, p.13). Com isso, tornou-se a questão do

20 Para Bunge (2006, p.359) "Um objeto é um subsistema de outro se e somente se ele próprio for um

sistema, e se sua composição e estrutura estão incluídas respectivamente na composição e estrutura do último, enquanto seu ambiente inclui o do sistema mais abrangente." Ainda, Bunge (1979, p.203): o subsistema da economia é considerado como, caça, pesca, mercado, financiamento, etc.; o da cultura (artístico, tecnológico, científico, criação humana e sua difusão) e o político (todos os tipos de governo, atividades políticas não governamentais, e as militares). Ainda, segundo Bunge (1979, p.204), os subsistemas da economia, da política e da cultura são os mais importantes subsistemas que compõe uma sociedade humana junto ao subsistema da família tomando-se que todo e qualquer sistema social "é parte de ao menos um dos quatro principais subsistemas da sociedade" (tradução nossa).

21 Para Bunge (2006, p.359): "O mecanismo de um sistema é formado pelos processos internos que

o fazem funcionar [...]"

22 Lei Sarney: "Lei de Incentivos Fiscais Para a Cultura (Lei n.o

7.505, de 02 de julho de 1986), que dispõe sobre benefícios fiscais na área do imposto de renda concedidos a operações de caráter cultural ou artístico e cria o Instituto de Promoção Cultural – IPC" (LEÃO, 2004, p.17). Foi promulgada pelo ministro da cultura, Celso Furtado. Lei Rouanet: "Lei Federal no. 8.313 assinada em 1991 que permite às empresas patrocinadoras um abatimento de até 4% no Imposto de Renda (desde que já disponha de 20% do valor total da proposta). O projeto precisa ser aprovado pelo Ministério da Cultura, sendo apresentado á Coordenação Geral do Mecenato e aprovado pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura" (KATZ, 2003).

financiamento da cultura uma das mais importantes a ser tratada pelo Estado brasileiro e na qual este atuou prioritariamente com uma política de evasão diante deste problema ao invés de enfrentá-lo.

A proximidade de entendimento que se foi estabelecendo entre o objeto das Políticas Culturais no Brasil e o objeto das Leis de Incentivo distorce a definição conceitual de um e de outro, que são distintos. Como pontua Leão (2004, p.2): "De meados da década de 1980 até os dias de hoje, sucedeu que os incentivos fiscais se configuraram não como uma parte de um projeto de política cultural – que deveria ser o seu papel – mas passaram a ocupar o lugar da própria política cultural." Sendo que estados e municípios23 se influenciaram por esse mecanismo e entendimento

de política para a cultura, instituído pela esfera de poder federal.

Para Helena Katz (2005), as leis de incentivo legitimam juridicamente o Estado de exceção "pois promove a exclusão através do mecanismo de inclusão [...]. Porque dizem respeito ao mercado, as leis de incentivo, ao incluírem alguns, pespegam estrelas amarelas discriminatórias em todos os que exclui."24

O estado de exceção, no sentido proposto por Giorgio Agamben (2008), pressupõe medidas provisórias e excepcionais de governo em períodos de crise política que acabam por instituir uma relação que, ao mesmo tempo em que permite algum direito a uns, abandona o direito de outros. Considerado (AGAMBEN, 2008, p.13) como "o paradigma de governo dominante na política contemporânea", o estado de exceção margeia os limites entre democracia e absolutismo e permite refletir sobre o autoritarismo e a ausência como propriedades que rastreiam também as relações entre direito e política, e não tão somente as relações entre cultura e comunicação.

As Leis de Incentivo Fiscal deixaram de ser um dos possíveis mecanismos de financiamento para as políticas culturais e passaram a ser entendidas como o

23 A primeira lei municipal de incentivo fiscal à cultura foi implantada pela cidade de São Paulo com o

nome de Lei Mendonça. "Lei n.o 10.923, de 30 de dezembro de 1990, de autoria do Deputado e Advogado Marcos Mendonça [...]. Esta Lei dispõe sobre incentivo fiscal para a realização de projetos culturais, no âmbito do Município de São Paulo" (LEÃO, 2004, p.18).

24 Cf. Helena Katz, em artigo intitulado "Hoje é dia da dança: quem vai comemorar? Dança profissional

no Brasil pertence à terra de ninguém entre o direito público e o fato político", publicado no jornal O Estado de S. Paulo, edição de 28/04/2005.

próprio sistema de política cultural. Isso, de certo modo, justifica um dos motivos pelos quais a cultura não vingou como política e não pôde ser identificada por inter- relações mais elaboradas entre os subsistemas apontados, pois foi reduzida a ideia de um único mecanismo de funcionamento ao invés de serem criados e articulados outros componentes e processos internos de funcionamento, tanto na questão do financiamento quanto do fomento.

Novamente, vê-se a força de um mecanismo que, nesse caso, opera e replica uma dependência unidirecional, e, portanto, pouca autonomia do artista e do produtor cultural em virtude de limitar as fontes de incentivo a apenas uma, a das empresas, e de reduzir a demanda da oferta de produtos culturais a apenas um "procurador", o diretor de marketing dessas mesmas empresas. Minimizados o número de componentes a estabelecerem relações neste tipo de sistema que se criou para a cultura, a lei da oferta e da procura também foi reduzida a apenas um viés relacional: artista- produtor/diretor de marketing-empresa. Desse modo, apenas uma minoria conseguiu alcançar os recursos para produção, ficando o privilégio e prestígio direcionados para poucos, assim como mantido o status para uma recorrente minoria.

O exercício do poder econômico no subsistema da cultura restrito a uma minoria aponta para uma política frágil e pouco construtiva25, no sentido de que reduz as

possibilidades de atuação produtiva de inúmeros profissionais e o espaço para a sobrevivência de estilos de arte e cultura não facilmente assimiláveis pelo mercado, a exemplo da pesquisa em dança contemporânea que requer recurso público de Estado e apoio contínuo.

No caso do modelo de política na área da cultura, como uma conjugação e exercício de ausência e autoritarismo, emergiu a instabilidade, que é, segundo o autor (RUBIM, 2007, p.10), uma "faceta institucional" que passa a existir a partir dos seguintes fatores: "fragilidade; ausência de políticas mais permanentes; descontinuidades administrativas; desleixo; agressões de situações autoritárias, etc."

25 Bunge (2009, p.2) afirma que uma política pode ser compreendida como construtiva ou destrutiva,

grandiosa ou medíocre, com produção ou abnegada de atividades, dependendo de como o poder é exercido na sociedade.

Nesse sentido, as propriedades apontadas, independentemente dos atributos que possam representar, são sistêmicas, partilhadas e globais e emergiram no sistema26

cultura, dos últimos cem anos. Por isso ressalta-se que, mesmo com outra estrutura e lógica de funcionamento para a área que vem sendo experienciada nos espaços de participação e de debate público, a partir da proposição do programa de governo Lula, propriedades, como as assinaladas por Rubim (2007, 2009), não submergem de uma hora para a outra, principalmente enquanto forem tomadas por estratégias de sobrevivência mantenedoras de um poder público unilateral, como o privilégio e o prestígio para poucos.

Contudo, a arquitetura de um novo sistema se estrutura para que outras propriedades e realidade possam emergir pelas inter-relações entre os constituintes da nova organização sistêmica em questão (BUNGE, 2003) e entre estes e seu ambiente. Que poderão conduzir a outras propriedades, a exemplo da solidez de um corpo, programa ou instituição, ou "da estabilidade (ou instabilidade) de um governo, do equilíbrio (ou desequilíbrio) de um mercado [...]." (BUNGE, 2003, p.12-13, tradução nossa).

Cabe ressaltar sobre esse aspecto, que dentre alguns princípios universais que regem as propriedades de qualquer natureza (BUNGE, 2006), o autoritarismo, a ausência e a descontinuidade, podem ser também consideradas como propriedades relacionais, secundárias – dependem do sujeito – e cambiáveis. Como as propriedades não são desgarradas de tudo o que as estrutura e as permite emergir, investigá-las pelo viés sistêmico – componentes, relações, estrutura, mecanismos, ambiente – possibilita reconhecer uma regularidade ou padrão que se força sobre a sociedade, e que está a serviço de satisfazer a determinadas condições para que a cultura exista do modo como apresentado e não, de outro. Detectar a lei ou leis que envolvem estas propriedades, e que estipulam as regras de comportamento e de percepção de mundo pode auxiliar na transformação do sistema e no câmbio das propriedades.

Dois aspectos devem, portanto, ser sublinhados: 1) um mecanismo, quando tomado isoladamente e tratado de modo equivocado, como um sistema em si mesmo, ou quando

26 Para Uyemov (apud VIEIRA, 2006, p.41): "Um sistema é um conjunto ou agregado de elementos

relacionados o suficiente para que haja a partilha de propriedades". Há que haver relação entre toda parte ou toda componente com, no mínimo, uma outra componente do objeto em questão para que se configure um sistema, que é considerado pelo autor como um objeto complexo e estruturado (BUNGE, 2003, 2006, tradução nossa).

engessado e reduzido a satisfazer poucos componentes e relações do sistema mostrou-se limitador e responsável pela inibição do subsistema da cultura. Mostrou- se também como uma forte estratégia de manutenção do poder para poucos por ser único, e, nesse sentido, evitar outras relações de serem estabelecidas forçando os componentes do sistema a restringirem as possibilidades de estabelecimento de outros elos ou nexos de sentido em que as relações sociais pudessem se expandir, assim como a produção na área em questão; 2) o entendimento da importância das relações intersistêmicas entre cultura, economia, política, comunicação, e mesmo o direito, é imprescindível para a organização e legitimação de uma área na sociedade, e estas relações entre subsistemas exigem ações concomitantes, planejadas e articuladas entre si para que não haja desperdício de recursos humanos, de investimento ou mesmo descaso e esquecimento de uma área de atuação. E este modelo de ação, que abarca as condições apontadas, será aqui denominado ação sistêmica.

Conforme visto em Bunge (2006), o comportamento dos componentes do sistema só será compreendido na relação de um para com o outro e na relação de suas contribuições para com o todo, para com a área de estudo, por exemplo. Se as propriedades discutidas emergem das relações entre os componentes, é preciso rever as estratégias e os mecanismos utilizados pelos componentes do sistema, principalmente quando uma área não se desenvolve econômica, nem tampouco politicamente.