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2 ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS DE CUNHO SOCIAL

2.5 CIDADANIA COMO UM PROCESSO DE LUTA PARA A

Partimos do pressuposto, com apoio em Carlos Roberto Jamil Cury (2007, p. 849), de que “[…] o financiamento da educação representa uma clara intervenção do Poder Público em uma área que se define como um direito de cidadania”. Nesse sentido, pretendemos discutir como a construção histórica do conceito de cidadania relaciona-se com a constituição do espaço público estatal e com a conquista dos direitos fundamentais, como a educação.

Marshall (1967), considerado com um autor clássico do conceito de cidadania, define-a como “[...] uma espécie de igualdade humana básica associada com o conceito de participação integral na comunidade”, mesmo num contexto de desigualdade econômica de classes sociais. Em outras palavras, “a cidadania é um

status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos

aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status” (MARSHALL, 1967, p. 76).

Nesse sentido, o autor parte do princípio de igualdade para a sua definição de cidadania e apresenta três elementos básicos formulados como direitos de cidadania: o elemento civil, composto pelos direitos necessários à liberdade individual; o elemento político, constituído pelos direitos vinculados à participação no exercício estatal; e o elemento social, que se refere aos direitos ao bem-estar econômico e à herança cultural. Assim, o conceito de cidadania implicaria possuir os mesmos direitos nas esferas civil, política e social, ou seja, que todos tivessem as

mesmas condições de exercício de sua liberdade individual, de participação política, que implica também em votar e poder ser eleito, e de acesso aos bens e serviços na sociedade, com destaque para a educação escolar. Convém ressaltar que a análise de Marshall (1967) quanto à construção do conceito de cidadania se limitou ao contexto histórico e social da Inglaterra. Portanto, desconsiderava os processos históricos de consolidação dos direitos civis, políticos e sociais de outros países. Nesse sentido, concordamos com Ramesh Mishra (1981, p. 30) quando afirma que a “[…] narrativa de Marshall pode ser lida como a história da afirmação gradual e inevitável de certo tipo de conceito de cidadania inerente à natureza e ao desenvolvimento da sociedade inglesa”. Contudo, o autor trouxe contribuições significativas para pensar a noção de igualdade, para ele inseparável da própria ideia de cidadania. Essa concepção de cidadania, para Corrêa, D. (2010, p. 24), “significa a realização democrática de uma sociedade, compartilhada pelos indivíduos a ponto de garantir a todos o acesso ao espaço público e condições de sobrevivência digna, tendo como valor fonte a plenitude da vida”.

A cidadania, como igualdade humana básica, na abordagem de Marshall (1967), vincula-se a dimensão jurídica, delineando uma pertença integral e participativa como membro da comunidade política, expressa enquanto nacionalidade. Assim, “cidadão é aquele formalmente reconhecido com um sujeito de direitos e deveres, socialmente incluído e juridicamente qualificado por um ordenamento político específico” (CORRÊA, D., 2010, p. 24). Nas palavras de Maria Victória de Mesquita Benevides (1994, p. 7):

Na teoria constitucional moderna, cidadão é o indivíduo que tem um vínculo jurídico com o Estado. É portador de direitos e deveres fixados por uma determinada estrutura legal (Constituição, leis) que lhe confere, ainda, a nacionalidade. Cidadãos são, em tese, livres e iguais perante a lei, porém súditos do Estado.

Entretanto, para Corrêa, D. (2010), a cidadania não se restringe à dimensão jurídica, ou seja, ao vínculo jurídico da pessoa com o Estado e com seus direitos políticos, mas implica, a partir dos escritos de Hannah Arendt, o acesso ao espaço público, “no qual a igualdade em dignidade e direitos precisa ser politicamente construída, sob o pressuposto de que os seres humanos, no chão duro da vida real, não nascem livres, muito menos iguais” (CORRÊA, D., 2010, p. 25).

Tânia Regina de Luca (2010), ao analisar a história dos direitos sociais no Brasil, nas primeiras décadas republicanas, pôde concluir que não havia nenhuma menção na Constituição de 1891 aos direitos de natureza social; ao mesmo tempo,

[...] o direito de participar da vida pública por meio do voto não foi exercido pela imensa maioria daqueles que, segundo o texto constitucional, estavam aptos a fazê-lo. Os direitos civis, por sua vez, esbarravam no predomínio do latifúndio e no poder dos grandes proprietários, que seguiam atuando como senhores quase absolutos num país eminentemente rural. (LUCA, 2010, p. 477).

Nessa direção, a dimensão jurídica representa uma condição necessária, pois assegura a igualdade de todos perante a lei, mas não suficiente, para a efetividade da cidadania. Desse modo, Corrêa, D. (2010) propõe que seja acrescentada à dimensão jurídica da cidadania uma dimensão política que garanta condições de acesso ao espaço público, tendo em vista que a esfera do público diz respeito à igualdade construída pela cidadania. Com base nessas duas dimensões, o autor afirma que a cidadania é “[…] o processo de construção de um espaço público51 que

propicie as condições necessárias para a vivência e a realização de cada ser humano, em efetiva igualdade básica, mas respeitadas as diferenças próprias de cada um” (CORRÊA, D., 2010, p. 27).

Corrêa, D. (2010) concebe a cidadania como um processo histórico, dinâmico e conflitivo de construção desse espaço público necessário à vivência humana. Processo conflitivo na medida em que temos um sistema social marcado pelas desigualdades socioeconômicas, em que os detentores das condições materiais não cedem gratuitamente aos apelos e demandas dos segmentos mais excluídos do sistema social.

Desse modo, a construção da cidadania passa pelo acesso ao espaço público que, por sua vez, se constitui nas relações de forças dos poderes de classes e demais poderes da sociedade. Afirma Corrêa, D. (2010, p. 51): “Não há uma representação única da esfera público-estatal e, sim, confronto ético-político de

51 O espaço público, na concepção do autor, não se restringe a um espaço meramente geográfico,

nem se reduz às instituições políticas contrapostas ao campo das condições materiais de existência, ou seja, ao campo privado das relações econômicas, mas como um “espaço vital, necessário para cada indivíduo construir, consciente e criativamente, sua identidade, seus projetos e seus sonhos, enfim, sua dignidade de sujeito racional, a partir de direitos fundamentais socialmente reconhecidos” (CORRÊA, D., 2010, p. 27).

discursos contraditórios e conflitivos”. Nesse contexto, há ações e políticas que se voltam a grupos dominantes no aparato estatal, no intuito de manutenção do status

quo, assim como pode haver referências à efetivação dos direitos direcionados às

classes menos favorecidas da sociedade. Ambas as dimensões integram dialeticamente a conformação do espaço público estatal. Assim, as políticas de educação especial e a disputa pelos recursos públicos voltados ao atendimento de seu público (pelas instituições públicas e privadas) sofrem as influências das diferentes correlações de forças no âmbito do Estado brasileiro.

Cabe ressaltar que o espaço público só se concretiza a partir da constituição de políticas públicas, resultantes de diferentes forças que compõem o aparelho estatal, isto é, das relações de poder em jogo na constituição do espaço público. De acordo com Carlos Nelson Coutinho (2000), a extensão da cidadania a todos os membros do corpo social levou à ampliação da esfera política para além do âmbito do Estado, envolvendo uma complexa rede de organizações coletivas de sujeitos políticos com um papel decisivo na correlação de forças que determina os equilíbrios do poder e as ações políticas.

Assim, o Estado “[…] deixou de ser o instrumento exclusivo de uma classe para se converter na arena privilegiada da luta de classes” (COUTINHO, 2000, p. 29). Desse modo, a consolidação dos direitos de cidadania na busca de um espaço público acessível a todos depende dessa relação de forças. Conforme Corrêa, D. (2010, p. 53),

[...] perceber o Estado como a materialização institucionalizada da representação do espaço público significa que a construção da esfera pública, por meio da qual se estende a todos os cidadãos a condição da igualdade básica, é função precípua da cidadania. Embora esse espaço público – condição de igualdade e de sobrevivência da humanidade – se formalize enquanto dever-ser jurídico, no qual o cidadão é reconhecido como um sujeito com o direito a ter direitos, sua materialização está a exigir que o cidadão também se assuma como sujeito político.

O autor defende que a universalização dos direitos humanos e da cidadania depende da superação das contradições existentes na sociedade, na medida em que as desigualdades materiais do capitalismo condicionam a ocupação desigual do espaço público. E isso dependerá da organização dos sujeitos políticos (os

excluídos, os oprimidos e os discriminados) na reconstrução do espaço público fora da lógica do lucro e da acumulação, baseados numa concepção de “cidadania capaz de oportunizar a todos o acesso a um espaço público norteado pela dignidade da vida, a ser coletiva e solidariamente efetivado” (CORRÊA, D., 2010, p. 56).

Nessa perspectiva, no âmbito desse espaço público, pretendemos discutir um dos direitos considerados fundamentais para o exercício ético e político da cidadania: o da educação, que, em determinada configuração de Estado democrático de direito, passou a ser assumida como referência para as políticas públicas. Para tanto, apresentaremos a trajetória histórica do financiamento da educação brasileira e suas implicações na configuração da educação especial.

3 A EDUCAÇÃO ESPECIAL NO CONTEXTO DO FINANCIAMENTO DA