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2 ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS DE CUNHO SOCIAL

2.3 O ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL E O FUNDO PÚBLICO

Na construção do Estado de Bem-Estar Social, o fundo público, segundo Francisco de Oliveira (1998), constituiu-se no padrão de financiamento público da economia capitalista, na medida em que essa economia perdeu sua capacidade autorregulatória e a esfera privada se mostrou insuficiente para tramitar e processar as novas relações sociais. Nessa perspectiva, o Estado configurou-se como

instância necessária de publicização, tendo em vista que ele foi forjado para “[…] assegurar os interesses privados, mas só o pode fazer, somente se torna eficaz, se eles se transformam em interesses gerais públicos” (OLIVEIRA, F., 1998, p. 51). Dessa forma, o autor afirma a impossibilidade de se conceber a formação do sistema capitalista sem a utilização de recursos públicos.

Nessa direção, Salvador (2010, p. 27) salienta que o fundo público exerceu uma função ativa tanto na esfera acumulativa produtiva como no âmbito das políticas sociais, ou seja, o “[…] fundo público tem papel relevante para a manutenção do capitalismo na esfera econômica e na garantia do contrato social”.

O fundo público passou a ser a base do financiamento tanto da acumulação do capital (gastos públicos com a produção, por meio de subsídios para a agricultura, para a indústria, para o comércio, para a ciência e a tecnologia, formando amplos setores produtivos estatais, e a valorização financeira do capital por meio da dívida pública) quanto da reprodução da força de trabalho, abrangendo toda a população, por meio dos investimentos e despesas sociais (educação e saúde gratuitas, previdência social, seguro desemprego, subsídios para transporte, alimentação e habitação, subsídios para cultura e lazer, salário família, salário desemprego entre outros). Contudo, Oliveira, F. (1998) ressalta que os subsídios e auxílios públicos são constitutivos do capitalismo, não sendo específicos do Estado de Bem-Estar Social.

O fundo público é agora um ex-ante45 das condições de reprodução de cada capital particular e das condições de vida, em lugar de seu caráter ex-post, típico do capitalismo concorrencial. Ele é a referência

pressuposta principal, que no jargão de hoje sinaliza as

possibilidades de reprodução. (OLIVEIRA, F., 1998, p, 21).

Desse modo, o fundo público fornece as condições físicas, econômicas e políticas para a manutenção e a reprodução do capitalismo na sociedade. Entretanto, o autor salienta que

45 Para o autor, o Estado ex-ante é aquele que antecipa o que gasta, que é mais do que arrecada,

que mostra um deslocamento das relações privadas para as relações públicas, ao passo que o Estado ex-post seria aquele Estado doméstico, dono de casa, que gasta apenas o que arrecada e tão só depois de arrecadar.

[...] o fundo público não é capital, não podendo, senão nominalmente, senão monetariamente ser identificado com ele [...] sua necessidade estrutural insubstituível não se dá porque o capitalismo esgotou as possibilidades de acumulação; ao contrário, o fundo público comparece como viabilizador da concretização das oportunidades de expansão, em face da insuficiência do lucro frente ao avassalador progresso técnico. (OLIVEIRA, F., 1998, p.34).

No que tange à reprodução da força de trabalho, as despesas públicas destinadas à educação, à saúde e outros programas de garantias de recursos aumentaram significativamente as despesas públicas totais, por parte do Estado, na medida em que financiavam a produção de bens e serviços sociais, por meio das políticas públicas. Assim, a transferência para o financiamento público da reprodução da força de trabalho reduziu os custos internos de produção no sistema capitalista.

Vale ressaltar que, para Oliveira, F. (1998, p. 53), o fundo público não é apenas a expressão de recursos estatais destinados a sustentar ou financiar a acumulação do capital; “[…] ele é um mix que se forma dialeticamente e representa na mesma unidade, contém na mesma unidade, no mesmo movimento, a razão do Estado, que é sociopolítica, ou pública, se quisermos, e a razão dos capitais, que é privada”.

Desse modo, o fundo público busca explicar a formação de uma nova sustentação da (re)produção do valor, articulando na mesma unidade a forma valor e o “antivalor46”, isto é, um valor que busca a mais-valia e o lucro e outra fração, o

antivalor, que “[…] por não buscar valorizar-se per se, pois não é capital, ao juntar- se ao capital, sustenta o processo de valorização do valor” (OLIVEIRA, F., 1998, p. 53). Assim, o fundo público atua na reprodução simultânea do capital e da força de trabalho.

A relação entre o capital e o fundo público leva este último, segundo o autor, a comportar-se como um “anticapital”, tendo em vista que “[…] essa contradição entre o fundo público que não é valor e sua função de sustentação do capital destrói o caráter auto-reflexivo do valor, central na constituição do sistema capitalista

46 A metáfora que o autor utiliza vem da física: o antivalor é uma partícula de carga oposta que, no

movimento de colisão com a outra partícula, o valor, produz o átomo, isto é, o novo excedente social (OLIVEIRA, F., 1998, p.53).

enquanto sistema de valorização do valor” (OLIVEIRA, F., 1998, p. 29). Nessa perspectiva,

[...] o que se vislumbra com a emergência do antivalor é a capacidade de passar-se a outra fase, em que a produção do valor, ou de seu substituto, a produção do excedente social, toma novas formas [...] não como desvios do sistema capitalista, mas como necessidade de sua lógica interna de expansão. (OLIVEIRA, F., 1998, p. 35).

No que se refere à reprodução da força de trabalho, os investimentos públicos em bens e serviços sociais públicos extensivos à maioria da população, funcionam como “[…] antimercadorias sociais, pois sua finalidade não era gerar lucros nem mediante sua ação dá-se a extração da mais-valia” (OLIVEIRA, F., 1998, p. 29).

Para Oliveira, F. (1998), a crise do Estado-Providência tem levado à crise fiscal do Estado, devido à disputa entre fundos públicos destinados à reprodução do capital e fundos que financiam a produção de bens e serviços sociais públicos. Nesse processo, há o deslocamento da luta de classes da esfera das relações privadas para uma esfera pública, ou seja, para o orçamento do Estado, tendo em vista que o volume e a composição do fundo público não são meramente determinados por leis de mercado, mas refletem antes os conflitos econômicos entre classes e grupos.

Oliveira, F. (1998, p. 27) afirma que “[…] o padrão do financiamento público ‘implodiu’ o valor como único pressuposto da reprodução ampliada do capital, desfazendo-o parcialmente enquanto medida da atividade econômica e da sociabilidade em geral”, na medida em que o padrão de financiamento público constituiu-se em uma verdadeira esfera pública, com regras estabelecidas e consensuais.

Dessa forma, o desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social, por meio da presença do fundo público, provocou mudanças nas condições de distribuição e consumo, do lado da força de trabalho, e das condições de circulação, do lado do capital. Nesse sentido, para Oliveira, F. (1998, p. 37), na área das políticas sociais, “[…] são os critérios antimercado os que fundamentam os direitos modernos”, uma vez que a constituição de uma esfera pública se deu ao mesmo tempo em que se deram as conquistas sociais, por meio do acesso à utilização do fundo público que

se vinculou à consolidação das políticas democráticas. Assim, a ampliação do espaço público correspondeu, na maioria dos países, a uma ampliação do Estado para publicizar e operar o deslocamento das relações privadas para relações públicas. Desse modo, a forma estatal, em muitos casos, revelou-se imprescindível e insubstituível.

Contudo, o Estado de Bem-Estar Social não deixou de ser um Estado classista, isto é, um instrumento poderoso para a dominação de classe; porém, nas palavras de Poulantzas (2000), ele se constituiu numa condensação de lutas de classes, característica da esfera pública, marcada pela “[…] construção e o reconhecimento da alteridade, do outro, do terreno indevassável de seus direitos, a partir dos quais se estruturam as relações sociais” (OLIVEIRA, F., 1998, p. 39).

A estruturação da esfera pública, mesmo nos limites do Estado classista, nega à burguesia a propriedade do Estado e sua dominação exclusiva, na medida em que o Estado constitui-se como espaço de lutas de classes, com expressões coletivas e sujeitos da história. Nas palavras de Oliveira, F. (1998, p. 41):

O ponto essencial é que as relações entre as classes sociais não são mais relações que buscam a anulação da alteridade, mas somente se perfazem numa per equação – mediada pelo fundo público -, em que a possibilidade da defesa de interesses privados requer desde o início o reconhecimento de que os outros interesses não apenas são legítimos, mas necessários para a reprodução social em escala ampla. A democracia representativa é o espaço institucional no qual, além das classes e grupos diretamente interessados, intervêm outras classes e grupos, constituindo o terreno do público, do que está acima do privado.

Portanto, para o autor, a construção de uma esfera de fato pública passa necessariamente pela gestão democrática do fundo público, opondo-se à gestão neoliberal e a seus ataques aos gastos sociais. Salvador (2010, p. 27) ressalta que, no Brasil o fundo público assumiu características peculiares e

[…] ganhou contornos restritivos, tanto pela ótica do financiamento como pela dos gastos sociais, muito aquém das já limitadas conquistas da social-democracia ocorrida nos países desenvolvidos. Até mesmo as “reformas” realizadas por dentro do capitalismo central não lograram o mesmo êxito em nosso país, uma vez que a estruturação das políticas sociais foi marcada por componentes

conservadores, que obstaculizaram os avanços expressivos nos direitos de cidadania.

A CF/1988 contemplou avanços relacionados aos direitos de cidadania, como o direito à educação. Entretanto, a efetivação dessas conquistas e a perspectiva da consolidação de um Estado de Bem-Estar Social no Brasil deveriam ampliar o aporte de recursos no orçamento público para a concretização desses direitos. Nessa perspectiva, Salvador (2010, p. 180) salienta que “[…] o orçamento é um instrumento privilegiado, que deve assegurar e expressar os requisitos de cumprimento dos direitos, refletindo as prioridades definidas pelo governo na execução e na escolha das políticas públicas”. Contudo, segundo o autor, esse direcionamento foi frustrado a partir da década de 1990, com o predomínio da ideologia neoliberal e da contrarreforma do Estado, evidenciado, principalmente, pelas ações do governo (reforma nos sistema de proteção social e cortes na previdência social, nos fundos de aposentadorias e pensões, nos programas assistenciais e nos serviços de saúde pública), que, por um lado, mostraram dificuldades na expansão e universalização dos gastos orçamentários que assegurassem a concretização dos direitos, e, por outro, destinavam boa parte dos seus recursos para o pagamento de juros, encargos e amortização da dívida externa. Segundo Salvador (2010, p. 28), “[…] parcelas importantes da arrecadação de receitas que deveriam ser utilizadas nessas políticas sociais, e poderiam ampliar a sua abrangência, são retidas pelo orçamento fiscal da união e destinadas para o

superávit primário”47. Em linha semelhante, Frigotto (2011, p. 245) afirma que o

Estado, nas primeiras décadas do século XXI, durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), “[…] em vez de alargar o fundo público na perspectiva do atendimento a políticas públicas de caráter universal, fragmenta as ações em políticas focais que amenizam os efeitos, sem alterar substancialmente as suas determinações”.

Andrea Barbosa Gouveia (2002, p. 31) salienta que a necessidade de publicizar o Estado inclui uma dimensão fundamental, a questão do orçamento, na

47 Cabe destacar o estudo realizado por Salvador (2010), que, ao analisar a execução orçamentária

da União no período de 2004 a 2007, verificou que os gastos orçamentários com previdência, assistência, saúde, educação e trabalho, conseguiram preservar a sua execução, pois tinham a maior parte dos seus recursos de natureza obrigatória, vinculada a receitas constitucionais ou a alguma norma legal.

medida em que “[…] compreender o papel do orçamento público como co- financiador do capital e do trabalho permite compreender as disputas políticas em torno da aprovação dos orçamentos municipais, estaduais e, sobretudo, do orçamento da União”. Para entender esse processo, é necessário conhecer como o orçamento é definido no Brasil.