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3.1 A cidade como lugar de espreita

3.1.2 A cidade e a cena e geografia do medo

A violência urbana e a insegurança que alimentam debates nas universidades, na sociedade, na mídia e que preocupam as autoridades públicas civis e militares, originaram ao longo da história, atitudes de objetivação da violência que visavam, através de uma racionalidade vazia, erradicá-la ou barrá-la, através de medidas de segurança pública repressivas e restritivas contra o outro, portanto, o estrangeiro34 ou nas narrativas midiáticas relacionadas à violência urbana.

Nessas práticas, a responsabilidade do agir humano que Jonas corrobora é indispensável já que, por exemplo, em relação as narrativas midiáticas sobre a violência urbana, se elas se caracterizam sempre pela “presença do ‘um’ e do ‘outro’ em condições particulares – que é a construção de mensagens, a edificação de linguagens que vão exprimir e materializar simbolicamente o ‘estar junto com’” (FRANÇA, 1995, p. 38), sempre leva a uma desconfiança do outro ou a sua exclusão. Exclusão do outro que, sempre, caracteriza a “fala do Crime”.

Tomei de empréstimo esse conceito de Caldeira (2000, p. 9), para designar “narrativas cotidianas, comentários, conversas e até mesmo brincadeiras e piadas que têm o crime como tema contrapõem-se ao medo e à experiência de ser uma vítima do crime e, ao mesmo tempo, fazem o medo proliferar”. Para a autora, “a fala do crime promove uma reorganização simbólica de um universo que foi perturbado tanto pelo crescimento do crime quanto por uma série de processos que vêm afetando profundamente” o país desde o final da última segunda metade do século passado. Assim, para autora, a fala do

34 O exemplo mais eloquente e contemporâneo a respeito é o decreto anti-migratório do novo presidente

norte americano Donald Trump. Para mais informações o decreto e sua repercussão no mundo pode acessar: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/29/internacional/1485703527_593538.html.

crime “constrói sua reordenação simbólica do mundo elaborando pré-conceitos e naturalizando a percepção de certos grupos como perigosos. Ela, de modo simplista, divide o mundo entre o bem e o mal e criminaliza certas categorias sociais”.

O que nos interessa, particularmente, nessa discussão sobre a “fala do crime”, é possibilidade de compreender, através da reorganização simbólica do mundo, que a fala do crime constrói o que entendemos como “cena do medo”, conjunto de imagens ou formação de imagens, a partir de um acontecimento violento experienciado diretamente pelo indivíduo sofredor, que narra a sua experiência ao outro, ou experienciado indiretamente, a partir de relato de um narrador que esteve presente no momento e no lugar do acontecimento, ou que relata o que lhe foi narrado por um terceiro que presenciou ou experienciou o acontecimento.

Dito isso, afirmamos, que a construção de cena do medo tem uma influência inversamente proporcional com a vontade de experienciar a cidade. Isto é, teremos menos atratividade de experienciar a cidade se tivermos um grande número de cena do medo na e da cidade. Em geral, construímos cena de medo sobre pessoas, sobre lugares e sobre o tempo, isto é, sobre o momento do dia.

Assim, de acordo com a presente pesquisa, as narrativas jornalísticas de violência da cidade são fontes principais, mas não únicas, de formação de cena do medo na cidade. São a partir das narrativas midiáticas de violência que indivíduos, em certa medida, potencializam ou elaboram suas cenas de medo que serão evitadas em suas práticas de experienciar a cidade. E como a mídia trabalha com a verossimilhança dos fatos, a construção midiática de cena do medo é determinante na propagação do medo do crime na e da cidade, já que a mídia noticia a rua, a avenida, o bairro, a praça, a vila, o conjunto habitacional, entre outros lugares conhecidos pela população, em que se deu a violência.

A partir de cena do medo, seja midiática ou não, elaboramos o que Souza, M. L. (2008) considerou como a “geografia de violência”, a distribuição e ubiquidade da violência urbana na cidade como um todo. No entanto, o que mais apavora, na atualidade, não é mais a violência urbana enquanto fenômeno social, mas o medo do crime, portanto, de violência que modificou o estar junto entre os habitantes de todas cidades contemporâneas (CALDEIRA, 2000; BAIERL, 2004; SOUZA, M. L., 2006, 2008). A partir das narrativas cotidianas da cidade e da “geografia de violência”, estabelecemos a “geografia do medo”, elaboração de mapa de espaços considerados como perigosos a evitar. Entendemos aqui o espaço enquanto produto humano (forma e conteúdo) e condicionante de relações e práticas sociais (SOJA, 1993).

Neste sentido, a geografia do medo não só leva a evitar espaços, mas também, seus habitantes. Se, pensamos, a geografia de violência nos afeta temporalmente, a geografia do medo nos afeta permanentemente, já que envolve a nossa capacidade imaginativa para elaborar esses mapas. Em certa medida, a geografia de violência mobiliza também a nossa capacidade imaginativa, mas ela depende geralmente da ocorrência dos acontecimentos violentos.

Assim, a elaboração da geografia do medo sempre leva, não exclusivamente, ao que Souza, M. L. (2006), considerou como atitude hipócrita escapista da classe dominante que, incapaz de abordar adequadamente a questão da violência urbana, se refugia na auto- segregação ou no auto-enclausuramento.

Se é verdade que os hipócritas apontados por Souza, trazem soluções escapistas à violência, acreditamos, é porque vivem em um dilema entre a cidade vivida e a cidade desejada ou sonhada, conforme Amendola (2000) mostra sobre a cidade pós-moderna que é, ao mesmo tempo, objeto de desejo e de repulsa.

Desejar e repudiar é uma dialética que caracteriza as narrativas cotidianas da cidade. Por exemplo, no trecho de entrevista do Sr. AMPA2, ao destacar, com ressalva, que a cidade é morada de “homens civilizados”, percebemos o dilema entre o vivido e o desejado. Esse dilema se radicaliza com a narrativa midiática da cidade que opera através da “linguagem espetacular”, ao mesmo tempo nos apresenta uma cidade paraíso e inferno, urbanizado e desurbanizado, entre outras características.

Percebemos o medo com um papel determinante na contemporaneidade. Pensando com Tuan (2005, p. 40), o medo é geralmente empregado como dispositivo formador da consciência disciplinar, por exemplo, de crianças através de “figuras vingativas, como o bicho-papão, bruxas e fantasmas” ou da figura do lobo que se tornou, a partir do “século XX um símbolo infantil de medo e pânico, de ameaça e de punição. O ‘Grande Lobo Mau’” (DURAND, 1997, p. 86). Isso explicaria o porquê das construções imaginárias: mitos, contos de fada, fábulas, narrativas, entre outras construções, sejam recheadas de imagens, representações e sentidos que causam medo (DURAND, 1988, 1997; TUAN, 2005; BETTELHEIM, 1997). Para Bettelheim (1997), o medo teria o potencial instrutivo pedagógico que nos capacita utilizar as nossas habilidades imaginativas, de nos integrar conosco mesmo e com o restabelecimento do nosso equilíbrio psicossocial. Neste sentido, para Ricoeur (2017, p. 61-62),

[o medo] permanece um momento indispensável em todas as formas da educação familiar, escolar, cívica, tal como, também, na proteção social

contra as infrações dos cidadãos. Projetar um tipo de educação que fizesse economia da interdição, da punição e, logo, do [medo], seria sem dúvida não só quimérico como também nefasto; aprende-se muito através do [medo] e da obediência. Isto mostra-nos que há fenômenos dos quais não se pode fazer economia sem causar estragos. Algumas formas de relações humanas, as relações propriamente cívicas, não poderão talvez nunca ultrapassar o estádio do [medo]; podem-se imaginar penas cada vez menos aflitivas e que corrijam cada vez mais, mas talvez não se possa imaginar um Estado que escape à necessidade de fazer respeitar o direito através da ameaça de sanções, nem mesmo que possa despertar as consciências ainda frustes para as noções de permitido e de proibido, a não ser através da ameaça de punição. Numa palavra, é possível que toda uma parte da existência humana, a parte pública, não se possa elevar acima do [medo] da punição, e que esse [medo] seja o meio privilegiado através do qual o homem acede a uma ordem diferente, uma ordem como que hiperética onde o [medo] fosse totalmente confundido com o amor.

Assim, o potencial pedagógico do medo foi o que fez ou faz que ele seja utilizado como dispositivo psicossocial de construção da cidade nos seus primórdios como direciona as pesquisas históricas de Mumford. E como dispositivo de controle do outro (BAIERL, 2004; DELUMEAU, 2009).