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2 DELIMITANDO O MARCO TEÓRICO: TEORIA DO FATO JURÍDICO,

2.3 Norma jurídica

2.3.2 Cláusulas gerais

Outro ponto também merece apreciação no presente estudo. Trata-se da questão atinente às cláusulas gerais, no que concerne ao seu conceito e sua relação com os princípios e regras, a fim de que também sejam observados pelo ponto de vista da teoria do fato jurídico.

Analisando as mudanças havidas na codificação civil brasileira com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, Rodrigo Reis Mazzei afirma que o Código Civil brasileiro de 1916 recebeu grande influência Código Civil francês, que optou por regras bem fechadas, com pouca liberdade para o julgador, visto o temor que havia por parte da burguesia quanto à perda dos direitos que alcançara com a Revolução Francesa, considerando, principalmente, o receio de que o Judiciário voltasse a ser instrumento para a prevalência da vontade dos nobres239.

Arruda Alvim, portanto, traz que a burguesia nutria profunda desconfiança para com os juízes, pois estes eram egressos da antiga nobreza. Os burgueses conseguiram dominar por

237 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 7ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. p.

674-683; ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista

de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, vol. 215, 1999. p. 155.

238 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 2ª ed.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p. 86-87.

239 MAZZEI, Rodrigo Reis. Código civil de 2002 e o judiciário: apontamentos na aplicação das cláusulas gerais.

In: DIDIER JR. Fredie; MAZZEI, Rodrigo Reis. Reflexos do novo código civil no direito processual. Salvador:

meio do instrumento da lei, criando a noção de que ela, num primeiro momento, não podia ser interpretada, para posteriormente afirmar que a intepretação deveria ser apenas a literal240.

Tal forma de pensar, conforme a lição de Judith Martins-Costa, traz a perspectiva de que o juiz era a boca da lei, não por produzir, como um ventríloquo, a fala do legislador, conforme a preferência da Escola de Exegese, mas porque atribui a sua voz à dicção legislativa, fazendo-a audível em todo o seu múltiplo e variável alcance241.

O modelo de outrora, portanto, não foi seguido pela sociedade brasileira, visto que o individualismo exacerbado cedeu à nova ordem social, pelo temor que um sistema fechado impossibilitasse a absorção dos avanços sociais242.

Pontes de Miranda aponta que “longe se vai o tempo em que se repetia a cada momento, fechando-se portas à pesquisa do conteúdo das regras jurídicas, o aforismo ‘in

claris non fit interpretatio’”243. Aponta que a interpretação e aplicação do direito, ou, de

forma mais ampla, a solução das controvérsias jurídicas pode se dar: (I) secundum legem, vinculada ao texto da lei, ou ao que dela imediatamente resulta, em aderência à literalidade. Porém, entende que a própria letra da lei possui mais de uma significação, ocasião em que dois ou mais juízes podem acreditar que estão decidindo secumdum legem. Tal forma de aplicação divide-se em aplicação da lei, mecanicamente, e aplicação auxiliante, ou seja, do que dela proximamente se tira, tratando-se, efetivamente, de exploração lógico-jurídica do texto legal. As palavras claras podem não estar empregadas no sentido que é o da lei; (II)

prater legem, onde o juiz decide sem a lei, porém próximo a ela. Aqui, parte da premissa de

que a lei não é todo o conteúdo efetivo da ciência jurídica ou do sistema jurídico, tal como um documento não constitui o conteúdo efetivo da história. Afirma que leis escritas são traços exteriores, mais ou menos acidentais, do conteúdo real do direito objetivo, de modo que a aplicação praeter legem resulta de atividade do juiz fora do conteúdo imediato da disposição

240 ALVIM, Arruda. A função social dos contratos no novo código civil. Revista dos tribunais. São Paulo:

Revista dos Tribunais, vol. 815, 2003. p. 11-31.

241 COSTA, Judith Martins. O direito privado como um “sistema em construção” – as cláusulas gerais no projeto

de código civil brasileiro. Revista dos tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 753, 1998. p. 24-48.

242 MAZZEI, Rodrigo Reis. Código civil de 2002 e o judiciário: apontamentos na aplicação das cláusulas gerais.

In: DIDIER JR. Fredie; MAZZEI, Rodrigo Reis. Reflexos do novo código civil no direito processual. Salvador:

Juspodivm, 2006. p. 25.

243 MIRANDA, Pontes de. Tratado da ação rescisória: das sentenças e de outras decisões. São Paulo: Revista

literal, porém não contra ela; (III) contra legem, onde há decisão contra a letra da lei244. Nesse contexto, aponta que:

o princípio de que o juiz está sujeito à lei é, ainda onde o meteram nas Constituições, algo de ‘guia de viajantes’, de itinerário, que muito serve, porém, não sempre. Equivale a inserir-se, nos regulamentos de fábrica, lei de física, a que se devem subordinar as máquinas: a alteração há de ser nas máquinas. Se entendemos que a palavra ‘lei’ substitui a que lá deve estar – ‘direito’ – já muda de figura. Porque direito é conceito sociológico, a que o juiz se subordina, pelo fato mesmo de ser instrumento da realização dele. Esse é o verdadeiro conteúdo do juramento do juiz, quando promete respeitar e assegurar a lei. Se o conteúdo fosse o de impor a ‘letra’ legal, e só ela, aos fatos, a função judicial não corresponderia àquilo para que foi criada: realizar o direito objetivo, apaziguar. Seria a perfeição, em matéria de braço mecânico do legislador, braço sem cabeça, sem inteligência, sem discernimento; mais: anti-social e – como a lei e a jurisdição servem à sociedade – absurda. Além disso, violaria, eventualmente, todos os processos de adaptação da própria vida social, porque só a eles, fosse a Ética, fosse a Ciência, fosse a Religião, fosse a Arte, respeitaria, se coincidissem com o papel escrito245.

Fredie Didier Jr. aponta que uma das principais marcas do pensamento jurídico contemporâneo é a transformação da hermenêutica jurídica, onde, nas palavras do autor, a função jurisdicional é encarada como essencial ao desenvolvimento do direito, por meio da estipulação da norma jurídica do caso concreto, e da norma geral que deve ser aplicada a casos semelhantes246. Assevera, que nesse contexto, extrai-se a técnica das cláusulas gerais a demandarem do órgão jurisdicional um papel ainda mais ativo, que conceitua como “espécie de texto normativo, cujo antecedente (hipótese fática) é composto por termos vagos e o consequente (efeito jurídico) é indeterminado”, chegando a apontar que há uma indeterminação legislativa em ambos os lados da estrutura normativa247.

Para Rodrigo Reis Mazzei, o Código Civil de 2002, no intuito de propiciar a aplicação da lei por um período mais duradouro, recorreu ao uso de cláusulas gerais, conceituadas pelo autor como normas lançadas em forma de diretrizes, dirigidas ao Estado-juiz, que deverá, conforme o que foi previamente traçado pelo legislador, dar a solução mais acertada ao caso trazido a juízo, observando para a concretização da atuação judicial não apenas o critério objetivo, mas as situações particulares que envolvem cada caso. Isso não quer dizer, todavia, que o sistema abriu mão do conceitualismo, mas, que há uma busca pelo balanceamento entre

244 MIRANDA, Pontes de. Tratado da ação rescisória: das sentenças e de outras decisões. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2016. p. 320-323.

245 MIRANDA, Pontes de. Tratado da ação rescisória: das sentenças e de outras decisões. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2016. p. 323-324.

246 Para o autor, “a criatividade jurisdicional revela-se em duas dimensões: cria-se a regra jurídica do caso

concreto (extraível da conclusão da decisão) e a regra jurídica que servirá como modelo normativo para a solução de casos futuros semelhante àquele (que se extrai da fundamentação da decisão)” DIDIER JR. Fredie.

Curso de direito processual civil. 18ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 163.

247 DIDIER JR., Fredie. Cláusulas gerais processuais. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais,

dispositivos legais fechados (casuísticos248) e hipóteses legais para preenchimento (cláusula geral), para que se evite o fechamento do sistema, assim como a diminuição da incerteza que pode ser gerada por um diploma que contenha apenas cláusulas gerais 249.

Para José Carlos Barbosa Moreira, por seu turno, a fixação dos conceitos juridicamente indeterminados, abrem ao aplicador da norma certa margem de liberdade, certa subjetividade. Adverte, outrossim, que não se deve confundir tal fenômeno com a discricionariedade. Um e outro tem em comum a necessidade da prudência por parte do aplicador, no entanto, a diferença fundamental reside em que os conceitos indeterminados integram a descrição do fato, ao passo que a discricionariedade se situa no campo dos efeitos250.

Judith Martins-Costa, ainda aponta dois critérios para a aplicação das cláusulas gerais. O primeiro, está na adstrição ao direcionamento da delegação atribuída pelo legislador ao intérprete para que complete o enunciado, detalhando a hipótese normativa e desenvolvendo soluções jurídicas para os casos. No segundo critério, as pautas de valoração estão indicadas em outras disposições legais que fazem parte do sistema, ou são objetivamente vigentes no ambiente social em que o juiz opera251.

Conforme a lição de Pontes de Miranda, as regras extralegais (no sentido de normas não escritas nos textos), também são direito, ao passo que aquelas regras (normas) em que a interpretação fez dizer algo diferente, ou substituiu, ou lhe decretou inconstitucionalidade ou ilegalidade, não são direito. A letra da lei pode ser clara, mas obscuro o direito que, diante dela, se deve aplicar252.

248 Para Judith Martins-Costa, “nas regras casuísticas, há uma prevalência do elemento descritivo, ocorrendo, por

isso, uma tipificação de condutas no próprio texto legal. Relativamente a tais dispositivos, haverá, é óbvio, a necessidade de interpretação, a que estão sujeitos todos os textos normativos, pois toda linguagem enseja o trabalho do intérprete. Mas este encontrará no texto a ser interpretado um detalhamento dos elementos a serem considerados, tendo ocorrido uma espécie de prefiguração, pelo legislador, do comportamento marcante, a ser levado em conta, uma vez que o legislador optou por descrever a factualidade” (grifos do original) COSTA, Judith Martins. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 144-145.

249 MAZZEI, Rodrigo Reis. Código civil de 2002 e o judiciário: apontamentos na aplicação das cláusulas gerais.

In: DIDIER JR. Fredie; MAZZEI, Rodrigo Reis. Reflexos do novo código civil no direito processual. Salvador:

Juspodivm, 2006. p. 29.

250 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: segunda série. 2ª ed. São Paulo: Saraiva,

1988. p. 65-66.

251 COSTA, Judith Martins. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva,

2018, p. 173.

252 MIRANDA, Pontes de. Tratado da ação rescisória: das sentenças e de outras decisões. São Paulo: Revista

Nesse caso, entendemos que a seguinte forma de pensar encaixasse, perfeitamente, também, no âmbito das cláusulas gerais: “A lei é roteiro, itinerário, guia”253.

Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, tratando sobre a influência da Constituição no âmbito processual como forma de domesticação do arbítrio estatal dentro do processo, considerando que em plano superior a Constituição visa a solucionar os difíceis e agudos problemas de relacionamento entre a ordem legal, justiça e liberdade, afirma que o direito processual não pode ser visto de forma isolada, mas, em conjunto com as ideias e concepções predominantes em determinada sociedade. Dessa forma, reconhece os direitos fundamentais como máximas processuais, direta ou indiretamente determinadores de conformação no processo254.

José Alfredo de Oliveira Baracho, trata sobre esse relacionamento entre o processo e a organização do poder, quando observa que a doutrina do constitucionalismo integra-se com o processo, materializando as normas capazes de impedir a concentração de poder, limitando suas manifestações decisórias, por meio de organismos competentes255.

As máximas processuais no Brasil, evidenciam a visão essencialmente comprometida do constituinte de 1988 com o estabelecimento de inúmeros direitos fundamentais processuais, a fim de evitar, ou ao menos minimizar, o autoritarismo dentro do processo. Tal linha de evolução, todavia, conforme a lição de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, não se operou de modo uniforme nos países ocidentais, considerando que o Tribunal Constitucional Federal alemão aplica de forma muito mais intensa os princípios e os direitos fundamentais do que os tribunais franceses ou italianos. Aduz que na Suíça, de forma geral, o direito escrito e regulamentado cada vez mais é substituído pelo case law, assim como no direito no direito anglo-saxão, fato a determinar que as normas passem a ser compreendidas como pura e simples sinalização para a necessária concretização judicial. O elastecimento, advindo de norma com suporte fático abstrato, bastante complexo, com extrema vagueza, portanto, é algo que tem a sua contrapartida, e o poder daí decorrente pode se revelar extremamente perigoso se não for exercido de forma rigorosa e democrática e com a observância dos direitos fundamentais processuais. O autor traz o exemplo histórico da experiência dos regimes políticos totalitários, em que foi extrapolada a aplicação dos princípios, entendidos como

253 MIRANDA, Pontes de. Tratado da ação rescisória: das sentenças e de outras decisões. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2016. p. 324.

254 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil: proposta de um formalismo-

valorativo. 4º ed. São Paulo: Sarara, 2010. p. 131-132.

normas de conteúdo aberto, que outorgavam ao detentor do poder e à camada política dirigente a possibilidade de concretização arbitrária, embora a aparência fosse de legalidade por conta da sua origem256.