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2 DELIMITANDO O MARCO TEÓRICO: TEORIA DO FATO JURÍDICO,

2.5 A incidência da norma jurídica

Conforme a lição de Marcelo Neves, o suposto da norma jurídica descreve, de forma hipotética, os fatos naturais ou socioculturais, que, ocorrendo concretamente, irradiam os efeitos que a disposição prescreve abstratamente. A concretização dos fatos previsto no suposto constitui o fenômeno da incidência da norma jurídica, que faz surgir,

313 Sobre o conceito de partes, como também o de tutela jurídica cf. MIRANDA, Pontes de. Comentários ao

Código de Processo Civil: arts. 1ª a 45. Rio de Janeiro: Forense, 1996. Tomo I. p. 220 e ss.

314 VILANOVA, Lourival. A teoria do direito em Pontes de Miranda. Revista do instituto dos advogados de

Pernambuco. Recife: IAP, 1995. p. 17-24.

315 VILANOVA, Lourival. A teoria do direito em Pontes de Miranda. Revista do instituto dos advogados de

Pernambuco. Recife: IAP, 1995. p. 17-24.

316 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. Tomo I. § 4.

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necessariamente, o fato jurídico. O suposto contém a representação abstrata do suporte fático, que, ao realizar-se, conduz infalivelmente à incidência da norma jurídica. Não basta que lei exista para que possa incidir, pois deve estar vigente318.

Sobre a incidência, Pontes de Miranda ensina também que é possível imaginar o seguinte ato: a página de papel é o suporte fático; a chapa molhada de tinta da impressora é a norma jurídica; o contato com o papel é a incidência; a página impressa é o fato jurídico, que há de ser necessariamente algum fato que interesse às relações humanas319.

Corroborando com o que até aqui foi dito, Paulo Lôbo anota, conforme a clássica lição de Pontes de Miranda, que a norma jurídica incide quando a hipótese normativa, ou seja, o suporte fático hipotético concretiza-se no mundo da vida ou dos fatos. No caso dos princípios, por exemplo, a incidência destes sobre o suporte fático concreto faz nascer o fato jurídico e seus efeitos, entre eles direitos subjetivos e deveres jurídicos. Tal estrutura lógica é a mesma tanto para o princípio jurídico quanto para qualquer outra norma jurídica320.

Para que os fatos tornem-se jurídicos, portanto, é preciso que normas jurídicas desçam e os encontrem, colorindo-os, tornando-os jurídicos321. O fato da vida vai entrando, preenchendo as exigências do suporte fático e recebendo a conformação jurídica, para que produza efeitos previamente consagrados na norma jurídica, demonstrando assim, a logicidade do sistema322.

A incidência ocorre no mundo social, mundo feito de pensamentos e outros fatos psíquicos, porém, nada tem com o que se passa dentro de cada um dos indivíduos no que diz respeito à adesão à regra jurídica, nem identifica-se com a eventual intervenção da coerção estatal. A incidência da norma jurídica independe de sua aplicação, e não falha, pois o que pode falhar é o atendimento e a aplicação dela. Não importa se a pessoa conhece, ou não conhece a norma, pois, por conta da sua juridicidade, incide com ou sem o seu conhecimento.

318 NEVES, Marcelo da Costa Pinto. A incidência da norma jurídica e o fato jurídico. Revista de informação

legislativa. Disponível em: < http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/181581>. Acessado em 01/08/2018.

319 MIRANDA, Pontes de. Tratada das ações: ação, classificação e eficácia. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2016. Tomo I. p. 71.

320 LÔBO, Paulo. Direito civil: parte geral. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2018. Vol. 1. Versão eletrônica sem

paginação.

321 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. Tomo I. § 2.

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322 ENGELMANN, Wilson. A (re)leitura da teoria do fato jurídico à luz do “diálogo entre as fontes do

Direito”: abrindo espaços no direito privado constitucionalizado para o ingresso de novos direitos provenientes das nanotecnologias. In: STRECK, Lenio Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan de. (Orgs.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS: Mestrado e Doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, n. 7. p. 289-308.

As descidas ao plano psicológico, adverte Pontes de Miranda, são sempre perigosas, pois estranhas ao âmbito do direito. Adverte ainda do perigo das teorias que ligam o reconhecimento da norma jurídica à sua força de incidência, ou de aplicação. Se um indivíduo se nega ao serviço militar, alegando motivo de crença religiosa, ou o direito trata a alegação como nenhuma, ou como escusa não admitida, ou formula outra norma alternativa, que pode ser uma regra jurídica que contenha uma cláusula de exceção323-324. O ideal do direito é que coincidam aplicação e incidência, porém, a aplicação é ato humano que se passa na dimensão sociológica do direito, enquanto a incidência se dá na dimensão normativa325.

A incidência das normas jurídicas se dá sobre todos os casos atingíveis por elas. Por isso, não é deixada ao arbítrio de alguém que as incida ou não. É, portanto, infalível. É o direito demonstrando a sua especificidade em relação aos outros processos sociais de adaptação326. Uma vez ultrapassado o processo de criação, a norma jurídica existe, e, integrada ao ordenamento jurídico, estará apta a incidir sempre que ocorrer, daí em diante, situação de fato ou prática de ato a ela amoldada327. Pontes de Miranda desenvolveu um amplo modelo científico de mundo total, tendo como premissa que são sete os principais processos de adaptação social: a religião, a moral, a arte, a economia, a política, a ciência e o direito. Dentre todos, é o direito o que confere maior estabilidade às relações sociais, em razão da qualidade das normas jurídicas, que são as únicas dotadas de força de incidência, em função da coercibilidade que lhes é característica. É apenas por essa força coativa que uma regra moral, política, econômica ou religiosa pode passar a ser jurídica, desde que a migração revele-se necessária para a evolução e a estabilidade social, pois o direito pode apanhar os seus enunciados e fazê-los normas jurídicas328.

As normas jurídicas incidem para todos, mas tal fato não interessa a todos. São os interessados que devem proceder após ela, atendendo-a ou efetuando todos os atos jurídicos necessários para que essa criação humana, tão essencial à evolução do homem e à sua

323 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. Tomo I. § 4.

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324 Robert Alexy trata das cláusulas de exceção ao indicar que o “conflito entre regras pode ser solucionado se se

introduz, em uma das regras, uma cláusula de exceção que elimine o conflito” Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos

direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 92.

325 MELLO, Marcos Bernardes de. Norma jurídica: Incidência e aplicação. In: LEAL, Pastora do Socorro

Teixeira (Org.). Direito civil constitucional e outros estudos em homenagem ao Prof. Zeno Veloso. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 112.

326 MIRANDA. Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. § 5.

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327 ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2000. Vol. 8. p. 32.

permanência em sociedade, continue a existir. O atendimento à incidência em maior ou menor medida demonstra o grau de civilização de determinada sociedade. A falta de atendimento é que provoca a não coincidência entre incidência e atendimento (=auto-aplicação) e a necessidade de aplicação pelo Estado, tendo em vista que não se tem mais, na quase totalidade dos casos, a aplicação pelo outro interessado329. É que, no Estado Democrático de Direito, por conta da proibição da justiça com as próprias mãos e a inserção do monopólio da jurisdição, ocorreu a duplicação do direito de ação que pode ser tanto a material (possibilidade de obrigar o sujeito passivo a adimplir a prestação) quanto a processual, que não é dirigida contra o particular obrigado a cumprir a pretensão, mas contra o Estado, para que este, por meio do órgão jurisdicional, pratique ação cuja realização privada, pelo titular do direito, o próprio Estado proibiu330. A norma jurídica, é, em geral, mais respeitada do que desrespeitada331. Havendo quem indique que as crises de descumprimento são fenômenos de exceção no comportamento humano, inversamente proporcionais ao grau de civilização dos povos. Porém, podem ocorrer quando (I) se questiona o conteúdo da norma que incidiu; (II) nega-se a existência ou a configuração do suporte fático ou (III) não se quer ou não se pode dar realização à norma concretizada. Nas hipóteses (I) e (II) a crise está relacionada com a identificação da norma jurídica concreta; na hipótese (III) há típica crise de execução332.

A incidência da norma jurídica é a sua eficácia. Não há confundir-se eficácia da norma jurídica e eficácia do fato jurídico. A eficácia da norma jurídica é a sua incidência no suporte fático. Sem norma jurídica e sem fato, ou fatos, sobre os quais ela incida, não há fatos jurídicos e, pois, efeitos jurídicos, de modo que o conceito de incidência exige lei e fato. Toda eficácia jurídica, portanto, é eficácia do fato jurídico (da lei e do fato, e não da lei ou do fato)333.

Portanto, enquanto não se realizam no mundo os fatos previstos, a norma constitui mera proposição linguística, sem qualquer consequência jurídica, embora do ponto de vista sociológico, pretende-se que funcione como regra de conduta a ser seguida pelos integrantes

329 MIRANDA. Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. § 5.

Versão eletrônica sem paginação.

330 SILVA, Ovídio Baptista da. Direito subjetivo, pretensão de direito material e ação. Ajuris. Porto Alegre:

Ajuris, n. 29, 1983. p. 106.

331 MIRANDA. Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. § 4.

Item 1. Versão eletrônica sem paginação.

332 ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2000. Vol. 8. p. 32.

333 MIRANDA. Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. § 5.

Versão eletrônica sem paginação; ARAUJO, Clarive von Oertsen de. Incidência jurídica: teoria e crítica. São Paulo: Noeses, 2011. p. 101.

de uma comunidade. Da mesma forma, enquanto existirem apenas fatos, mesmo que relevantes, mas que não tenham sido qualificados por normas jurídicas, se estará em plano apenas fático, sem qualquer repercussão jurídica. Somente a conjunção norma-suporte fático que, por meio da incidência, cria o fato jurídico, constrói o mundo do direito334.