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Como se mencionou anteriormente, clíticos são entendidos aqui como palavras funcionais monossilábicas inacentuadas. Por não serem acentuados, os clíticos do PB são submetidos a certos processos fonológicos, como elevação vocálica e sândi externo, que são característicos de sílabas não proeminentes na língua61. Os clíticos do PB, ainda, têm uma posição específica com relação a seu hospedeiro: mantêm-se à sua esquerda, ou seja, são proclíticos. Antes que se passe à discussão das características morfossintáticas e fonológicas dos clíticos do PB, descrevem-se os elementos que, em PB, pertencem a essa categoria.

                                                                                                               

60 Esses dados foram extraídos de entrevistas sociolinguísticas realizadas no município de Flores da Cunha (RS), as quais pertencem ao Banco de Dados de Fala da Serra Gaúcha (BDSer), projeto organizado e coordenado pela Profa. Elisa Battisti (UFRGS/CNPq). O BDSer contêm entrevistas com falantes de quatro municípios da Região de Colonização Italiana (RCI) do Rio Grande do Sul: Caxias do Sul, Antônio Prado, São Marcos e Flores da Cunha. Os informantes do BDSer são selecionados com base em gênero (masculino e feminino), local de residência (urbano e rural), grau de instrução (primário, ensino fundamental, ensino médio e ensino superior) e idade (18 a 30 anos, 31 a 50 anos, 51 a 70 anos e 71 ou mais anos).

61 Elevação vocálica é observada especialmente na borda direita de constituintes (como sílabas independentes, i.e. clíticos, e palavras fonológicas), quando esta é átona. Processos de sândi vocálico como degeminação e elisão normalmente envolvem uma sequência de duas sílabas átonas, podendo ser observados entre clítico e palavra e entre palavras fonológicas.

Os clíticos do PB podem pertencer a várias classes gramaticais. Podem ser preposições (como de e com), conjunções (como que e se em se ele for), artigos (como o em o professor) e pronomes (como me e se em se chama). Os clíticos do PB, pois, podem ser não pronominais (preposições, conjunções, artigos) ou pronominais. A razão pela qual preposições, conjunções, artigos e pronomes monossilábicos inacentuados podem ser caracterizados como clíticos reside no fato de que todos esses itens apresentam comportamento fonológico e morfossintático aproximado. O Quadro 1 traz os clíticos não pronominais do PB, sua classe gramatical e um exemplo com cada uma das formas.

Clítico Classe gramatical Exemplo

de preposição Perdi meu caderno de inglês.

com preposição Jantei com minha mãe.

por preposição O livro foi escrito por Dante.

pra62 preposição Ela foi pra São Paulo.

em preposição Ela mora em Porto Alegre.

a preposição Ela foi a São Paulo.

o artigo definido O professor saiu.

a artigo definido A professora saiu.

um artigo indefinido Um professor saiu.

que conjunção Eu disse que viria.

se conjunção Ela não disse se viria.

e conjunção Comprei livros e revistas.

Quadro 1: Clíticos não pronominais em Português Brasileiro63                                                                                                                

62 Independentemente de ser classificado como redução de para ou como uma forma própria (não derivada) na língua, pra comporta-se como qualquer outro clítico não pronominal do PB. Para não está incluso no Quadro 1 por ser dissilábico e apresentar proeminência.

63 Palavras funcionais como mas e ou não estão no Quadro 1 porque, apesar de se comportarem como clíticos em muitos contextos, parecem frequentemente portar algum tipo de proeminência.

Os artigos definidos o/a podem ser usados sem que um sintagma nominal os suceda (e.g. O que eu vi era velho). Nesse caso, os artigos funcionam similarmente aos pronomes demonstrativos aquele/aquela, que também podem ser usados sem um NP seguinte (e.g. Aquele que eu vi era velho). Em vez de categorizar esses elementos como um tipo de pronome demonstrativo, mantem-se aqui sua classificação como artigos definidos, assim assumindo que, em estruturas como O que eu vi era velho, o NP que segue o artigo está omitido. Em termos de prosodização, porém, o/a são clíticos que se adjungem ao elemento proeminente mais próximo à sua direita. No caso da sentença O

que eu vi era velho, o hospedeiro de o é o pronome pessoal acentuado eu; o que, pois,

pode ser considerado como uma sequência de clíticos. A organização prosódica de sequências de clíticos será abordada na seção 4.3.

Alguns clíticos não pronominais podem ser o resultado de cliticização de palavras funcionais dissilábicas proeminentes. Nesses casos, a palavra funcional perde sua sílaba proeminente e sua sílaba não acentuada adjunge-se à palavra à sua direita. É o que ocorre quando o artigo indefinido uma se torna ma em uma sentença como Eu fui só ma (=uma)

vez. Igualmente, o pronome demonstrativo esse pode passar a se em uma sentença como Nunca vi se (=esse) cara. Essas reduções não podem ser o produto de algum tipo de

sândi externo que opera entre a vogal precedente e a primeira vogal da palavra funcional, visto que a aplicação de sândi externo em PB normalmente envolve o apagamento ou ditongação da primeira vogal de uma sequência V#V64, a qual normalmente é átona (Abaurre, 1996; Bisol, 2003). Além disso, tais casos de cliticização podem ocorrer em início de sentença, quando não há elemento algum à esquerda da palavra funcional: Se

(=esse) cara me incomoda.

O advérbio de negação não também pode ser cliticizado, sendo, portanto, reduzido a num (e.g. Ele ainda num chegou). Se esse advérbio, ou qualquer uma das palavras funcionais dissilábicas acima mencionadas, estiver em posição de foco, não pode ocorrer cliticização.

                                                                                                               

O PB apresenta um número considerável de clíticos pronominais, embora alguns não sejam usados regularmente mesmo em situações de certa formalidade. O Quadro 2 traz os clíticos pronominais do PB, suas especificações de pessoa e número, seu caso gramatical e um exemplo de seu uso.

Clítico Classificação Caso Exemplos

me 1p.s.

acusativo Ela me viu.

dativo Ela me deu o livro. reflexivo Eu me machuquei.

te 2p.s.

acusativo Ela te viu.

dativo Ela te deu o livro. reflexivo Tu te machucaste.

o 3p.s. (masc) acusativo Ela o viu.

a 3p.s. (fem) acusativo Ele a viu.

lhe 3p.s. dativo Eu lhe dei o livro.

se 3p.s./pl. reflexivo Ela se machucou.

Elas se machucaram.

nos 1p.pl.

acusativo Ela nos viu.

dativo Ela nos deu o livro. reflexivo Nós nos machucamos.

vos 2p.pl.

acusativo Ela vos viu.

dativo Ela vos deu o livro. reflexivo Vós vos machucastes.

os 3p.pl. (masc) acusativo Ela os viu.

as 3p.pl. (fem) acusativo Ele as viu.

lhes 3p.pl. dativo Ela lhes deu o livro.

se 3p. indeterminado Nessa cidade se vive bem.

passivizador Aqui se estuda português. Quadro 2: Clíticos pronominais em Português Brasileiro.

Os pronomes em células acinzentadas não são comuns em PB. Vos, tal qual sua contraparte acentuada que ocupa a posição de sujeito (vós), é um pronome arcaico cujo uso se restringe a escrituras religiosas e alguns documentos legais. Tanto em discurso formal como em discurso informal, vos (e vós) não é usualmente empregado por falantes de PB.

Na fala de indivíduos de Flores da Cunha (município da RCI), não há ocorrências do clítico de segunda pessoa do plural vos. Nessa variedade, assim como em outros dialetos de PB, o pronome sujeito vós foi substituído pelo pronome vocês, cujo paradigma verbal corresponde ao dos pronomes de terceira pessoa do plural eles/elas. A forma singular você, no entanto, não parece ser frequente na RCI: os falantes demonstram preferência pela forma tu em posição de sujeito, e por te em posição de objeto. Em variedades em que você é o pronome de segunda pessoa predominante, a mesma forma (você) pode emergir em caso nominativo, acusativo e dativo (e.g. Você viu a

manifestação; Ela viu você na manifestação; e Ela deu o livro a você).

Os pronomes acusativos de terceira pessoa o/a/os/as, presentes no quadro acima, parecem ser significativamente mais frequentes em textos formais do que em discurso informal. Esses pronomes parecem ser pouco frequentes nas variedades de PB em geral (Galves e Abaurre, 2002), inclusive na RCI. Em situações não formais, os falantes tendem a empregar a forma de sujeito desses pronomes (ele/ela/eles/elas) em posição de objeto direto. Desse modo, em contextos informais em PB, uma frase como A professora

viu ele parece ser bem formada.

Na RCI, ainda, as formas dativas de terceira pessoa, lhe e lhes, parecem ser utilizadas pelos falantes com pouca frequência. Neste caso, os falantes tendem a substituí-las por sintagmas preposicionais (e.g. a ele, a ela, a eles, a elas). Assim, por exemplo, uma frase como Ela lhe deu o livro seria possivelmente produzida por um falante da RCI como Ela deu o livro a ela (ou, provavelmente, como Ela deu o livro pra

ele). Em outras variedades de português faladas no sul do Brasil, lhe/lhes parecem

Diferentemente de outras línguas românicas, tais como italiano, espanhol e português europeu (PE), o português brasileiro parece evitar sequências de clíticos pronominais. Em espanhol, por exemplo, formas como Dámelo (‘dê isso para mim’) ou

Me lo compré (‘comprei isso para mim’), com dois clíticos pronominais, são usuais e

gramaticais. Em PE, a substituição dos dois objetos (direto e indireto) da sentença por clíticos pronominais na frase Ela deu o livro a mim pode gerar Ela mo deu, com fusão entre os clíticos me e o (Vigário, 2001). Tanto nos exemplos do espanhol como no exemplo do PE, o primeiro clítico possui caso dativo e o segundo, acusativo.

Em PB, entretanto, dois objetos pronominais não emergem, assim como não emerge uma forma resultante de sua fusão – ao menos não em situações discursivas não formais. Se a sentença acima, Ela deu o livro a mim, for produzida por um falante de PB, este falante provavelmente não substituirá os dois objetos por clíticos. A sentença produzida por esse indivíduo teria apenas um clítico, que corresponderia a um dos objetos. O outro objeto, pois, teria de aparecer como sintagma completo. Os exemplos em (40) ilustram esse contexto. Em (40a), o clítico me substitui o objeto indireto a mim; em (40b), o clítico o substitui o objeto direto o livro. (40a) parece ser mais usual, visto que o clítico o, conforme se mencionou anteriormente, é normalmente associado a situações discursivas de certa formalidade. (40c) é inesperado, talvez agramatical, em PB, uma vez que fusão clítica não parece ser permitida na língua. (40d) e (40e) são agramaticais pois não se verifica próclise e ênclise simultaneamente em PB. As frases (40f) e (40g), por outro lado, são gramaticais, e podem ser tão frequentes quanto (40a) em variedades faladas da língua.

(40) (a) Ela me deu o livro. (b) Ela o deu a mim. (c) ?Ela mo deu. (d) *Ela me deu o. (e) *Ela o deu me. (f) Ela me deu. (g) Ela me deu ele.

Em (40f), o objeto direto é omitido da sentença. Como se espera de sentenças em que o objeto direto é substituído por um clítico, (40f) somente pode ser instanciada se estiver claro, a partir do contexto, o que foi dado ao falante. Em (40g), o objeto direto é substituído por ele, a forma de sujeito do pronome pessoal de terceira pessoa.

Os fatos de que (a) o/a/os/as não são frequentemente utilizados nas variedades faladas da língua e de que (b) dois clíticos pronominais não são usados em sequência são duas características que diferenciam o PB do PE. Com relação à segunda característica, se poderia supor que o PB possui apenas um espaço para clíticos pronominais em uma sequência de clítico + hospedeiro, ao passo que outras línguas românicas podem ter até três espaços (ver Vogel, 2009, para exemplos de sequências de clíticos pronominais em italiano padrão). O PE, por outro lado, proíbe o apagamento de qualquer clítico pronominal de uma sequência, o que faz com que alguns deles, dadas certas condições fonotáticas, se fundam.

Em PB, os clíticos o/a/os/as são aqueles que, em uma sequência de clíticos, são apagados (ou não emergem para a superfície). Isso, e a evitação desses itens em geral, pode se dever ao fato de que o PB também apresenta clíticos não pronominais com exatamente a mesma forma (os artigos definidos o/a/os/as). Além disso, por serem os únicos clíticos sem onset do conjunto de clíticos pronominais da língua, esses itens podem ser ainda menos proeminentes do que os demais clíticos pronominais e assim ser mais passíveis de omissão ou de substituição por uma forma acentuada.

Embora fusão entre clíticos não seja observada entre dois clíticos pronominais, esse processo ocorre entre clíticos não pronominais. Mais especificamente, fusão é aplicada entre as preposições de, com, pra e em e os artigos definidos o/a/os/as ou os artigos indefinidos um/uns. O resultado desse processo é observado em (41).

(41) de + o à do janela do carro

de + a à da casa da professora

de + um à dum livro dum aluno

com + o à co bolsa co dinheiro

com + a à ca, [kwa] foto ca namorada

com + um à cum cinema cum amigo

pra + o à pro presente pro pai

pra + a à pra festa pra professora

pra + um à prum recado prum funcionário

em + o à no localizado no bairro

em + a à na colocado na lista

em + um à num casa num condomínio

As formas fundidas com os artigos os/as/uns não estão listados em (41). No entanto, todas as preposições acima podem se combinar com esses artigos. O resultado dessas combinações é como as formas listadas em (41), com a adição do marcador de plural –s.

Uma preposição que não aparece listada em (41) é a (com sentido de para). A pode se fundir com o/a/os/as, mas não com um/uns; daí a não inclusão de a nos exemplos acima. As formas resultantes da fusão de a e artigos definidos são ao/à/aos/às. O clítico

por também pode ser fundido com artigos definidos em português brasileiro. As formas

resultantes (pelo/pela/pelos/pelas), entretanto, não são clíticas, já que apresentam proeminência na primeira sílaba.

É importante ressaltar que nem todas as formas fundidas listadas em (41) são utilizadas ortograficamente. Enquanto as formas do/da/dos/das e no/na/nos/nas são invariavelmente usadas em escrita, formas fundidas com os clíticos com e pra são evitadas nessa modalidade. Adicionalmente, deve-se destacar que mesmo o clítico pra (um equivalente de para) é evitado em escrita formal.

Tanto em BP quanto em PE, observa-se fusão entre clíticos e palavras funcionais não clíticas. Por exemplo, os clíticos de e em se fundem com os pronomes demonstrativos

este/esse/aquele/aquilo e seus equivalentes femininos (esta/essa/aquela). As formas

resultantes são deste/deste/daquele e neste/nesse/naquele. Formas não fundidas, neste caso, não são atestadas, e tampouco são utilizadas na escrita (*de este, *em este). Fusão entre os clíticos com e pra com os pronomes este e esse parece ser rara, se não inexistente (?[k]este/[k]esse, ?preste/presse). Por outro lado, fusão de com e pra com aquele parece ser mais natural ([k]aquele/[kw]aquele, praquele). Essas formas, porém, não são

utilizadas em escrita formal.

Pode ocorrer fusão também entre os clíticos de e em e os pronomes de terceira pessoa ele/ela/eles/elas. O resultado desse processo são as formas dele/dela/deles/delas e

nele/nela/neles/nelas. Quando não em posição de sujeito, apenas as formas fundidas

parecem ser aceitas (e.g. gosto dele, mas não *gosto de ele). Quando em posição de sujeito, fusão é opcional65 (e.g. não simpatizo com ele, apesar de ele ser generoso ou não

simpatizo com ele, apesar dele ser generoso). Nos exemplos entre parênteses, ele, em apesar de ele/dele ser generoso, está em posição de sujeito. Fusão entre os clíticos com e para e os pronomes ele/ela/eles/elas parece menos provável, ainda que possa ser

potencialmente observada em contextos informais (e.g. [kw]ele, prele).

O fato de que o processo de fusão clítica é registrado na ortografia para alguns clíticos não pronominais (como de e em) mas não para outros (como com e pra) é interessante, pois mostra que fusão clítica é de fato um processo morfossintático (com consequência fonológica). Em outras palavras, o fato de que algumas preposições não são                                                                                                                

65 Os outros casos de fusão apresentados nesta seção também têm caráter opcional quando o elemento depois do clítico preposicional é sujeito de uma oração subordinada (e.g. [...] apesar de o/do criminoso ser perigoso). De acordo com a gramática prescritiva, porém (ver Bechara, 2009; Cunha e Cintra, 2001), fusão deve ser evitada em tais contextos.

grafadas fundidas com o artigo seguinte, mesmo que possam ser produzidas com fusão, sugere que as formas fundidas na escrita não correspondem a preposições independentes registradas no léxico da língua, mas a itens submetidos a um processo morfossintático.

Alternativamente, se poderia afirmar que fusão é de fato um processo, mas não morfossintático e sim puramente fonológico. Se fonológico, fusão seria resultado de processos de sândi externo, como degeminação e elisão, que em PB podem envolver vogais de clíticos. No entanto, como processos de sândi são opcionais e fusão é requerida (ao menos em alguns contextos e com algumas combinações de clítico não pronominal específicas), esses fenômenos parecem ser de naturezas distintas. Processos de sândi envolvendo vogais de clíticos serão apresentados na seção 4.2.2, na qual fusão clítica voltará a ser brevemente discutida.

Nas próximas seções (4.2.1 e 4.2.2), será discutido o comportamento morfossintático e fonológico dos clíticos do PB. Uma comparação entre clíticos pronominais e não pronominais e entre clíticos e certos prefixos será traçada ao longo dessas seções, de modo a se preparar o debate acerca da representação prosódica dessas estruturas. Nas seções a seguir, além disso, algumas questões a respeito da classificação de certas palavras funcionais (como que e porque/por que) serão abordadas.