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5.2 O comportamento dos compostos do PB

5.2.2 O comportamento fonológico dos compostos do PB

5.2.2 O comportamento fonológico dos compostos do PB

Ao contrário de compostos em inglês, que exibem um padrão acentual diferente daquele de palavras ou sintagmas regulares, ou de compostos em japonês, que apresentam uma regra de vozeamento entre seus elementos (ver capítulo 2), os compostos do tipo palavra-palavra em PB não possuem nenhum processo fonológico em particular.

No entanto, a comparação entre os diversos tipos de compostos do PB com relação a acento e a fenômenos como elevação vocálica (EV) e sândi externo pode fornecer conclusões importantes a respeito de sua prosodização.

As partes de compostos do tipo palavra-palavra em PB preservam seu acento lexical, embora o acento principal da estrutura caia no elemento final. Por exemplo, em um composto como guarda-chuva, cada elemento mantém seu acento primário (guárda e

chúva), mas o acento principal da estrutura deve ser na sua segunda parte (guarda-chúva).

Compostos do tipo palavra-palavra podem exibir retração de acento. Este processo é semelhante à regra rítmica do inglês, segundo a qual o acento primário do primeiro elemento de um sintagma é deslocado para a sílaba que comporta acento secundário se a palavra a seguir tiver acento em sua primeira sílaba (e.g. thirteen rivers passa a thirteen rivers ‘treze rios’)97 (Lieberman e Prince, 1977; Kenstowicz 1994). Em compostos do PB, retração de acento atua de modo a deslocar o acento do primeiro elemento de um composto para a sílaba à sua esquerda, quando o elemento seguinte possui acento em sua primeira sílaba (86).

(86) amór-próprio à ámor-próprio além-már à álem-már

sofá-cáma à sófa-cáma

Retração de acento é também observada em sintagmas (ou em frases fonológicas) (Sandalo e Truckenbrodt, 2002). Em um sintagma como café quente, em que há choque                                                                                                                

97 Considera-se que o acento se desloca para uma sílaba com acento secundário, e não para a sílaba imediatamente à esquerda do acento primário por duas razões principais (Lieberman e Prince, 1977; Kenstowicz, 1994): (a) em sintagmas como maroon coat ‘casaco avermelhado’ não há retração de acento, já que a sílaba ma é realizada com schwa; já em sintagmas como racoon coat ‘casaco de pele de guaxinim’ há retração, pois a sílaba ra possui proeminência (não pode ser realizada com schwa); e (b) em sintagmas como Mississippi River também ocorre retração de acento, que se desloca para a sílaba Mi, não para a sílaba imediatamente à esquerda daquela com acento primário. Neste caso, ocorre retração pois há um choque de acento entre o pé formado por [ssíppi] e o pé formado por [ríver]. Na retração, o acento se desloca para a sílaba mais proeminente à esquerda, que é cabeça de outro pé métrico ([Míssi]).

de acento entre a última sílaba da primeira palavra e a primeira sílaba da palavra à direita, o acento de café pode se deslocar para a sílaba à sua esquerda, gerando cáfe quénte. Dessa forma, retração de acento em PB pode ocorrer em qualquer composto do tipo palavra-palavra ou frase fonológica, desde que se observe um choque de acento entre seus elementos.

Retração de acento em PB não é um processo de aplicação obrigatória. Assim, estruturas como amór-próprio e café quénte, com choque de acento, podem emergir98. No entanto, quando aplicada, a qualidade da vogal previamente acentuada se mantém. Em outras palavras, se a vogal de onde o acento se desloca é uma vogal média baixa ([ɛ, ɔ], ela permanece como tal depois que o acento se move para a sílaba precedente: cafɛ́ quénte à cáf[ɛ] quénte.

O acento principal em compostos neoclássicos e compostos do tipo afixo-palavra também cai no elemento final da estrutura (e.g. psico-logia, psico-linguística,

ex-namorada, cafe-zinho). Em compostos formados por dois elementos neoclássicos,

assume-se a existência de apenas um acento (primário) (Silva, 2010; Gonçalves, 2011; Nóbrega, 2014). Em compostos do tipo prefixo-palavra, o acento principal está no radical; o prefixo, no entanto, também apresenta proeminência (e.g. pré-guerra,

anti-bomba, vice-presidente). Compostos do tipo palavra-sufixo, por outro lado, parecem

exibir acento principal no sufixo; no entanto, o radical apresenta proeminência e, se tiver uma vogal média baixa, esta se mantém99 (e.g. suavemente, compl[ɛ]tamente, cidadezinha, caf[ɛ]zinho).

Observa-se retração de acento em compostos do tipo palavra-sufixo. Por exemplo, uma forma como caf[ɛ́]-zínho pode ser produzida como cáf[ɛ]-zínho a fim de evitar choque de acento (Lee, 2002). Tal qual ocorre em compostos regulares e frases fonológicas, a vogal média baixa em caf[ɛ] é preservada mesmo depois que o acento se                                                                                                                

98 Ver Sandalo e Truckenbrodt (2002) para uma descrição detalhada dos contextos em que a aplicação de retração de acento em frases fonológicas é mais provável em PB.

99 A manutenção da vogal média baixa é, para alguns autores (ver Schwindt, 2013b), indício de que dado elemento possui status de PWd. Desde Câmara Jr. (2010 [1970]), considera-se que, na maioria dos dialetos do PB, vogais médias abertas emergem apenas em posição tônica (e.g. m[ɛ́]dico,v[ɛ́]lho, c[ɔ́]la, [ɔ́]pera); quando em posição não tônica, tais vogais sofrem neutralização, passando a médias fechadas (e.g. m[e]dicina, v[e]lhice, c[o]lagem, [o]pereta). Por não passarem a médias fechadas em contextos como caf[ɛ́] à caf[ɛ́]zinho, assume-se que a posição em que tais vogais abertas estão comporte acento (primário).

desloca para a sílaba precedente. Neste tipo de composto, retração de acento pode atingir estruturas em que há uma distância de duas sílabas entre o acento principal e a proeminência secundária (i.e. a proeminência do radical). É o caso da construção

compl[ɛ́]ta-ménte, que pode ser realizada como cómpl[ɛ]ta-ménte. Em compostos do tipo

palavra-palavra, não parece que retração de acento possa resultar em duas sílabas átonas entre as sílabas proeminentes100.

É possível que o processo identificado como retração de acento em compostos do tipo palavra-sufixo seja, em realidade, resultado da aplicação do algoritmo de acento secundário em PB (ver Collischonn, 1993; Lee, 2002; Keller, 2004; Abaurre et al., 2006; Sandalo e Abaurre, 2007; Fernandes-Svartman et al., 2008). Em PWds simples com número ímpar de sílabas antes da sílaba tônica, a atribuição de acento secundário pode respeitar binariedade rítmica (e.g. deslìzaménto) ou privilegiar a borda esquerda da palavra (e.g. dèslizaménto). No caso de compl[ɛ́]ta-ménte::cómpl[ɛ]ta-ménte e de

cáf[ɛ]-zínho, é possível que a atribuição de acento ao radical se dê pelos mesmos mecanismos

que regulam a distribuição de acento secundário na língua. Se isto for verdade, então a atribuição de proeminência ao primeiro elemento da construção é uma diferença fundamental entre compostos do tipo sufixo-palavra e compostos regulares. Na seção 5.3, este fenômeno é retomado; deve-se afirmar, por ora, que semelhanças entre compostos do tipo sufixo-palavra e compostos com elemento neoclássico + palavra independente sugerem que o acento do radical em compostos com sufixos seja na verdade um acento secundário, não fruto de retração de acento.

Compostos com elementos neoclássicos parecem se comportar de maneira inversa a compostos regulares: nos primeiros, avanço de acento, não retração, parece ser possível. Por exemplo, se assumirmos que a atribuição de acento ao radical neoclássico ocorre antes de sua composição, então uma palavra como psicologia deve ser resultado da junção de psíc(o)101 e logía. No entanto, a palavra psicologia pode ser produzida como                                                                                                                

100 O composto espaço-nave pode ser uma exceção a esta afirmação, uma vez que, aparentemente, pode emergir como éspaço-náve. No entanto, ao contrário do que se observa em compostos regulares em geral, espaço-nave não parece exibir elevação vocálica na vogal átona final de seu primeiro elemento (?espaç[u]-nave), o que pode indicar que tal construção corresponde a uma forma lexicalizada na língua, não a um composto do tipo palavra-palavra.

101 Não é da alçada deste estudo discutir o status da vogal de ligação –o–. Já se argumentou, por um lado, que (i) esta vogal pertence ao primeiro radical neoclássico da estrutura (ver Bauer, 1998b) e, por outro, que

psìcología ou psicòlogía102. Se o radical psico é previamente acentuado e o resulado da composição é psicòlogía, então este é um caso de avanço de acento. Tal fenômeno é também observado em compostos constituídos por um elemento neoclássico e uma palavra independente: psico-linguística pode ser produzida como psìco-linguística ou

psicò-linguística. A primeira das duas formas (psìco-linguística), porém, deve ser a

preferida pelos falantes de PB.

No entanto, avanço de acento não é atestado em outros contextos em PB; portanto, considerar a existência deste fenômeno apenas em elementos neoclássicos seria assumir que construções com estes itens se submetem a regras exclusivas. Além do fato de que compostos neoclássicos cujo primeiro elemento é de origem grega apresentam vogal de ligação (/o/), fato que será discutido em breve, não há evidência abundante de que seu comportamento seja especial na língua. Dessa forma, assume-se aqui que a atribuição de acento ao primeiro elemento neoclássico de uma construção é, tal qual ocorre com compostos do tipo palavra-sufixo, regulada pelo algoritmo de acento secundário do PB103.

Quanto a elevação vocálica (EV) e processos de sândi vocálico (a saber, degeminação, elisão e ditongação), os elementos de compostos regulares se comportam como PWds independentes. Estes compostos exibem EV (/e, o/ à [i, u]) na sílaba final de cada elemento (87), e tais processos de sândi se aplicam entre suas partes (88).

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         

(ii) é introduzida na estrutura para evitar clusters consonantais (ver Di Sciullo, 2009). Independentemente de sua relação com a formação da estrutura, os aspectos de tal vogal que nos interessam são aqueles relacionados exclusivamente a seu comportamento fonológico e ao comportamento fonológico da construção de que faz parte.

102 Em variedades em que há epêntese entre as consoantes do cluster /ps/, pode haver acento secundário na vogal epentética: p[ì]sic[ò]log[í]a. Note-se que, neste caso, em que há número par de sílabas antes da sílaba com acento primário, a atribuição de acento secundário segue ritmo binário.

103 Há, entretanto, uma razão adicional para se crer que o radical neoclássico é acentuado antes da composição. Em construções como hétero-sexual, a primeira vogal do elemento neoclássico ([ɛ]) permanece aberta, e o acento não pode avançar para a sílaba seguinte. Mesmo quando tal elemento aparece combinado a outra raiz neoclássica, como em heteronímia, a primeira vogal da construção pode ser produzida como média aberta ([ɛ]teronímia). Um par interessante são as construções heterorgânico/hetero-orgânico, cuja primeira vogal do elemento neoclássico pode ser realizada como média fechada ou média aberta, respectivamente. Quando a vogal é produzida fechada, pode haver avanço de acento (hetèrorgânico). É possível que esta forma esteja lexicalizada na língua. Quanto a heteronímia, a forma [e]teronímia também parece possível: quando produzida com vogal fechada, o acento secundário também deve poder se deslocar para a sílaba à direita ([ɛ̀]teronímia::[e]tèronímia).

(87) surdo-mudo à surd[u]-mud[u] corre-corre à corr[i]-corr[i] sempre-viva à sempr[i]-viva (88) (a) Degeminação peix[i]-[i]spada à peix[i]spada (b) Elisão porta-[i]spada à port[i]spada (c) Ditongação: porta-[i]spada à port[aj]spada

Em compostos do tipo prefixo-palavra ou palavra-sufixo, há aplicação de EV. Em prefixos de duas sílabas com acento penúltimo, sua vogal final sofre EV na maioria dos dialetos do PB: vic[i]-presidente, micr[u]-região. Em compostos palavra-sufixo, a vogal final tanto do radical quanto do sufixo apresentam EV, quando há contexto para tal: suav[i]-ment[i], cidad[i]-zinha.

Compostos do tipo prefixo-palavra apresentam processos de sândi vocálico. Há ditongação em formas como anti-aéreo à ant[ja]éreo e micr[u]-organismo à micr[wo]rganismo; degeminação em formas como vic[i]-inspetor à vic[i]nspetor e micr[o]-organismo à micr[o]rganismo; e elisão em formas como para-olimpíada à par[o]limpíada.

Processos de sândi em compostos do tipo palavra-sufixo não são atestados, já que os sufixos que formam estas construções iniciam em consoante (como –zinho e –mente). Formas com os sufixos –inho e –íssimo que preservam sua vogal média depois da anexação do sufixo (como b[ɛ]líssimo e p[ɔ]tinho) podem ser resultado da combinação da

raiz sem sua vogal temática ou marcador de gênero com o sufixo proeminente104 (ver Câmara Jr., 2010 [1970]). Em outras palavras, formas como b[ɛ]líssimo e p[ɔ]tinho não parecem ser resultado de elisão. Em formas com –zinho e –mente, a vogal temática é mantida.

Em compostos formados exclusivamente por elementos neoclássicos, não se observa EV na vogal entre o primeiro e o segundo elemento: psic[o]logia, bibli[o]teca,

tel[e]fone. No entanto, parece possível que EV seja aplicada na vogal final do elemento

neoclássico quando este forma composto com uma palavra independente:

psic[o]linguística pode alternar com psic[u]linguística, hidr[o]ginástica pode alternar

com hidr[u]ginástica, neur[o]cirurgião pode alternar com neur[u]cirurgião. Garcia e Guzzo (2015) observam que a vogal de ligação –o– em compostos formados por um elemento neoclássico e uma palavra independente (e.g. psico-linguística) sofre significativamente mais redução (em termos de F2105) do que em compostos formados apenas por elementos neoclássicos (e.g. psicologia)106. Além disso, os autores indicam que os falantes consideram EV na vogal de ligação mais natural quando em compostos formados por elemento neoclássico + palavra independente do que quando em composições do tipo elemento neoclássico + elemento neoclássico (por exemplo, elevação em uma forma como psic[u]linguística é melhor do que elevação em uma forma como psic[u]logia)107.

Em compostos formados por um elemento neoclássico e uma palavra independente, observam-se processos de sândi vocálico. Por exemplo, uma forma como

pseudo-organizador pode ser produzida com ditongação (pseud[wo]rganizador) e

potencialmente com degeminação (pseud[o]rganizador). Há ainda a possibilidade de a vogal de ligação ser elidida, como em hidrelétrico. No entanto, a construção hidrelétrico                                                                                                                

104 A anexação de sufixos não proeminentes a raízes com vogais médias baixas ([ɛ, ɔ]) faz com que tais vogais sejam elevadas a [e, o]: b[ɛ́]l-o à b[e]l-éza; p[ɔ́]br-e à p[o]br-éza (Câmara Jr., 2010 [1970]; ver discussão em Schwindt, 2013b e nota 99, neste trabalho).

105 O segundo formante (F2) apresenta valores de frequência mais altos para vogais anteriores e mais baixos para vogais posteriores. Está relacionado, pois, a anterioridade, posterioridade e centralização de vogais.

106 Os participantes deste estudo são da região metropolitana de Porto Alegre (RS), onde EV é frequente, se não categórica, em posição átona final (Roveda, 1998; Vieira, 2002).

107 Em experimento de julgamento da aceitabilidade de formas com falantes nativos do PB, Nóbrega (2014) não verificou unimidade na avaliação de EV da vogal de ligação –o– em construções com elemento neoclássico + palavra independente.

pode ter sido lexicalizada na língua, tal qual se sugeriu, na nota de rodapé 103, para a forma heterorgânico. Tanto hidrelétrico quanto heterorgânico podem ser produzidas com vogal de ligação (hidro-elétrico e hetero-orgânico, respectivamente).

Nesta subseção e na subseção anterior, viu-se que compostos do tipo palavra-palavra, do tipo afixo-palavra e compostos neoclássicos comportam-se de forma distinta com relação a processos morfossintáticos e fonológicos. A principal diferença em termos morfossintáticos entre estes compostos reside na aplicação de elipse em estruturas coordenadas, que parece ocorrer em compostos com afixos e em compostos com apenas um elemento neoclássico (em primeira posição), mas não em compostos regulares ou em compostos formados apenas por elementos neoclássicos. Em termos fonológicos, compostos regulares e do tipo afixo-palavra diferem dos demais por apresentarem EV e processos de sândi vocálico entre seus elementos (embora elisão entre os elementos de compostos do tipo palavra-sufixo não seja atestada). Além disso, compostos regulares podem exibir retração de acento; compostos neoclássicos, por outro lado, podem apresentar avanço de acento (ou atribuição de proeminência não primária pelo algoritmo de acento secundário do PB). Compostos do tipo palavra-sufixo parecem seguir o algoritmo de atribuição de acento secundário para a localização do acento no radical.

Viu-se que, quanto a pluralização e formação de diminutivo, todos os tipos de compostos comportam-se de maneira similar (com marcadores de plural ou sufixo de diminutivo no cabeça da estrutura ou no elemento à direita). O fato de que alguns compostos regulares exibem comportamento distinto com relação a pluralização e formação de diminutivo não parece ser evidência para se postularem duas formas de prosodização a estas estruturas; neste caso, pluralização e formação de diminutivo parecem ser regidos por mecanismos morfossintáticos, não prosódicos.