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No capítulo 2, indicou-se que, para os propósitos deste estudo, composto pode ser definido como uma combinação entre itens, dos quais pelo menos um deve ser uma raiz lexical, que resulta na formação de uma unidade lexical independente. A construção resultante de composição, pois, comporta-se como uma palavra morfossintática na medida em que ocupa um único nó sintático terminal. Apontou-se, além disso, que em várias línguas europeias, três tipos específicos de composição são identificados: composição do tipo palavra-palavra (e.g. lighthouse ‘farol’ e hot-dog ‘cachorro-quente’, em inglês), composição com elementos neoclássicos (e.g. psychology ‘psicologia’ e

psycholinguistics ‘psicolinguística’, em inglês) e composição do tipo afixo-palavra (e.g. post-war ‘pós-guerra’, em inglês). Em compostos do tipo palavra ou

palavra-afixo, os elementos usualmente fazem parte do léxico nativo da língua. Já em compostos com elementos neoclássicos, pelo menos um dos elementos é um radical de origem grega ou latina (e.g. psico e logia, em psicologia, são considerados radicais de origem grega; em psicolinguística, assume-se que psico é um radical grego, enquanto linguística é um radical/palavra nativo em português).

Em PB, esses três tipos de composição são encontrados. A língua, assim, permite compostos do tipo palavra-palavra (e.g. amor-perfeito), compostos neoclássicos (e.g.

psicologia e psicolinguística) e compostos do tipo afixo-palavra (e.g. pré-escola e cidadezinha). Nesta seção, serão abordados primeiramente compostos do tipo

palavra-palavra; em seguida, compostos com elementos neoclássicos; por fim, compostos com afixos.

Compostos do tipo palavra-palavra em PB, assim como em muitas línguas europeias (como espanhol, italiano, inglês e alemão), podem ser formados a partir de elementos de diversas classes de palavras. O Quadro 3 mostra as possibilidades de combinação de classes de palavra para a formação de compostos em PB. Sempre que

possível, são fornecidos três exemplos de compostos com cada combinação de classe de palavra.

Classe das partes Compostos Classe do composto

subst.+subst. cidade-satélite subst. palavra-chave subst. couve-flor subst. subst.+adj. pão-duro subst./adj. amor-perfeito subst. boia-fria subst. adj.+adj. surdo-mudo subst./adj. mau-olhado subst. azul-marinho adj.

adj.+subst. meia-idade adj.

boa-praça subst./adj. verbo+subst. toca-discos subst. guarda-roupa subst. passa-tempo subst. verbo+verbo corre-corre subst. vai-vem subst. puxa-puxa subst. prep.+subst. ante-sala subst. sem-teto subst. sem-número subst.

adv.+adj.88 sempre-viva subst.

subst.+prep.+subst.

doce de leite subst.

fogão a lenha subst.

dona de casa subst.

Quadro 3. Tipos de compostos palavra-palavra em português.                                                                                                                

88 Compostos como bem-humorado e mal-educado não foram inclusos nesta célula do Quadro 3 pois, tal qual compostos do tipo afixo-palavra, podem apresentar elipse de radical em coordenação (e.g. bem-humorado ou mal-bem-humorado à bem ou mal-bem-humorado).

Além das construções apresentadas no Quadro 3, em PB há compostos derivados de outras possíveis combinações entre classes de palavras. Essas combinações podem ser do tipo substantivo + verbo (e.g. sanguessuga) e advérbio + pronome + verbo (e.g. bem te

vi). No entanto, tais construções não parecem ser usuais (e produtivas) na língua.

As estruturas do Quadro 3 são normalmente consideradas compostos em estudos sobre composição em PB (Moreno, 1997; Lee, 1997; Silva, 2010). De maneira geral, argumenta-se que esses compostos sejam formados a partir da combinação de (pelo menos) duas PWds. Tal combinação de PWds gera um complexo cujo significado não pode ser depreendido de suas partes (e.g. pão-duro e boia-fria) ou cujo significado é uma soma virtualmente literal de suas partes (e.g. cidade-satélite e surdo-mudo).

Tal qual línguas germânicas e demais línguas românicas, o português apresenta uma quantidade significativa dos chamados compostos neoclássicos (Bauer, 1998b; Gonçalves, 2011). Essas estruturas, conforme se mencionou acima, podem ser formadas unicamente pela combinação de radicais gregos ou latinos. Exemplos de compostos neoclássicos deste tipo são as construções fisio-logia, centí-metro, biblio-teca,

hipó-dromo e tele-fone89. Ainda que essas estruturas frequentemente façam parte de discursos técnicos ou especializados, algumas delas são usuais na fala cotidiana. É comum, por exemplo, que essas formas usuais sofram truncamento na fala cotidiana: por exemplo,

biblioteca torna-se biblio, dermatologista/dermatologia torna-se dermato, psicólogo/psicologia torna-se psico, e oftalmologista/oftalmologia torna-se oftalmo.

Considera-se que, em português, alguns prefixos e sufixos possam formar estruturas composicionais junto a um radical (Moreno, 1997; Vigário, 2001; Schwindt, 2001, 2013a, 2014; Silva, 2010). Diferentemente dos prefixos átonos abordados no capítulo anterior (que se integram ou se adjungem à raiz), estes afixos exibem proeminência e apresentam um comportamento relativamente independente, visto que podem ser instanciados isoladamente (no caso dos prefixos) ou omitidos em determinadas estruturas coordenadas (no caso dos sufixos). Em (80a), listam-se algumas                                                                                                                

89 Nestes exemplos, usam-se hifens apenas para demarcar as bordas dos elementos neoclássicos presentes na composição. Tal uso de hífen, aqui, não pretende sugerir uma forma de prosodização específica ou mesmo fazer qualquer referência à forma escrita desses itens.

estruturas compostas constituídas de prefixo + radical (ou prefixo + palavra). Em (80b), listam-se algumas estruturas compostas formadas de radical + sufixo (ou palavra + sufixo)90. Exemplos de elipse do radical ou do sufixo são apresentados em (80c).

(80) (a) ex-namorado vice-presidente anti-bomba pró-aborto contra-argumento pré-escola pós-moderno (b) café-zinho cas-inha suave-mente bel-íssimo

(c) Falei com o presidente e o vice.

A exposição tinha pinturas pré e pós-modernas. Ela dançou leve e suavemente.

Exemplos como os apresentados em (80c) são usados frequentemente para se defender o aparente status de PWd desses prefixos e sufixos em português (Vigário, 2001; Schwindt, 2001). Esse argumento baseia-se no fato de que (a) esses afixos podem fazer parte de construções coordenadas em que um elemento é elidido (e.g. pré e pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  pós-  

90 Nesta tese, não se pretende discutir se –inho e –zinho são um único sufixo ou sufixos distintos. Para considerações sobre este assunto, ver Bachrach e Wagner (2002) e Lee (2013).

modernos e leve e suavemente) e no fato de que (b) tais afixos podem ocupar a posição de

uma palavra lexical em determinados contextos (e.g. o prefixo pré pode se referir, em uso isolado, a pré-escola, e o sufixo zinho/zinha pode ser usado, isoladamente e de forma depreciativa, em referência a pessoas).

Ainda que elipse em coordenação seja assunto das seções 5.2.1 e 5.4, deve-se ressaltar que compostos do tipo palavra-palavra e compostos neoclássicos diferem de compostos do tipo afixo-palavra quanto à possibilidade de aplicação de elipse em coordenação. Enquanto compostos do tipo afixo-palavra permitem a omissão de um de seus elementos (o radical ou o sufixo, a depender da construção) em estruturas coordenadas, compostos regulares e compostos formados unicamente por raízes neoclássicas não podem ter uma de suas partes omitidas em coordenação. Em outras palavras, construções como *guarda-chuva e roupa (para guarda-chuva e guarda-roupa) ou *psicologia e patia (para psicologia e psicopatia) não são possíveis em português. Entretanto, a aplicação de elipse em coordenação com compostos neoclássicos formados de raiz neoclássica e palavra lexical nativa parece ser possível (e.g. neuro e

psicolinguística, para neurolinguística e psicolinguística).

Compostos regulares e compostos neoclássicos (constituídos exclusivamente ou por apenas um elemento neoclássico), porém, apresentam distinções em sua formação: enquanto compostos do tipo palavra-palavra são produto da combinação entre palavras lexicais da língua, compostos neoclássicos contêm ao menos uma raiz de origem grega ou latina, a qual, em português, não corresponde a uma palavra lexical. Uma diferença entre compostos regulares e compostos neoclássicos ou do tipo afixo-palavra é que os primeiros normalmente representam uma única ideia, a qual, conforme se viu, não é necessariamente equivalente à soma do significado de suas partes.

O significado de compostos neoclássicos ou de compostos do tipo afixo-palavra, por outro lado, é resultado da combinação de suas partes (mesmo que, especialmente no caso dos compostos neoclássicos, suas partes não sejam usadas independentemente na língua)91. No caso de compostos com afixo, a ideia por eles evocada também é resultado                                                                                                                

91 Na maioria das vezes, o significado desses compostos é especializado, ou seja, aprofunda a ideia de suas raízes neoclássicas ou de sua raiz lexical. Embora compostos neoclássicos ou do tipo afixo-palavra não correspondam a uma única ideia, sua natureza ainda é composicional, visto que se tratam de itens cuja

da soma de suas partes: em outras palavras, o significado da base lexical e a ideia associada ao afixo são normalmente transparentes nessas construções.

Na seção 5.2, discute-se o comportamento morfossintático e fonológico desses três tipos de estruturas composicionais, a fim de que se perceba que essas construções devem ser mapeadas de maneiras distintas para a hierarquia prosódica.