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2.4 Clíticos e compostos: definições

2.4.1 Clíticos: uma breve definição

Sequências de clítico + hospedeiro exibem uma forma particular de dependência: o hospedeiro corresponde a um elemento proeminente, ao passo que o clítico corresponde a um elemento não proeminente cuja instanciação depende da existência do elemento

proeminente (Zwicky, 1977, 1985; Nespor e Vogel, 1986; Selkirk, 1996; Anderson, 2005; Spencer e Luís, 2012). Embora seu comportamento sintático possa não ser distinto daquele de palavras lexicais31 (Dixon e Aikhenvald, 2002), clíticos são deficientes prosodicamente, já que normalmente não cumprem com requisitos de minimalidade (Anderson, 2005; Zec, 2005).

A ausência de um hospedeiro implica a ausência de seu(s) clítico(s). Em serbo-croata, por exemplo, língua em que alguns clíticos aparecem em segunda posição na sentença, a manifestação desses clíticos ocorre somente se há um hospedeiro à sua esquerda (Werle, 2009; Spencer e Luís, 2012). A cópula, por exemplo, possui uma forma clítica e uma forma não clítica. A forma clítica é utilizada quando há uma palavra (ou sintagma) à sua esquerda, para a qual funciona como um enclítico (21a). Se não há hospedeiro no início da sentença, então a forma não clítica correspondente é utilizada (21b). Os exemplos em (21) são de Spencer e Luís (2012).

(21) (a) Devojke su u sadu meninas 3PL.SER em jardim

As meninas estão no jardim

(b) Jesu u sadu 3PL.SER em jardim

(Elas) estão no jardim

Em serbo-croata, o sintagma correspondente ao sujeito pode ser omitido se for óbvio a partir do contexto da sentença (Spencer e Luís, 2012). Quando o sujeito é manifesto, a forma não clítica da cópula pode ser usada somente se estiver em foco (22); de outro modo, a forma clítica é preferida. O exemplo em (22) é de Spencer e Luís (2012).

                                                                                                               

(22) Devojke JESU u sadu meninas 3PL.SER.FOC em jardim

As meninas ESTÃO no jardim

Nas línguas do mundo, clíticos podem ser pronominais ou não pronominais. Por exemplo, em francês, os objetos em uma sentença podem ser substituídos por clíticos pronominais, os quais não ocupam a mesma posição sintática que os objetos a que se referem. Assim, um objeto como Jean, em uma frase como Je vois Jean ‘Eu vejo Jean’, pode ser substituído pelo clítico le. No entanto, a forma clítica do objeto aparece antes do verbo: Je le vois ‘Eu o vejo’ (não *Je vois le).

Em outras línguas, como inglês, clíticos pronominais ocupam a mesma posição que objetos formados por NPs ou por pronomes-objeto não clíticos. Desse modo, em uma frase como I see John ‘Eu vejo John’, John poderia ser substituído pelo pronome-objeto

him (I see him ‘Eu o vejo’) ou pelo clítico pronominal ’m (I see[m̩] ‘Eu o vejo’). Nesse

exemplo do inglês, o hospedeiro do clítico pode estar somente à sua esquerda; assim, ’m é um enclítico. No exemplo do francês, o fato de que le perderia sua vogal se o verbo a seguir começasse com vogal (Je l’aime ‘Eu o amo’) e o fato de que é requerida a presença de um elemento proeminente à direita do clítico são indicativos de que le é proclítico.

Clíticos não pronominais normalmente correspondem a palavras funcionais não proeminentes (Selkirk, 1996; Zec, 2005). Essas palavras funcionais podem pertencer a várias classes de palavras, como preposições, conjunções e artigos. Em inglês, a preposição to ‘para, por’, por exemplo, pode ser instanciada tanto como clítico quanto como palavra32 (Selkirk, 1996). Essa preposição é considerada um clítico quando sua vogal sofre redução. Em uma sentença como I go to Paris ‘Eu vou para Paris’, a vogal da                                                                                                                

32 Talvez a forma mais acurada de expressar isso seja dizendo que to pode ser produzido tanto sem nenhuma proeminência como com um certo grau de proeminência. É passível de questionamento a afirmação de que to adquire status de PWd quando não se comporta como clítico (i.e., quando está em foco ou em fim de sintagma). Outras alternativas, como a sugestão de que to corresponde a um pé quando enfatizado, podem também ser consideradas.

preposição é realizada como schwa. Além disso, o /t/ de to pode ser produzido como flap, e flapping somente ocorre quando a oclusiva alveolar está em posição não acentuada. Essa preposição é considerada uma palavra (Selkirk, 1996) quando está em final de frase fonológica (ou de sintagma sintático) (por exemplo, o segundo to em He is someone I

need to talk to ‘Ele é alguém com quem preciso falar’). To, neste caso, não pode ser

produzido com um flap ou sofrer redução vocálica; tem, pois, status não clítico. Clíticos não pronominais em inglês também podem adquirir status de palavra quando em posição de foco (e.g. She spoke AT the microfone, not WITH it ‘Ela falou NO microfone, não COM ele’, de Selkirk, 1996). Nesse contexto, a vogal do clítico não pode ser reduzida a

schwa.

Do ponto de vista morfofonológico, clíticos não são considerados nem palavras33 nem afixos (Zwicky e Pullum, 1983; Aikhenvald, 2002; Anderson, 2005). Isso significa que eles normalmente não possuem o comportamento independente de palavras, nem o comportamento incorporativo de afixos34. Não se espera que clíticos exibam proeminência intrínseca, nem que se comportem como um morfema incorporado a um radical de palavra.

A independência morfológica dos clíticos é comumente identificada com sua possibilidade de se anexar a diferentes tipos de hospedeiro. À exceção dos clíticos pronominais, que em geral se anexam apenas a verbos, clíticos podem se combinar com a maioria (se não com todas) das classes de palavra (Zwicky e Pullum, 1983). Por outro lado, elementos morfologicamente dependentes (afixos) são normalmente anexados a uma classe de palavra específica, e podem fazer com que a classe da raiz/radical seja alterada. Por exemplo, em português, o sufixo –mente pode somente ser anexado a radicais adjetivos, mas o resultado dessa anexação é uma forma adverbial (cuidadosa +

mente = cuidadosamente). Não se espera, porém, que clíticos provoquem nenhuma

                                                                                                               

33 Palavra, aqui, deve ser simplesmente entendida como palavra lexical.

34 Tendo isso em vista, Câmara Jr. (2010 [1970]) propôs uma nova categoria (forma dependente) à distinção entre forma livre e forma presa sugerida pelo linguista americano Leonard Bloomfield na primeira metade do século XX. Para Bloomfield, forma livre equivale a formas usadas independentemente na língua, enquanto forma presa corresponde a afixos. Desse modo, flor é uma forma livre em português, ao passo que –ista (em florista, por exemplo) é uma forma presa. Câmara Jr. (2010 [1970]) postulou que preposições, artigos, conjunções e alguns pronomes correspondem a formas dependentes, uma vez que, embora não se anexem a nenhum radical, não podem ser empregados independentemente na língua.

mudança na classe de palavra do hospedeiro: em uma estrutura em português como do

professor, por exemplo, professor permanece sendo um substantivo mesmo após sua

combinação com a forma clítica do.

No entanto, clíticos não exibem o mesmo grau de independência morfofonológica que palavras regulares. Enquanto palavras presumivelmente podem ser instanciadas independentemente e têm um significado particular associado a elas, clíticos normalmente aparecem somente junto de um hospedeiro – e, se não aparecem, o hospedeiro pode ser inferido. Por exemplo, não é difícil imaginar uma única palavra lexical usada na manchete de um veículo de notícias: flagrado, grávida e vote poderiam estar na capa de uma revista ou na primeira página de um jornal. Por outro lado, é difícil pensar em um clítico (e palavras funcionais em geral) nesta posição: nenhuma manchete poderia ser feita somente com os itens de, para, ou o.

Aikhenvald (2002) sugere que clíticos podem ser colocados em um contínuo que vai de elementos morfofonologicamente independentes (palavras) a elementos morfofonologicamente dependentes (afixos). A posição dos clíticos nessa escala variaria dependendo do seu comportamento com ou em relação ao hospedeiro: se o clítico exibir comportamento incorporativo, então deverá ser colocado próximo ao fim do contínuo em que estão os afixos; se apresentar comportamento mais livre, então deverá estar próximo ao fim do contínuo onde ficam as palavras. A posição dos afixos (e de algumas palavras), porém, não é sempre pré-determinada: se possuírem características irregulares, alguns deles podem não estar posicionados em uma das extremidades do contínuo.

O problema em se incluir clíticos (e afixos) em um contínuo é que a distinção entre essas categorias se torna confusa. Em geral, clíticos são considerados nós sintáticos terminais, enquanto afixos estão no mesmo nó sintático terminal que os radicais a que se anexam. Se assumirmos que um clítico está mais para a extremidade de afixo do contínuo do que um elemento rotulado de afixo, é possível que a própria categorização de um ou de outro termo esteja equivocada. Esse problema também está na distinção feita por Selkirk (1996) entre clíticos internos e clíticos afixais: se clíticos podem se integrar ou se adjungir à PWd, então o que os torna diferentes de afixos regulares na língua em análise?

Entretanto, colocar clíticos em um contínuo pode de fato refletir o trabalho de certas restrições de mapeamento na prosodização de clíticos. Em italiano (como visto de (12) a (16)), clíticos pronominais são mais estreitamente relacionados a seus hospedeiros do que clíticos não pronominais. Conforme sugerido na seção 2.3, clíticos pronominais do italiano são prosodizados no CG, enquanto clíticos não pronominais são prosodizados na PPh. Isso indica que o italiano padrão possui restrições de mapeamento que forçam a prosodização de clíticos pronominais em um domínio mais baixo com relação a clíticos não pronominais. Se esse raciocínio for transposto ao modelo de contínuo de Aikhenvald (2002), então se poderia assumir que, como os clíticos pronominais do italiano estão mais ligados ao hospedeiro, eles estão mais próximos da extremidade de afixo do contínuo do que clíticos não pronominais.

Como apontado na seção 2.3, estruturas de clítico + hospedeiro podem se submeter a diversos processos fonológicos e morfossintáticos através das línguas. Por exemplo, em certas línguas, como em inglês, espera-se que clíticos sofram redução vocálica; em outras, como o lucaniano e o napolitano35, eles influenciam a localização do acento no hospedeiro; em algumas outras, como o serbo-croata (ver (21)), eles podem ter uma posição específica na oração. A significativa variedade no comportamento de clíticos através das línguas levou Zwicky (1977) a separar esses elementos em três categorias.

Na classificação de Zwicky (1977), clíticos simples são formas reduzidas que, no entanto, mantêm a mesma posição sintática das formas não clíticas correspondentes. Clíticos pronominais em inglês (como a forma reduzida de him na estrutura give him [givm̩] ‘dê-lhe’) são exemplos de clíticos simples, e seriam o resultado da redução de pronomes-objeto não clíticos.

Clíticos especiais, por outro lado, são aqueles cujo comportamento sintático é

diferente do de outros elementos da língua. Ou seja, sua posição sintática não é equivalente àquela de nenhum outro item na língua. Clíticos de segunda posição em serbo-croata e pronomes-objeto em línguas românicas (quando em posição proclítica) são exemplos de clíticos especiais. Ao contrário dos clíticos simples, os elementos nessa                                                                                                                

categoria são vistos como itens listados lexicalmente, não como formas fonologicamente derivadas36.

A terceira categoria de Zwicky (1977) é formada pelas bound words (palavras dependentes), as quais são itens que não possuem uma contraparte acentuada. Um exemplo de bound word é o marcador de possessivo ’s em inglês (como em the queen’s

hat ‘o chapéu da rainha’), que não parece ser a forma reduzida de nenhum elemento nem

ter uma posição particular na estrutura sintática (visto que pode se combinar com estruturas de complexidade variada: the boy’s notebook ‘o caderno do menino’, the boy I

saw yesterday’s notebook ‘o caderno do menino que eu vi ontem’).

Essa classificação, ou pelo menos alguns de seus aspectos, tem sido consideravelmente desafiada (ver, por exemplo, Zwicky e Pullum, 1983; Anderson, 2005; Bermúdez-Otero e Payne, 2011). Embora separar clíticos em classes possa parecer benéfico do ponto de vista tipológico, isso não contribui para que se compreenda como esses elementos se relacionam ao hospedeiro e como são projetados na estrutura prosódica.

Além disso, há dois problemas importantes com essas categorias. O primeiro diz respeito à categoria denominada clíticos simples e ao fato de que os elementos que a ela pertencem são tidos como formas reduzidas derivadas de formas não clíticas. Porém, com relação aos clíticos simples do inglês (como ’m no exemplo [givm̩] acima), as regras necessárias para derivar os pronomes ’m e ’r e os verbos auxiliares ’d e ’z de suas correspondentes formas não clíticas (him/them, her, e had/would, has/is) são contra-intuitivas – estas teriam que de alguma forma gerar ’m tanto de him como de them, ’d tanto de had como de would e ’z tanto de has como de is.

O segundo problema está relacionado ao fato de que clítico não é uma categoria prosódica nem sintática, mas um termo geralmente usado em referência a elementos                                                                                                                

36 Uma análise alternativa do papel de clíticos pronominais na gramática é proposta por Everett (1996). Para o autor, tais clíticos são alomorfes de formas pronominais acentuadas. Desse modo, Everett (1996) sugere que a categoria clítico pode ser descartada e reforça a ideia de que as línguas em geral apresentam formas pronominais acentuadas e respectivos alomorfes inacentuados. Entretanto, o que aqui se considera clítico são formas inacentuadas (pronominais ou não) cujo comportamento fonológico e morfossintático muitas vezes é distinto do de outros elementos da língua. Isso legitima a análise de tais itens, independentemente do rótulo a eles atribuído.

prosodicamente deficientes que, entretanto, correspondem a um nó sintático terminal. Nesse sentido, separar clíticos em classes distintas pode encorajar duas suposições opostas: (a) a que defende que cada tipo de clítico apresenta uma forma particular de prosodização , e (b) a que defende que a prosodização de clíticos não é diferente entre os diversos tipos de clíticos. A visão (a) sugere que cada classe de clíticos se relaciona ao hospedeiro de uma forma particular, ao passo que a visão (b) denota que o tipo de clítico não influencia diretamente a relação entre clítico e hospedeiro.

É possível que, em uma dada língua, existam formas distintas de prosodização de clíticos37. No entanto, isso não necessariamente deriva do fato de que alguns clíticos poderiam ser classificados como simples, especiais ou como bound words. Em geral, estruturas com clíticos pronominais e não pronominais em diversas línguas parecem resultar em mapeamentos sintaxe-fonologia distintos e, portanto, ser sujeitos a processos fonológicos distintos (ver seção 2.3)38.

Para os propósitos deste estudo, é suficiente assumir que clíticos são elementos monossilábicos não proeminentes que precisam anexar-se a uma estrutura proeminente a fim de serem instanciados. Deve-se ressaltar que o domínio prosódico em que esses elementos são prosodizados e os processos fonológicos exibidos por eles (juntamente com seus hospedeiros ou com os outros clíticos da sequência) dependem da atuação de restrições de mapeamento morfossintaxe-fonologia.