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Classificação dos regulamentos quanto à sua relação com a lei

No documento Competência Regulamentar Tributária (páginas 30-35)

CAPÍTULO 1 – O REGULAMENTO E A FACULDADE REGULAMENTAR

1.3 Noções do termo “regulamento” e da “função regulamentar” no direito

1.3.4 Classificação dos regulamentos quanto à sua relação com a lei

Ao se debruçar sobre as lições delineadas pela doutrina administrativista, verifica-se que é comum, sob influência dos sistemas jurídicos de outros países, a realização de uma classificação dos regulamentos tomando-se como critério a sua “vinculação (ou relação) com a lei”. Esse critério acaba determinando a sua finalidade, ou melhor, o seu campo de atuação.

Em regra, os regulamentos, no que diz respeito à sua relação com a lei, são classificados em: (i) regulamentos de execução, executivos, subordinados ou restritos; (ii) regulamentos autorizados, habilitados ou delegados; (iii) regulamentos independentes ou autônomos; (iv) regulamentos de necessidade ou de urgência.

Os regulamentos de execução, executivos ou restritos27 são os atos administrativos normativos veiculadores de preceitos gerais e abstratos voltados tão somente para a correta e fiel execução da lei. Possuem como finalidade desenvolver ou dar exequibilidade à lei para a qual foram editados.

Voltam-se para o “mero cumprimento da lei”, 28 o que evidencia sua característica de subordinação, dependência e limitação para com a norma legal. Para parte da doutrina, somente os regulamentos de execução teriam sido acolhidos pelo sistema de direito positivo brasileiro.

27 José Carlos Francisco aponta que a expressão “regulamento restrito” é a mais apropriada para indicar a classificação em face dos limites impostos pela norma regulamentada.

Consoante as lições do autor, a expressão “regulamento de execução”, embora seja de uso comum, indica mais finalidade do que propriamente referência em relação à lei. A expressão

“regulamento executivo”, por sua vez, causa confusão entre finalidade e titularidade, uma vez que regulamento é ato exclusivo do Poder Executivo. Já a expressão “regulamento subordinado” não é feliz, pois tanto essa modalidade de regulamento quanto os delegados ou autorizados são subordinados à norma que será regulamentada (FRANCISCO, José Carlos. Função regulamentar e regulamentos cit., p. 268). A despeito das procedentes observações do autor, utilizaremos a expressão “regulamentos de execução” para facilitar o entendimento e evitar um excesso de terminologias.

28 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo cit., p. 349.

Os regulamentos autorizados, 29 habilitados ou delegados compreendem aqueles atos normativos produzidos por órgão do Executivo que, em razão de expressa autorização e permissão concebida pelo Poder Legislativo, tratam de matéria que, em princípio, estaria sob reserva legal. Por outras palavras, a ordem constitucional, em algumas situações, permite que o Poder Legislativo confira o cuidado de determinadas matérias e temas ao Executivo, desde que atendidas as condições do instrumento legal. Sobre tais regulamentos relata, com propriedade, José Carlos Francisco:

Também se trata de regulamento limitado à lei, razão pela qual é secundário, mas diferencia-se do regulamento restrito ou de execução por cuidar de temas para os quais em princípio seria exigida lei em sentido formal (reserva legal absoluta), além do que não podem ser contra legem ou praeter legem em relação ao ato legislativo que lhes confere a delegação, mas podem revogar atos legislativos diversos a esse que se insiram no tema que seja objeto de delegação.30

Como será detidamente analisado adiante, a ordem constitucional de 1988 permitiu ao Legislativo que, ao instituir os chamados tributos extrafiscais e regulatórios (imposto sobre produtos industrializados – IPI; imposto sobre operações de crédito, câmbio, seguros e títulos e valores mobiliários – IOF;

impostos sobre importação – II; e imposto sobre exportação – IE), facultasse ao Executivo alterar as alíquotas desses tributos desde que atendidos as condições e os limites máximos e mínimos estabelecidos em lei.31 Ademais, valeu-se do mesmo mecanismo ao prever que a lei que instituir a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível, poderá autorizar o Executivo a reduzir ou

29 Segundo Diógenes Gasparini, os regulamentos delegados ou autorizados “regulam, nos termos da lei autorizativa, determinada matéria que normalmente estaria fora de sua competência” (GASPARINI, Diogenes. Poder regulamentar cit., p. 29).

30 FRANCISCO, José Carlos. Função regulamentar e regulamentos cit., p. 268.

31 Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: I – importação de produtos estrangeiros;

II – exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; III – renda e proventos de qualquer natureza; IV – produtos industrializados; V – operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários; VI – propriedade territorial rural; VII v grandes fortunas, nos termos de lei complementar. § 1.º É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V.

restabelecer suas alíquotas.32 Tais atos administrativos normativos, ao tratarem com autorização do Legislativo de matéria específica – que em princípio estaria sob reserva absoluta de lei – por habilitação expressa da ordem constitucional, figuram como nítidos “regulamentos habilitados, autorizados ou delegados”.

Por seu turno, os chamados regulamentos independentes ou autônomos33 não se relacionam em nada com a lei. São editados para tratarem de assuntos atribuídos em caráter de exclusividade e reserva ao Poder Executivo. Assevera mais uma vez José Carlos Francisco que “o regulamento autônomo caracteriza-se por ser editado em matéria do domínio exclusivo do

32 “Art. 177. [...] § 4.º A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível deverá atender aos seguintes requisitos:

(Incluído pela Emenda Constitucional n.º 33, de 2001.) I – a alíquota da contribuição poderá ser: (Incluído pela Emenda Constitucional n.º 33, de 2001.) a) diferenciada por produto ou uso; (Incluído pela Emenda Constitucional n.º 33, de 2001.) b) reduzida e restabelecida por ato do Poder Executivo, não se lhe aplicando o disposto no art. 150, III, b. (Incluído pela Emenda Constitucional n.º 33, de 2001.)”

33 Sobre os regulamentos independentes ou autônomos relembra Celso Antônio Bandeira de Mello que, como também relatado, a história do “poder regulamentar” se confunde com a própria história dos regulamentos autônomos: “Ao se iniciar o enfraquecimento das Monarquias na Europa, das quais foi sendo retirado o poder legislativo e transferido aos Parlamentos, considerou-se, à época, que os assuntos de administração não eram ‘matéria de lei’, mas objeto de competências interna dos reis, ou seja, do próprio Executivo, que sobre ela dispunha por meio de atos denominados ‘ordenanças’. Com efeito, o objeto da lei, segundo a concepção da época, era a disciplina da liberdade e da propriedade – assunto que parecia substancialmente distinto das disposições preordenadas à regência do aparelho estatal ou de questões que na Alemanha eram havidas como pertinentes à chamada

‘supremacia especial’ da Administração. Dessarte, regulamentos que dispunham sobre assuntos referidos eram então estranhos ao que, nos Direitos Europeus, chamou-se de

‘reserva de lei’. Podiam, por isto, independentemente de lei, ser editados pelo Executivo.

Tais regulamentos é que são os regulamentos independentes ou autônomos, pois, ao contrário dos regulamentos executivos, não dependiam de lei alguma e expressavam um poder autônomo do Executivo. Se tais regulamentos foram havidos como uma expressão de poderes naturais do Executivo, mais tarde vieram a ter previsão constitucional expressa.

Assim, por exemplo, na França, onde seu âmbito é o mais amplo possível, o art. 34 da Constituição de 1958 menciona questões que são ‘matérias de lei’, e no art. 37 se diz que tudo que não estiver incluído como matéria de lei é matéria de regulamento” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo cit., p. 350). No mesmo sentido, são as lições de: CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo no Estado Contemporâneo e na Constituição de 1988 cit., p. 240; MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira. Princípios gerais de direito administrativo cit., p. 359-360; GASPARINI, Diogenes.

Poder regulamentar cit., p. 276. Esses dois últimos ainda classificam os regulamentos autônomos em “orgânicos ou organizacionais” (voltados para o regramento da estrutura e dos órgãos da Administração Pública, de suas repartições e de seus agentes);

“regulamentos regimentais” (destinados à regulação dos serviços públicos e das condições em que podem ser usufruídos pelos administrados) e “regulamentos policiais” (cuja finalidade volta-se para a ordem e para a segurança da coletividade na medida em que estipulam preceitos sobre salubridade pública e preservação da liberdade e propriedade dos particulares).

Executivo, motivo pelo qual a lei em sentido formal não o limita, nem mesmo pode cuidar do tema que lhe foi conferido”.34 Complementa ainda o autor ao afirmar que essa espécie de regulamento “é típico ato primário, voltado a dar cumprimento diretamente à constituição, que lhe reserva matérias exclusivas, excluídas do âmbito de normatividade da lei”.35 Há divergências sobre a existência dessa espécie regulamentar no sistema jurídico brasileiro.

Por fim, os chamados regulamentos de necessidade ou de urgência constituem uma quarta espécie de regulamento que se qualifica pela possibilidade de o Poder Executivo, diante de circunstâncias excepcionais graves e urgentes, se investir de competência legislativa para tratar de matérias reservadas ou não à lei. A doutrina, em sua unanimidade, assevera que tais espécies de regulamento inexistem no sistema de direito positivo brasileiro.

Como se sabe, diante de circunstâncias urgentes e relevantes, o Poder Executivo estará habilitado a instituir medidas provisórias que expressam, como abordado, um exercício de função legislativa inaugural, e não regulamentar. Na edição de medida provisória, confere-se em caráter inaugural a possibilidade de o Poder Executivo criar direitos e obrigações. Ademais, a instituição desse instrumento normativo exige, mesmo que em momento posterior, a participação do Poder Legislativo, constatação que impede seu enquadramento como um típico exercício de “competência regulamentar”, haja vista esta última exigir uma participação exclusiva de órgãos da estrutura administrativa.

Portanto, se bem apreendida essa classificação e ao se considerarem as definições do termo “regulamento”, pode-se desde logo perceber que, enquanto parte dos autores considera que os regulamentos no direito brasileiro destinam-se estritamente “ao desenvolvimento da lei”, “à regulação do modo de aplicação da lei” e “à execução da lei”, outros admitem, para além dessa

34 FRANCISCO, José Carlos. Função regulamentar e regulamentos cit., p. 269.

35 Idem, ibidem.

estreita função, a possibilidade de o regulamento “regular matéria a ela [à lei]

reservada” ou “prover situações não disciplinadas em lei”. Consequentemente, não é difícil inferir que, enquanto aqueles primeiros reconhecem somente a existência de regulamentos de execução36 – admitindo-se tão só uma relação de subordinação do regulamento para com a lei –, esses últimos acolhem, além dos regulamentos de execução, os chamados regulamentos independentes ou autônomos – concebendo também uma relação de compatibilidade dos regulamentos com a lei.

Esse debate se funda essencialmente na compreensão da extensão do princípio da legalidade e do primado da separação dos poderes. Para os juristas que admitem tão somente a existência de regulamentos de execução, o sistema jurídico brasileiro não teria acolhido a possibilidade de o Poder Executivo laborar, em caráter inaugural e exclusivo, sobre determinadas matérias para veicular direitos e obrigações. Nessa linha de compreensão, são os ensinamentos de Geraldo Ataliba:

É próprio da lei o criar, extinguir ou modificar normativamente direitos, de modo inauguralmente inovador. Só o órgão legislativo, no nosso sistema, tem competência para modificar, no plano normativo, a ordem jurídica. Só os órgãos

“representativos” podem instaurar ou suprimir direitos ou situações genéricas e abstratas [...]. Daí a impossibilidade de existência, no nosso sistema, de regulamentos autônomos.

Estes têm cabimento em sistemas como o francês, onde ao Executivo se reservam áreas de atuação normativa.37

36 No que diz respeito aos designados “regulamentos autorizados, habilitados e delegados”, importa ressaltar que esses autores acabam por também considerar tais regulamentos como verdadeiros “regulamentos subordinados, de execução ou executivos”. Asseveram, pois, que nessas situações somente ocorre uma ampliação da matéria regulamentar conferida aos cuidados do Poder Executivo, estando ainda este subordinado aos preceitos da lei. Portanto, compreendem, na prática, que os regulamentos autorizados são verdadeiros regulamentos executivos em virtude de, em qualquer caso, para serem válidos, terem de estar vinculados à lei elaborada pelo Legislativo em sua competência constitucional. Pensamos, contudo, que a distinção é relevante, primordialmente quando averiguamos a temática no campo tributário, pois, como relatamos, os tributos extrafiscais e regulatórios (II, IE, IPI, IOF) e a chamada “Cide-combustível” possuem suas alíquotas delineadas por atos do Poder Executivo. Dessarte, reputamos relevante realizar essa distinção até mesmo para discriminar esses atos regulamentares daqueles outros atos de execução tradicionalmente voltados para o desenvolvimento do conteúdo das leis.

37 ATALIBA, Geraldo. Liberdade e poder regulamentar cit.

Também Celso Antônio Bandeira de Mello, apesar de reconhecer a figura dos regulamentos independentes ou autônomos no direito alienígena, relata que no direito positivo brasileiro os dispositivos constitucionais caracterizadores do princípio da legalidade impõem ao regulamento o caráter de “ato estritamente subordinado, isto é, meramente subalterno e, ademais, dependente de lei”.38

Em contrapartida, Diógenes Gasparini e Hely Lopes Meirelles concebem a possibilidade de o Presidente da República, por meio de regulamento, regular matéria que lhe fora reservada pela Constituição.

Admitem, pois, a existência de regulamentos independentes e autônomos.39

Esse tipo de análise referente às espécies e possíveis finalidades dos regulamentos somente pode ser feita quando confrontada com um determinado sistema de direito positivo válido e vigente em um determinado espaço e tempo. Pode ser que no ordenamento jurídico francês exista o chamado regulamento independente, mas isso não quer dizer que essa espécie regulamentar necessariamente estará presente no ordenamento brasileiro. Do mesmo modo, ordens constitucionais pretéritas podem ter concebido um exercício de competência normativa inaugural a título de exclusividade ao Presidente da República, mas isso não significa que a atual ordem constitucional trilhe pelo mesmo caminho. Portanto, fica claro que todas essas questões devem ser assimiladas perante o sistema constitucional e infraconstitucional vigente no País. É o que se buscará empreender no item subsequente.

No documento Competência Regulamentar Tributária (páginas 30-35)