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Os deveres instrumentais tributários e os regulamentos

No documento Competência Regulamentar Tributária (páginas 72-81)

CAPÍTULO 2 – DA COMPETÊNCIA REGULAMENTAR TRIBUTÁRIA

2.4 Os deveres instrumentais tributários e os regulamentos

Como se sabe, o exercício do poder impositivo fiscal tem como propósito essencial exigir dos particulares (contribuintes) certas somas de dinheiro para custear as chamadas despesas públicas. Todavia, para além dessa obrigação de “pagar uma quantia em dinheiro” que surge diante da ocorrência de certos fatos lícitos eleitos pelo legislador, ora presuntivos de

capacidade contributiva e fecundidade econômica (impostos), ora delineadores de uma atuação estatal (taxas e contribuição de melhoria), o exercício do poder tributário engloba ainda a exigência de uma série de deveres jurídicos direcionados ao contribuinte ou, até mesmo, a terceiros, que se consubstanciam em prestações de “fazer” ou “não fazer”.76

Tais exigências fiscais, por distinguirem-se da obrigação principal de

“entregar dinheiro aos cofres públicos”, são comumente designadas como

“obrigações acessórias” e voltam-se tanto para a viabilização do cumprimento da própria prestação tributária principal como para o seu controle e fiscalização.77 São exemplos as obrigações de emitir notas fiscais, preencher declarações, registrar mercadorias que entram ou saem do estabelecimento empresarial, escriturar livros contábeis, suportar a fiscalização do Fisco, fornecer documentos às autoridades, entre outras.

Acerca do assunto, preleciona Paulo de Barros Carvalho78 que no conjunto de prescrições normativas que interessam ao Direito Tributário podem-se encontrar tanto relações de substância patrimonial, as quais identifica com a própria “obrigação tributária” voltada à realização dos anseios do Estado, quanto vínculos que fazem irromper meros “deveres administrativos” consistentes num “fazer” ou “não fazer” e preordenados a facilitar o conhecimento, o controle e a arrecadação de tributos.

76 Sobre a temática, Giuliani Fonrouge destaca que, embora o exercício do poder tributário tenha como propósito essencial exigir dos particulares o pagamento de certas somas de dinheiro – ou quantidade de coisas –, se os tributos forem em espécie, há situações em que o legislador, efetivamente, impõe ao contribuinte e ainda a terceiros o cumprimento de múltiplos atos e abstenções, tendentes a assegurar e facilitar o lançamento e recolhimento dos tributos, motivando discrepâncias na apreciação dos seus vínculos com a obrigação de pagar (FONROUGUE, Giuliani. Conceitos de direito tributário. São Paulo: Lael, 1973. p. 79).

77 Roque Carrazza, pautado nas lições de Renato Alessi, distingue deveres instrumentais preparatórios (voltados para o fornecimento de dados aos órgãos administrativos aptos a conduzi-los à exata fixação do quantum debeatur da obrigação tributária), dos deveres instrumentais de polícia tributária (destinados a possibilitar uma fiscalização mais atuante, prevenindo e combatendo a fraude e a evasão). Enquanto estes recaem com maior frequência sobre pessoas diversas do sujeito passivo da obrigação tributária, aqueles outros, na maioria dos casos, incidem sobre o próprio contribuinte (ao fazer, por exemplo, uma declaração de renda) (CARRAZZA, Roque Antonio. O regulamento no direito tributário.

São Paulo: RT, 1981. p. 27).

78 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário cit., p. 289-290.

Nesse sentido, na linha dos ensinamentos do eminente professor,79 a expressão “obrigações assessórias” é equivocada na medida em que tais vínculos não têm natureza obrigacional por faltar-lhes conteúdo dimensível em valores econômicos, tampouco são acessórios, haja vista nem sempre estarem subordinados à existência de obrigação principal (vide, por exemplo, as situações nas quais as entidades imunes estão obrigadas a entregar declarações e prestar informações, ainda que não exista obrigação principal).

Mais correta, portanto, na esteira do pensamento de Barros Carvalho seria o uso da expressão “deveres instrumentais ou formais tributários”. “Deveres”, pois não têm essência obrigacional. “Instrumentais ou formais”, porque, tomados em conjunto, é o instrumento de que dispõe o Estado-Administração para o acompanhamento e consecução dos seus desígnios tributários.

Não obstante a procedente vindicação doutrinária, o Código Tributário Nacional, ao dispor sobre a “obrigação tributária”, valeu-se da expressão tradicional “obrigação acessória” para diferenciá-la da “obrigação principal”, o que o fez nos seguintes termos do art. 113 do referido diploma:

Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.

§ 1.º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.

§ 2.º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.

§ 3.º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.

Da análise do dispositivo transcrito pode-se notar que o legislador, além de se valer de uma linguagem pouco técnica, concebeu uma má redação ao § 3.º do artigo, já que, em verdade, a inobservância da chamada “obrigação acessória” irrompe o surgimento de um vínculo de natureza sancionatória (cujo

79 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário cit., p. 289-290.

objeto é uma penalidade pecuniária). Assim, em nada se confunde com a obrigação principal de “pagar o valor do tributo”.

De qualquer forma, a preocupação de que ora se trata, consistente na aferição do modo como os regulamentos – atos administrativos normativos – repercutem nos vínculos de cunho instrumental, perpassa pela compreensão do § 2.º do supracitado artigo. Prevê esse dispositivo que a obrigação acessória decorre da “legislação tributária” e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no “interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos”. Paralelamente, dispõe o art. 96 do mesmo diploma que a “a expressão ‘legislação tributária’ compreende as leis, os tratados e as convenções internacionais, os decretos e as normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles pertinentes”. E, de forma correlacionada, estipula o art. art. 100 que são normas complementares:

I – os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas; II – as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa, a que a lei atribua eficácia normativa; III – as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas; IV – os convênios que entre si celebrem a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

Poder-se-ia questionar, a par desses enunciados do CTN, se, afinal, os deveres instrumentais tributários necessariamente hão de ser criados por meio de Lei Ordinária (fruto do labor legislativo) ou se, pelo contrário, poderiam ser veiculados por atos infralegais, dado que “decorrem da legislação tributária”, expressão que compreende as “normas complementares” e que, por sua vez, abarca os “atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas”.

Roque Antonio Carrazza80 é incisivo ao asseverar que, diante do princípio da legalidade que domina e informa nosso Direito, primordialmente na seara tributária (arts. 5.º, II, e 150, I, da CF/1988), os deveres instrumentais

80 CARRAZZA, Roque Antonio. O regulamento no direito tributário cit., p. 43.

tributários não podem ser definidos mediante atividade regulamentar. Relata o autor81 que, embora tais deveres sejam desprovidos de conteúdo patrimonial, o seu cumprimento enseja uma série de custos para o contribuinte, uma vez que precisa mobilizar pessoal, efetuar gastos (adquirindo livros, mandando imprimir notas fiscais), dispor de espaço (para acondicionar as guias de recolhimento, para possibilitar aos agentes do Fisco o exame da documentação), contratar mão de obra especializada (contadores, advogados, economistas) e assim por diante. Não bastasse isso, destaca ainda que o descumprimento desses deveres se resolve com sanções das mais diversas espécies (inclusive pecuniárias). Assim sendo, a ordem jurídica não permitiria que uma pessoa viesse a ser compelida a pagar multas decorrentes do não acatamento de deveres criados por via regulamentar.

Os regulamentos, portanto, conforme as lições de Carrazza, 82 somente estão habilitados a traçar os “pormenores normativos de ordem técnica” para dar condições à exata aplicação dos deveres instrumentais tributários.

Já se ressaltou que a complexidade dos acontecimentos da realidade social é inalcançável em sua integralidade pela lei geral e abstrata. A captação do fato com suas peculiaridades perpassa antes pela observância de certos parâmetros, seja pelo contribuinte no cumprimento de suas obrigações acessórias, seja pela autoridade administrativa na tarefa de aplicar a lei.

A uniformidade do cumprimento dos deveres pelo contribuinte e da aplicação das leis pelos órgãos fiscais é um imperativo de segurança jurídica.

Não se imaginaria, por exemplo, que dois contribuintes, em idêntica situação jurídica e sujeitos a uma mesma lei que os obrigasse a emitir notas fiscais, assim o fizessem cada um deles em notas de tipo, modelo e formas distintas, com preenchimento diferenciado dos itens e com procedimento de registro diverso. A ausência de critérios orientadores abriria um leque de opções e de

81 CARRAZZA, Roque Antonio. O regulamento no direito tributário cit., p. 45.

82 Idem, p. 46.

possibilidades anômalas no cumprimento do dever instrumental. Mais uma vez, servir-nos-emos das inolvidáveis lições de Roque Antonio Carrazza:

[...] o regulamento existe para tornar efetivo o cumprimento do dever instrumental tributário criado pela lei. Nada mais. Assim, se ela obriga uma classe de comerciantes a manter livros fiscais é o regulamento que irá dizer qual o tipo, o tamanho e o modelo dos mesmos e qual a forma de preenchê-los, de molde a facilitar-lhes o manuseio.83

Para parte da doutrina, é essa a função por natureza dos atos regulamentares quando se reportam aos deveres instrumentais: veicular preceitos de pormenorização técnica e procedimental para tornar efetivo seu cumprimento. Sob essa perspectiva, nem mesmo com consentimento e autorização da Lei a Fazenda Pública pode estipular esses deveres. Pelo contrário, o texto legal deve determinar a natureza jurídica do dever instrumental tributário, bem como sua estrutura fundamental, sob pena de agredir o princípio da reserva de lei.

Por outro lado, há quem compreenda que a legalidade não restaria afrontada se a própria lei conferisse competência a certas e determinadas autoridades administrativas para que instituíssem os deveres instrumentais tributários. Nessa linha de entendimento, Luís Eduardo Schoueri84 assevera que, diferentemente da obrigação tributária principal que deve ser prevista em lei, a obrigação acessória decorre da “legislação tributária” e isso significa que o Poder Executivo, quando autorizado, pode editar normas no interesse da arrecadação que deverão ser cumpridas pelo contribuinte. Tais normas complementares, registra o autor, devem ser editadas tão somente quando necessárias para assegurar o cumprimento da obrigação tributária principal, de modo que eventual desvirtuamento nesse interesse poderá sujeitar a norma ao controle do Poder Judiciário.

83 CARRAZZA, Roque Antonio. O regulamento no direito tributário cit., p. 44.

84 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 490.

Na mesma linha, Leandro Paulsen85 dispensa a necessidade de lei em sentido estrito para o estabelecimento de obrigações acessórias sob a justificativa de que elas não limitam a liberdade do contribuinte, tampouco operam ingerência sobre o seu patrimônio, mas constituem tão somente deveres formais, inerentes à regulamentação das questões operacionais da cobrança do tributo.

A questão não é de fácil desate. De fato, os deveres instrumentais, embora sejam desprovidos de um conteúdo patrimonial, geram elevados custos econômicos para os contribuintes (são os chamados custos de conformidades, compliance costs) que implicam um acréscimo invisível na carga tributária.86 Em um ambiente tributário marcado pela “privatização da gestão tributária”,87 verifica-se um progressivo aumento da delegação desses deveres formais (que, em princípio, deveriam estar a cargo da própria Administração Pública) aos particulares.

Não bastasse isso, poder-se-ia imaginar que, com os avanços obtidos nos campos da informática e na gestão eletrônica de dados, tais obrigações reduzir-se-iam. Muito pelo contrário. Crava Schoueri 88 que, embora a informatização da Administração Pública – e em especial da Administração Tributária – devesse levar a uma simplificação e racionalização do processo de arrecadação, paradoxalmente cresceu a exigência de deveres instrumentais.

Relata o autor que a cada passo em direção à informatização, novas

85 PAULSEN, Leandro. Direito tributário. Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e jurisprudência. 6. ed. Livraria do Advogado, 2004. p. 889.

86 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário cit., p. 485.

87 A expressão pertence a José Juan Lapatza (LAPATZA, José Juan Ferreiro. La privatización de la gestión tributaria y las nuevas competências de los tribunales económico-administrativos. REDF, Madrid, v. 37, p. 81 e ss. apud HORVATH, Estevão. Lançamento tributário e “autolançamento”. São Paulo: Dialética, 1997. p. 71).

88 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário cit., p. 492. No mesmo sentido, Thaís Helena Morando, ao apontar a superação da “franciscana” e elementar concepção de obrigações acessórias verificada no passado atrelada ao dever de escriturar notas e livros, destaca que contemporaneamente diante da intensificação do uso de eletrônicos e da informatização houvera um acréscimo no custo do cumprimento de tais obrigações (MORANDO, Thais Helena. A natureza jurídica da obrigação tributária acessória e os princípios constitucionais informadores. 2010. Tese (Doutorado em Direito Tributário) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p. 14-15).

informações são exigidas, ou planilhas devem ser preenchidas, para atender aos novos passos.

Todos esses apontamentos de feitio econômico ou de logística e gestão de dados são relevantes para pensar o tema das “obrigações acessórias”. Permitem que os cidadãos (contribuintes em geral, pessoas físicas, empresas, advogados, contadores, acadêmicos) e os próprios agentes em suas funções institucionais (auditores fiscais, procuradores, magistrados, servidores públicos em geral) possam verificar problemas e propor soluções eficientes aos agentes políticos.

Sob a perspectiva jurídica, contudo, aquela que toma o sistema de direito positivo como norte de referência, o desempenho de uma competência há de estar autorizado por normas predispostas no próprio ordenamento.

Nessa linha, aqui, o deslinde da problemática funda-se na regra da legalidade tributária prevista no subsistema constitucional tributário (arts. 5.º, II, e 150, I).

Aliás, os deveres instrumentais podem ser criados por regulamentos?

Pensamos que a Administração Pública não pode criar, a seu bel-prazer e de acordo com seu juízo de oportunidade e conveniência, deveres instrumentais tributários. Nos termos da Constituição Federal (arts. 5.º, II, e 150), essas “obrigações” de “fazer” e “não fazer” devem ser fixadas por um dos instrumentos legislativos previstos no art. 59 da CF.89 Assim, cremos ser inconstitucionais “delegações disfarçadas” que atribuam a órgãos atrelados da Administração Pública, em termos genéricos e amplos, a competência para a criação de deveres instrumentais quaisquer sem o delineamento da matriz originária desses deveres em lei. A título de exemplo, pode-se citar o art. 16 da Lei 9.779/1999, cuja disposição concebe habilitação à Secretaria da Receita Federal para dispor sobre obrigações acessórias relativas aos impostos e

89 Também é esse o entendimento de Renato Lopes Becho (cf. BECHO, Renato Lopes. Lições de direito tributário. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 497).

contribuições por ela administrado com a atribuição, ainda, de estabelecer a forma, o prazo e as condições para seu cumprimento.90

Como verificado, parte da doutrina, com respaldo no art. 113, § 2.º, do CTN, aponta que a expressão “legislação tributária” disposta no enunciado permitiria a veiculação de obrigações acessórias por meio de atos normativos infralegais, bastando que essas obrigações decorressem de uma autorização legal. Não compactuamos desse entendimento. Delegações imprecisas e abrangentes, como a citada, conferem à autoridade administrativa verdadeira atribuição normativa para criar obrigações e deveres referentes a determinados temas. Criou-se no caso em comento hipótese não autorizada de instrução normativa autônoma. Não faz mal relembrar que o cumprimento de tais

“obrigações acessórias” geram elevados custos aos contribuintes e afetam, assim como o valor do tributo em si, a sua propriedade.

Ressalva-se que não se está a defender que todo o disciplinamento da atuação de arrecadar e fiscalizar da Administração Tributária esteja previsto em lei. Esse entendimento levaria à conclusão de que os regulamentos, no campo dos deveres instrumentais tributários, seriam dispensáveis e inúteis. O que se está a sustentar é que, ao menos, os contornos básicos e as noções gerais dos deveres instrumentais estejam delineados em lei. Claro que a Fazenda Pública poderá, por imperativo de segurança jurídica e isonomia na aplicação dessas leis, estipular alguns pormenores de ordem técnica e outros parâmetros de condutas a serem observados. Por vezes, arrisca-se a dizer que somente os próprios órgãos administrativos tributários diretamente vinculados a essas realidades é que possuem a proximidade, a capacidade operacional e o conhecimento técnico suficientes para dispor sobre questões específicas do procedimento de cobrança, arrecadação e fiscalização. No entanto, reitera-se, delegações como a supracitada que tão somente conferem certa habilitação em caráter amplo para que determinado órgão administrativo crie qualquer obrigação acessória parece-nos flagrantemente inconstitucional.

90 “Art. 16. Compete à Secretaria da Receita Federal dispor sobre as obrigações acessórias relativas aos impostos e contribuições por ela administrados, estabelecendo, inclusive, forma, prazo e condições para o seu cumprimento e o respectivo responsável.”

No documento Competência Regulamentar Tributária (páginas 72-81)