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6.2 MOTIVAÇÕES

6.2.3 Classificados como profundos

Nos participantes classificados como voluntários profundos, era esperado que fossem encontradas predominantemente motivações interpessoais. VI2 havia feito sua primeira viagem de turismo voluntário em junho de 2018 para a África do Sul por 3 semanas e em janeiro de 2019 embarcou para um programa na Tailândia por 2 semanas que acabou emendando com as 2 semanas do programa na Índia, portanto já tinha alguma experiência prévia com esse tipo de viagem. Perguntada sobre como surgiu a vontade de realizar na primeira vez as viagens de turismo voluntário, respondeu:

Eu sempre fui de fazer. Na minha cidade, em Minas, eu fazia bastante em asilo e também para casas de deficiente. A gente se fantasiava, ia brincar com eles. Quando eu fui para São Paulo, eu comecei a fazer também com a faculdade. Eu falei “Eu quero ter uma experiência diferente”, porque eu gosto muito de viajar e eu achei que, talvez,

essa experiência ia mudar muito a minha vida. Porque eu ia conhecer mais a cultura do lugar, e também eu ia conhecer várias pessoas. E eu não tinha companhia para viajar. Eu falei “Quer saber, eu vou sozinha” (VI2).

Destacam-se as motivações de interesse em viajar, conhecer novas culturas e criação de laços de amizade. Há também uma expectativa de mudanças/transformações decorrentes dessa imersão cultural e contato com diferentes pessoas, relacionado a motivações interpessoais. Sobre o que achou da primeira viagem de turismo voluntário:

A primeira que eu fiz eu percebi que era muito legal. Eu conheci várias pessoas legais. E a maioria das minhas melhores amigas eu conheci em intercâmbio. Porque as pessoas foram com o mesmo propósito, são pessoas com os mesmos pensamentos de querer ajudar. Então foram pessoas que eu me identifiquei muito. Por isso que eu amei esse tipo de viagem e não quero parar de fazer (VI2).

Percebe-se que a formação dos vínculos com outros turistas voluntários era fortalecida por serem indivíduos norteados pelo mesmo propósito o qual, na percepção da entrevistada, era o de querer ajudar. Segundo McGehee e Santos (2005), o conceito de grupo é potencializado durante esse tipo de viagem sendo favorável para o surgimento de experiências voltadas para o outro, tanto para as comunidades onde estão atuando, quanto para os demais colegas. Como resultados, podem surgir redes de relacionamento, o incentivo ao engajamento com movimentos sociais e a conscientização. Após retornar da sua primeira viagem, VI2 menciona: “Até a Carol, que estava na minha sala, eu contei para ela e ela ficou ‘Quero fazer também’. Depois de um certo tempo, ela também já foi para outra viagem. Foi super legal (VI2)”.

Expostas as motivações para ter começado a procurar viagens de turismo voluntário, tentou-se compreender como que havia surgido o costume de voluntariar, visto que VI2 havia dito que sempre fazia na sua cidade. Questionada de sua família também tinha envolvimento com o voluntariado, respondeu:

É que a nossa vida é, praticamente, voluntariado. Meus pais são sempre muito solidários. Por exemplo, mesmo no serviço que meu pai tem, a gente tenta pegar as pessoas que estão realmente precisando, passando muita necessidade. Tem lugares em que a gente constrói casa para as pessoas ficarem enquanto elas estão trabalhando. E minha mãe sempre achou muito importante. A gente sempre foi muito de doar tudo, de receber muitas pessoas. Eu cresci com isso e para mim sempre foi um pensamento que isso é importante (VI2).

Na resposta acima fica destacada a visão do outro que VI2 desenvolveu durante o convívio e crescimento com a sua família. É algo que, segundo ela, já faz parte da sua pessoa, estando presente em sua rotina. Embora os autores pesquisados nesse trabalho não explorem o papel das famílias no desenvolvimento de valores e norteadores morais para a prática do

voluntariado, é importante ressaltar o papel que elas e outras instituições como escolas, centros religiosos ou agremiações podem ter para a procura desse tipo de atividade.

Questionada para essa viagem em específico, o que a motivou a se inscrever para ela, VI2 comenta:

Eu acho que pela necessidade das pessoas principalmente. E a cultura é linda. Era meu sonho conhecer. Também acho que a gente vê muito na internet, mas presenciar tudo isso é diferente. Tem muito mais coisas que, às vezes, ficam escondidas, que ninguém pensa que existe. Só de ter o propósito de ir, de ajudar e de melhorar a vida das pessoas, que são pessoas como a gente (VI2).

Para a viagem da Índia, há a presença de motivações pessoais como viajar e conhecer o destino, mas as motivações interpessoais voltadas para dar algo em troca, ajudar o próximo e imersão cultural estão mais fortemente presentes.

Diferente de VI2, que já havia participado de outras viagens de turismo voluntário, VI4 estava iniciando sua primeira. Já participava de ações voluntárias na sua cidade e foi por meio de uma colega que havia feito uma viagem de turismo voluntário para a Colômbia que ficou conhecendo sobre esse tipo de experiência:

Antes eu já fazia um trabalho voluntário, porque as minhas amigas elas têm um projeto, e a gente se fantasiava de super-herói, princesas, e íamos em hospitais, creches uma vez por mês. Só que como a rotina estava muito puxada, eu acabei me afastando um pouco, mas sempre ficava pesquisando projetos, porque era o meu sonho fazer um intercâmbio voluntário. [...] Eu tinha uma colega na escola que eu vi que ela foi para a Colômbia. Ela tinha ido para a Colômbia fazer um intercâmbio voluntário, mas acho que não foi com vocês. Aí eu pesquisei e conheci a empresa de vocês. Eu sempre ficava olhando o site, mas eu tinha medo de ir sozinha, não conseguir desenvolver. Eu era muito insegura de ficar sozinha no projeto. Quando eu vi que era um grupo, meu deus do céu, foi tipo, clareou tudo (VI4).

O fato da viagem ser divulgada como uma experiência em grupo dá segurança e confiança para participantes de primeira viagem, assim como mencionado antes por VI6 e aqui por VI4. Outros entrevistados também mencionam o sonho de conhecer o destino, enquanto VI4 fala no sonho de fazer o intercâmbio voluntário. Questionada então sobre o que a motivou a ir em busca desse sonho, responde:

Não mudar o mundo, mas aquilo que eu falei, eu tenho dois braços e duas pernas, tenho saúde. Sou meio doidinha, mas eu tenho saúde e eu posso, então eu posso ajudar alguém que não têm as mesmas condições. Graças a Deus eu tenho uma condição. Então se alguém não tem, eu posso fazer por ele. Sempre foi um sonho muito grande para mim. Eu fiquei muito feliz de que poderei realizar, é um sonho fazer um intercâmbio voluntário. Por mais que eu já tivesse trabalhado como voluntária, eu queria ter essa imersão em uma cultura desconhecida. Sair da minha zona de conforto (VI4).

Pela resposta percebe-se uma visão muito voltada para o outro, a realização do sonho não para algo pessoal, mas para retribuir os privilégios que possui e que são percebidos por ela. Essa capacidade de perceber uma condição privilegiada, necessita primeiramente perceber que há uma condição de desigualdade perante o outro. A percepção por si só, no entanto, não resulta necessariamente em uma ação para buscar reduzir essas desigualdades. É então que a busca pelo turismo voluntário pode ser vista como um meio para agir sobre elas. A ação aparece na resposta de VI4 quando perguntada como definiria a motivação principal para buscar as viagens de turismo voluntário: “É bem clichê, mas é ser a mudança que eu quero ver no mundo (VI4)”. Por último, VI8 que também participa de ações de voluntariado em sua cidade, por meio de uma agremiação, tinha um impeditivo para esse tipo de viagem com relação ao idioma, pois possui apenas o inglês básico. Perguntado sobre como optou por participar na viagem da Índia, comentou que o interesse começou por uma viagem no Brasil:

Eu estava namorando e assim a gente sempre falava, eu e a minha namorada, ex- namorada agora, sobre fazer trabalho voluntário e tal e eu sempre... eu já fiz trabalho voluntário no passado em muita coisa, se você for fazer uma pergunta eu posso até falar disso depois, mas uma coisa que eu gosto muito de fazer é viajar também. [...] Aí eu fui pesquisar alguma coisa sobre trabalho voluntariado no exterior assim, mas muito aleatório e tipo eu realmente não sabia que ia achar vocês. Aí eu vi sobre a Amazônia, só que eu não sei falar inglês, esse que é o problema, aí eu falei: “Pô, não dá cara, não dá para fazer trabalho voluntário fora porque eu não sei falar em inglês, o meu inglês é muito ruim”. Aí eu vi que vocês estavam com um projeto na Amazônia, eu falei: “Pô, eu vou na Amazônia que é mais tranquilo, eu sei falar e tal, mas eram apenas 4 dias. Aí eu falando com um de vocês, disseram que não tinha necessidade de falar inglês na Índia, e ele botou alguns países lá, a Índia, Gana e o Peru, aí eu falei: “Pô, eu queria ir muito para a Índia, cara, mas eu não sei falar inglês, fica meio ruim isso e tal”, aí ele falou assim: “Não precisa falar inglês vai ter uma pessoa responsável lá que sabe falar e tal, vai ter um guia que sabe falar português e tal, vai te ajudar”. Então eu escolhi ir para a Índia (VI8).

O conhecimento do inglês inicialmente era uma preocupação e a viagem para a Amazônia era por um período considerado muito curto. Assegurado de que haveria um acompanhamento da agência para os voluntários que não tinham domínio de outra língua, a viagem da Índia se mostrou a opção pela qual ele mais se interessou. Segundo ele, as motivações que o levaram a isso estão ligadas à percepção de que podemos fazer mais pelos outros ao reavaliarmos nossas prioridades:

Então, eu aqui no Rio Janeiro eu vivo nessa rotina aqui, trabalho, e eu me sinto tão limitado assim, tipo, a mentalidade das pessoas, tipo, a gente convive numa futilidade tão grande, sabe, as prioridades são tão banais assim e a gente fica questionando às vezes: “Caralho, meu Deus, cara, tem tanta gente com problemas muito maiores e a gente reclamando de coisas tão idiotas”, sabe? E a gente fica naquele questionamento

e fala assim: “Que merda isso”, as pessoas fazendo selfie numa piscina querendo mostrar algo que não é real. [...] eu quero mudar a minha cabeça, eu quero expandir a minha mente, sabe, eu quero, tipo conhecer, por isso que eu digo que parece que eu estou fazendo por mim, eu me sinto mal por isso. Obvio que eu quero me dedicar, eu quero melhorar a vida de pessoas e, assim, eu vou dar o melhor de mim para isso (VI8).

O desejo de expandir a visão de mundo, a conscientização com os problemas alheios e a relativização dos próprios problemas poderiam indicar motivações pelo crescimento pessoal, mas no caso de VI8 não parecem estarem atrelada ao benefício próprio e sim a uma dimensão mais ampla: a sociedade. Lange (2004) fala sobre o processo de conscientização, citando Paulo Freire, que é facilitar o entendimento de que as relações de dominância e alienação podem ser modificadas. Apesar de começar em um nível pessoal e individual, essas transformações teriam o potencial de atingir o nível societal, por isso, a fala de VI8 pode ser classificada predominantemente em motivações interpessoais. Para dar mais embasamento a essa classificação, o entrevistado foi questionado sobre o que esperava dessa viagem:

Cara, eu espero conhecer pessoas que tenham uma mentalidade maneira assim, interagir com uma galera legal, que tenham uma cabeça boa nesse sentido assim que mencionei antes, que pensem mais igual a mim assim, sabe? Formar um grupo maneiro de pessoas que tenham mais essa visão pra conhecer a cultura. Enfim, eu quero ter uma inserção cultural também. É isso que eu espero (VI8).

As amizades e formação de grupos se relacionam ao relatado por Coughlan e Gooch (2011) ao abordar o conceito do coletivo, que permite a criação de redes de relacionamento, parcerias locais, regionais e globais com potencial de gerar impactos além do nível pessoal. Perguntado qual seria a motivação principal, se pudesse definir com apenas uma palavra, termo ou frase: “Caraca, uma palavra. Altruísmo (VI8)”. Assim, as motivações dele aparecem de fato a tender mais para o lado interpessoal do espectro.

Os achados nas respostas dos entrevistados parecem estar de acordo com o relatado por Wearing e McGehee (2013) quando dizem que as motivações dos turistas voluntários são fluídas, podendo para uma única pessoa, oscilar em um espectro de extremos egoísticos e altruísticos. Mesmo os turistas voluntários rasos podem possuir motivações interpessoais e os profundos terem motivações pessoais. Não se presume, portanto, categorizar as motivações dos participantes da viagem à Índia de forma definitiva e rígida, mas sim verificar os relatos dados em determinado momento, para uma viagem específica em um contexto mutável por experiências de vida, expectativas pessoais e inúmeras outras variáveis que podem se modificar e apresentar outros resultados em análises de outras viagens futuras.