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4.3 ANÁLISE TEXTUAL

4.3.4 Verbo auxiliar modal

4.3.4.1 Coesão

A arquitetura do texto se dá por meio de mecanismo de referência e substituição (identidades sociais e convenções); é a coesão, que tem o papel importante, por meio de ligações das orações e frases, de dar unidade aos textos. Em geral pode-se utilizar vocabulário de um mesmo campo semântico, repetição de palavras, bem como o uso de sinônimos próximos.

Para Fairclough (2008), os marcadores coesivos não podem ser vistos apenas como propriedades objetivas dos textos, mas “têm de ser interpretados pelos intérpretes de textos como parte do processo de construção de leituras coerentes do texto”.

A ideia de Fairclough possibilita entender que a coesão é bastante eficaz. O sentido é o de compor as partes que compõem a estrutura de um edifício: devem estar bem conectadas e bem "amarradas", para que o texto cumpra sua função primordial; ele será então um veículo de articulação entre o autor e seu leitor.

Essa "amarração" coesiva entre as várias partes do texto, ou seja, o entrelaçamento significativo entre declarações e sentenças é obtida pelas relações de sinônimos, hiperônimos, nomes genéricos e formas elididas. Já a coesão gramatical é conseguida a partir do emprego

adequado de artigo, pronome, adjetivo, determinados advérbios e expressões adverbiais, conjunções e numerais.

Seguem alguns exemplos de coesão:

1. Perífrase ou antonomásia – expressão que caracteriza o lugar, a coisa ou a pessoa a que se faz referência.

Exemplo: “Venho Senhora D, a pedido da Vila, a confissão, a comunhão não quer”?

(HILST, 2001, p. 31). (Pessoa: Senhora D; lugar: vila; referência: confissão).

“Convivo há alguns dias com a senhora P, a porca que escapuliu do quintal de algum [...].” (HILST, 2001, p. 86). (Lugar: quintal; pessoa: Senhora P; referência: convivência)

2. Nominalizações – uso de um substantivo que remete a um verbo enunciado anteriormente. Também pode ocorrer o contrário: um verbo retomar um substantivo já enunciado.

Exemplo: “O mal não foi criado fez-se, arde como ferro em brasa” (HILST, 2001, p.

31). (“O mal” aparece como substantivo, e o verbo “fez-se” remete ao substantivo “o mal”). “Enquanto tu morrias, Ehud, minha carne era tua” (HILST, 2001, p. 53). (O verbo morrias se refere ao substantivo Ehud.)

3. Palavras ou expressões sinônimas ou quase sinônimas – ainda que se considere a inexistência de sinônimos perfeitos, algumas substituições favorecem a não repetição de palavras.

Exemplo: Ehud - eu te olhava, que havias sido minha desde sempre, barro e vasilha,

espelho e amplidão (HILST, 2001, p. 59). (As palavras barro e vasilha aparecem como sinônimos; espelho e amplidão trazem o mesmo sentido.)

Ehud – “[...] verticalidade sempre reprimida, cancela, trinco, tosco cadeado” (HILST, 2001, p. 30) (as palavras: cancela, trinco e tosco cadeado trazem o mesmo significado de fechar).

4. Repetição vocabular – ainda que não seja o ideal, algumas vezes há a necessidade de se repetir uma palavra, principalmente se ela representar a temática central a ser abordada. Deve-se evitar ao máximo esse tipo de procedimento ou, ao menos, afastar as duas ocorrências o quanto possível, embora esse seja um dos vários recursos para garantir a coesão textual.

Exemplo: “Ela Hillé, revisita, repasseia suas perguntas, seu corpo. O corpo dos outros

[...] judiou do corpo” (HILST, 2001, p. 43). (A palavra corpo aparece repetida para sinalizar a sua importância em relação às transformações sofridas com a idade.)

“O tenso que o OUTRO segura, o OUTRO, entendes? Que OUTRO mamma mia?” (OUTRO como repetição vocabular para indicar que a personagem Senhora D está falando de DEUS) (HILST, 2001, p. 53).

5. Um termo-síntese – usa-se, eventualmente, um termo que faz uma espécie de resumo de vários outros termos precedentes, como uma retomada.

Exemplo: Hillé – “É parda, soturna, medrosa, no lombo, uma lastimadura, um rombo

sanguinolento. Hoje pude me aproximar muito lenta, e como diria o sóbrio: pensei-lhe os ferimentos. Roxo-encarnado sem vivez este rombo me lembra minha própria ferida (espessa funda ferida da vida)” (HILST, 2001, p. 87). (A palavra “roxo-encanardo” funciona como termo-síntese para expressar o ferimento da senhora P e da própria Hillé).

6. Pronomes – todos os tipos de pronomes podem funcionar como recurso de referência a termos ou expressões anteriormente empregados. Para o emprego adequado, convém rever os princípios que regem o uso dos pronomes.

Exemplo: “ELE e nós? Não dizem que é PAI” (HILST, 2001, p. 38). (“ELE” é

pronome para se referir a Deus e “nós” está no lugar de Hillé e Ehud).

“Aspirei meus avessos, queria tanto conhecer e agora não só me esqueci do que queria conhecer como também não tenho lembrança do início de todo o esquecimento”. (HILST, 2001, p. 69). (O pronome “meus” se refere aos questionamentos da Senhora D.).

“Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco?” (HILST, 2001, p. 45) (Os pronomes “Senhor” e “tu” estão no lugar de Deus e “nós” se refere a todos os seres humanos.)

“Aquele nada tem a ver com isso, Este aqui dentro nada tem a ver com isso” (HILST, 2001, p. 20). (O pronome “aquele” se refere a Deus; o pronome “isso” tem a ver com a existência da Senhora D; “Este” retoma a indicação que ele se refere a Deus).

7. Numerais – as expressões quantitativas, em algumas circunstâncias, retomam dados anteriores numa relação de coesão.

Exemplo: “vade retro é uma coisa pros dois que estão aí, pros demônios saírem e uma

luz na tua cara tão difusa e em pontas que a boca amanheceu com a luz dos rubis, e vi uma pedra exsudando, um extensor encolhendo, um livro tentando olhar-se e ler-se, um sonho caminhando, uma ponte enterrada” (HILST, 2001, p. 58). (Os numerais “um” e “uma” dão continuidade à ideia da luz para espantar os demônios.)

8. Advérbios pronominais – expressões adverbiais como “aqui, ali, lá, acolá, aí” servem como referência espacial para personagens e leitor.

Exemplo: Senhora D – “não pactuo com as gentes, com o mundo, não há um sol de

Hilda Hilst um espaço fora da narrativa, mas informa também que não existe brilho ou vida fora da casa do sol, lugar onde Hilst morava).

“O que é Derrelição Ehud? Vem, vamos procurar juntos, Derrelição Derrelição aqui está: do latim, derelictione, Abandono, é isso, Desamparo, Abandono” (HILST, 2001, p. 35). (O advérbio “aqui” indica o tempo presente e a preocupação da Senhora D com a velhice.)

9. Elipse –Não identificado

10. Metonímia – Outra figura de linguagem que é bastante usada como elo coesivo, por substituir uma palavra por outra, fundamentada numa relação de contiguidade semântica.

Exemplo: “Zico tô te dizendo, a bruxa quis afagar a cabecinha dele” (HILST, 2001, p.

73). (A palavra bruxa se refere à Senhora D; é um tipo de metonímia conhecida como o possuidor pelo possuído; na verdade ela é considerada bruxa pelas suas ações e não por vestir- se como tal).

“Engolia o corpo de Deus a cada mês, não como quem engole ervilhas ou roscas ou sabres engolia o corpo de Deus como quem engole o Mais, o Todo” (HILST, 2001, p. 19). (Essa metonímia é reconhecida como o abstrato pelo concreto: corpo de Deus no lugar de hóstia).

• “Se sou zebu também caminho aos bandos” (HILST, 2001, p. 27). (Temos duas metonímias. A primeira é a coisa pela sua representação (sinal pela coisa significada): Hillé é zebu; a segunda é caracterizada como a de gênero pela espécie: zebu anda aos bandos).

• “Um tempo foste outro e agora és um que ainda se lembra do que foi e não é mais?” (HILST, 2001, p. 22) (essa metonímia é conhecida de concreto pelo abstrato, pois Ehud aparece como um outro que compartilha o tempo abstrato da velhice como alguém que tenta viver do passado concreto).

• “Leríamos juntos com Max e Milena” (HILST, 2001, p. 44). (Essa metonímia é conhecida como o autor pela obra, pois ninguém, na verdade, lê o autor, mas as obras dele em geral).

• “A casa deve ficar mais clara, casa do sol, entendes?” (HILST, 2001, p. 68) (Esse tipo de metonímia é conhecida como a forma pela matéria, pois a autora Hilda Hilst indica que sua casa deve ser tão brilhante ou iluminada como o sol).

No texto de Hilda Hilst a coesão resulta da relação harmoniosa entre os pensamentos e as ideias apresentadas no texto da obra “A Obscena Senhora D”, pois aponta para assunto importante, que é a relação com o corpo, tempo e envelhecimento; mostra uma sequência ordenada das opiniões ou fatos expostos; está ligada ao texto por meio de várias estratégias de uma situação de comunicação, como foi possível verificar nos trechos demonstrados acima.

Na obra de Hilst a coesão é decorrente de relações de sentido que se operam entre elementos do texto, o que contribui às vezes para entender a interpretação de um termo que faz referência a outro, ou seja, a significação de uma palavra vai pressupor a de outra.

Se sou zebu também caminho aos bandos, sou triste de olhar, quero dizer que não terás muita luz no olho se me olhares, a cabeça procura sempre o chão, o beiço quer o verde sempre, se levanto a cabeça olho como quem não vê, procuro como quem não procura, corro se os outros correm ouvindo a voz do homem He boi He boi, que coisa crua empedrada a voz do homem, que cheiro o cheiro do homem, sendo girafa no vão da escada encolho, franzida me agacho, sendo girafa te procuro mais perto, lambedura acontecível isso de alguém ser muito ao mesmo tempo nada, de olhar o mundo como quem descobre o novo, o nojo, o acoagulado, e olhando assim ainda ter o olho adiáfano, impermissível, opaco (HILST, 2001, p. 27).

Hilda Hilst na verdade utiliza uma fala sobre o corpo para discutir o aqui e o agora, ou seja, a velhice vivida por uma mulher que se isolou da sociedade e procura usar sua escrita como uma fonte de mostrar esse olhar sobre si mesma no processo do envelhecer. Sua personagem Senhora D se vale de uma polivalência semântica no nível do objeto simbólico, pois, ao falar do corpo animado, mostra-se muitas vezes como um animal que caminha aos bandos.

A identificação mítica homem e animal, que indica, em alguns casos, rebaixamento de valores, ausência de qualidade ou de situação social, mostra que, por meio da animalidade básica, surgiria o homem verdadeiro. A forma do nariz, dos olhos, da testa ao ser comparada às de animais é uma forma de transgressão da forma estética em que um traço não bem definido remete ao barroco, forte, chocante chamado de barrochus ruprestis, com forte dose de naturalismo rústico. Para Sodré e Paiva (2002), a alma do barroco tem com o corpo uma relação complexa: sempre inseparável do corpo, ela encontra neste uma animalidade que aturde, que embaraça nos recônditos da matéria, mas também uma humanidade orgânica ou cerebral.

4.3.4.2 Estrutura textual

A estrutura textual diz respeito à arquitetura do texto, principalmente no que se refere aos aspectos superiores do planejamento de diferentes tipos de texto. A forma como o texto se organiza pode expandir a percepção dos sistemas de crenças e conhecimentos e alargar, também, a percepção dos pressupostos sobre as relações sociais dos tipos de texto mais diversos.

Aí surge a ideia de controle interacional, que pode ser entendido como aquele que reflete a estrutura textual e tem como objetivo descrever, deduzir ou definir as características organizacionais gerais de um texto. Esses esquemas contribuem para a formação de conceitos na estrutura argumentativa elaborando diversos tipos de discursos tais como o monólogo ou diálogo. Isso interfere no funcionamento e no controle das interações entre discursos. Ainda é importante indicar nesse tópico de discussão dois aspectos fundamentais para a estrutura de um texto. O primeiro é a polidez, que pode ser entendido como uma estratégia para manter a face do sujeito do discurso protegida, isso porque a pragmática anglo-americana instituída por Brown e Levison (1978, apud FAIRCLOUGH, 2008) demonstrava que existia um conjunto universal dos desejos da face sendo positiva ou negativa. A face positiva pretende ser amada, compreendida, admirada; já a face negativa não quer ser controlada ou impedida pelos outros, por isso é possível verificar que as estratégias de polidez são mais utilizadas nas relações sociais entre os participantes.

Enquanto Polidez, uma face dúbia, Hilda, a autora, quer mostrar-se por meio de uma face positiva, pois a velha isolada passa a ser conhecida como a “vovó da sacanagem”. Segundo Destri e Diniz (apud PÉCORA, 2010, p. 32), essa imagem de Hilst surge no momento em que a autora busca em suas obras uma nova temática em que o obsceno é a palavra-chave para seu enredo. Isso, porém, não acontece de forma gratuita; é na verdade uma estratégia criada para tentar obter reconhecimento. É importante citar que Hilda Hilst declarou em entrevista à revista Cult, que “estou conseguindo o que pretendi, ou seja, chamar a atenção para o meu trabalho. Encaro isso como um ato político de tipo diferente. Ato político não é só sair por aí com bandeiras ou uma metralhadora” (HILST, 1998).

Hilst também quer romper com a face positiva e mostrar a face negativa, pois a pornografia pode ser entendida como ato político. Talvez se faça necessário, para entender esse outro lado da autora, voltar um pouco no tempo. O texto publicado em O Estado de S.

Paulo em julho de 1955, por ocasião do lançamento de “Balada do festival”, seu terceiro livro de poemas, serve de síntese à forma como a autora era retratada na época:

A moça elegante, loura, que acende um cigarro, sorri e pede um cocktail, tem todo o aspecto de um precioso ornamento de crônica mundana. Vai falar do último festival de cinema. Vai contar a sua última façanha no tênis, o seu último encontro em boite e seu último passeio de automóvel pela praia. Oh! Frívola juventude! A voz imprevistamente grave diz coisas imprevistamente tristes (HILST, 2004).

Hilda parece querer romper com a ideia de que beleza e talento são coisas incompatíveis, porém na velhice, quando a beleza já não mais estava presente, com o seu isolamento na casa do sol a autora, embora desejosa de ter sua obra reconhecida, parece travar uma luta com a sociedade, pois alfineta os leitores do “Correio Popular” a partir de 1992.

Forghieri (1993, p. 8) afirma que a reflexão fenomenológica vai em direção ao “mundo da vida”, ao mundo da vivência cotidiana imediata, no qual todos nós vivemos, temos aspirações e agimos, sentindo-nos ora satisfeitos, ora contrariados.

A intenção de Hilda ao trabalhar no “Correio Popular” era de sacudir esses leitores carentes de imaginação. A face negativa de Hilst aparece quando ela trata o leitor como se fosse alguém desprovido de qualquer conhecimento. Isso fica evidente por aparecer em seus textos e artigos publicados no jornal frases como “informe-se”. Em outro artigo escreveu: “espero que alguns raros tenham compreendido que é de uma outra embriaguez, de um fervor descomedido, o roteiro voluptuoso destes versos”; ainda escreveu: “foi atingido”, mas o trecho que mais causou furor nos leitores foi o trecho escrito quando a autora resolveu divulgar três poemas do livro “Alcoólicas”. Segue o trecho:

É triste explicar um poema. É inútil também. Um poema não se explica. É como um soco. E, se for perfeito, te alimenta para toda a vida. Um soco certamente te acorda e, se for cheio, faz cair tua máscara, essa frívola, repugnante, empolada máscara que tentamos manter para atrair ou assustar (HILST, 1992).

Os leitores, muito deles chocados, escreviam para o jornal protestando contra o escrito de Hilda. Ela, no entanto, não demorava a responder: “como telefonam indignados para o por isso eufórico editor deste caderno, dizendo que sou nojenta! Obrigada, leitor; por me fazer sentir mais viva e ainda por cima nojenta! Isso é tão mais, tão mais do que nada!” (QUEIROZ, 2005).

Na obra “A Obscena Senhora D”, a polidez aparece de forma diversificada para cada personagem. A personagem Senhora D se configura com uma face negativa na sua relação com a vila, pois ela é um ser que se oculta, pois passou a viver no vão da escada com a casa

trancada e se mostra para a vila por meio de máscaras: “abro a janela enquanto ele se afasta invento rouquidões, grunhidos coxos, uso máscaras de focinhez e espinhos amarelos [...]” (HILST, 2001, p. 32). Sua intenção é mostrar a face negativa para a vila por meio do isolamento social e por meio de atitudes pouco ortodoxas: “[...] então escuta, aqui na vila me perguntaram por você todos os dias, eles me veem trazer o leite, a carne, as flores que eu te trago, querem saber o porquê das janelas fechadas, tento explicar que a Senhora D é um pouco complicada [...]” (HILST, 2001, p18). Já para Ehud (o marido morto) ela demonstra a face positiva que quer ser aceita, compreendida e quer também compreender sua existência: “também não compreendo o corpo, essa armadilha, nem a sangrenta lógica dos dias, nem os rostos que me olham nesta vila onde moro, o que é casa, conceito, o que são as pernas, o que é ir e vir [...]” (HILST, 2001, p. 21).

Ehud é o personagem que mantém o discurso com a Senhora D e com a Hillé; é ele que invoca ao longo do texto a presença de uma ou de outra personagem para falar do corpo e tempo na velhice: “Senhora D é definitivo isso de morar no vão da escada? Você está me ouvindo Hillé?” (HILST, 2001, p. 18). Ele apresenta uma face positiva em alguns momentos da narrativa, pois é compreensivo, amoroso, entende os anseios das personagens: “o que é Derrelição, Ehud? Vem, vamos procurar juntos [...]” (HILST, 2001, p. 35); em outro trecho: “pergunto se me amas Hillé” (HILST, 2001, p. 54). Porém a face negativa também aparece quando questiona a relação da Senhora D com o divino: “[...] não geme assim, não é para mim esse gemido, eu sei, é pra esse Porco-Menino que tu gemes, pro invisível, pra luz pro nojo, fornicas com aquele Outro [...]” (HILST, 2001, p. 63). Em outro trecho se mostra a Hillé de forma descontente com o mundo como se houvesse uma ruptura com o Ehud dócil e amável: “Hillé, paixão é grossa artéria jorrando volúpia e ilusão, é a boca que pronuncia o mundo, púrpura sobre a tua camada de emoções escarlate sobre a tua vida, paixão é esse aberto do teu peito e também deserto. E sobra, Hillé é o nosso passo, nossa desesperança subida” (HILST, 2001, p. 29).

Já Hillé, que é a mulher desejada por Ehud, mostra uma face negativa; ela não quer ser controlada ou impedida de cometer certas atitudes:

Hillé, estás louca, de mim somente um todo de ti, arquejei, dobrei-me lunulado, esforço em magma para colocar de pé esses de ti, e agora inventas nomes pai e mãe dizendo que eu os coloquei nas tuas cordas de dentro? Que eu fiz nascer o quê? Ruídos de sentimentos? Estás louca. (HILST, 2001, p. 82).

Em outro trecho: “Hillé minha mulher não entende essas angústias da gente” (HILST, 2001, p. 78).

O discurso desses personagens mostra o trabalho de prosa de Hilda em que se mostra um trabalho de construção dos personagens: o que dizer? Como dizer? A quem se referir? Há uma preocupação com o tempo, com a velhice, com a morte e também com a ânsia de ser reconhecida enquanto escritora.

Pécora (2010) afirma que a prosa de Hilda não estava livre de inspiração, que segundo a própria autora sua composição textual do discurso ocorria por meio de uma primeira frase ou o nome de personagem e a partir daí iniciava a construção do texto; e que no caso de “A Obscena Senhora D” houve anos de convivência com as personagens, na maior parte do tempo em silêncio, antes que o livro fosse terminado.

Outro aspecto importante ligado à estrutura textual é o Ethos, que deve ser entendido como intertextual, pois ele agrega outros gêneros e tipos de discursos para constituir uma subjetividade em que aparece a identidade social de um eu dos participantes dessa interação. Ele proporciona uma modelagem em que o lugar e o tempo de uma interação e seu conjunto de participantes são constituídos pelos sujeitos participantes e se manifesta, segundo Bordieu, (2004) pelo corpo inteiro e não só pela voz. O autor sugere que a linguagem seja considerada como uma dimensão da hexis corporal, na qual a relação global da pessoa com o mundo social é expressa. Isso quer dizer que a interação textual entre quem produz um discurso e quem ouve e reúne as características que contribuem para a construção do eu ou de identidades sociais.

Para Hilda Hilst os seus personagens são pensados como alguém comum, e nada é mais comum do que a baixeza que trazem: a vizinhança é sempre horrenda; a autoridade é sempre arbitrária e burra; o revolucionário está enganado sobre sua vontade, sobre a ideologia que defende e sobre os efeitos de sua ação; o irracionalismo da esperança incompreensível diante de Deus se mostra como a pior das inseguranças, parece que a expectativa mística de salvação não se realiza sem dor e sem vazio. O ethos se caracteriza então como farsa; há nele um niilismo que contamina os textos obscenos por meio de um humor político anárquico em favor da minoria mulher e velha. Percebe-se que a hexis tem o importante papel de falar do corpo – o atual e o antigo, o novo e o velho, o corpo de Hillé, o corpo de Deus, o corpo da Senhora D, o corpo da porca, o corpo do menino Louco, o corpo de Ehud –, pois é importante lembrar que as pessoas, em suas relações sociais, procuram identificar no copo de alguém características que permitam identificação com seus pares, para poder se apoiar ou se agrupar com o desejo de serem reconhecidos enquanto sujeitos.

4.4 ANÁLISE DISCURSIVA

A prática discursiva se caracteriza por trazer aspectos importantes para que essa

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