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4.3 ANÁLISE TEXTUAL

4.3.2 Gramática

Ao continuar a análise textual, serão agora apresentadas as questões relacionadas à gramática. É importante lembrar que toda oração é resultado da combinação de significados ideacionais, interpessoais (identitários e relacionais) e textuais. Quando as pessoas escolhem suas orações em termos de modelo e estrutura, selecionam, também, o significado e a construção de identidades sociais, de relações sociais, de crenças e conhecimentos. É nesse momento que alguns aspectos da gramática (influência da Linguística Crítica) podem ser observados.

Outros aspectos que podem ser listados são: a identificação do tema e do tópico, as relações entre as construções ativas e passivas, e a omissão do agente nas construções passivas.

O tópico na análise do discurso demonstra a ideia central do parágrafo e em geral se liga ao tema discutido por meio de enunciados que aparecem por meio de frases ou períodos. É esse período que tem a função de orientar ou governar o restante do parágrafo; dele nascem outros períodos secundários ou periféricos; ele é o roteiro do escritor na construção do parágrafo. Em geral é o período-mestre que contém a frase-chave, que serve para enunciar a tese (tomada de posição diante do tema) ao mesmo tempo que encaminha a atenção do leitor diretamente para o tema central. O tópico frasal ajuda o leitor a agarrar o fio condutor, ele ainda introduz o assunto e o aspecto desse assunto, ou a ideia central com o potencial de gerar ideias-filhote, em que aparecem a argumentação, afirmação ou negação que conduz o leitor a esperar mais do escritor (uma explicação, uma prova, detalhes, exemplos) para completar o parágrafo ou apresentar um raciocínio completo. Assim, o tópico frasal é entendido como enunciação, supõe desdobramento ou explicação.

A ideia central, ou tópico frasal, geralmente vem no começo do parágrafo, seguida de outros períodos que explicam ou detalham a ideia central. Em Hilda Hilst isso se dá de forma ordenada para organizar o caos na narrativa literária, que se torna múltipla, como afirma Alcir Pécora (2010): “uma vertigem de linguagem”. Veja os trechos abaixo.

a) Tópico desenvolvido por explicação e detalhamento

Quando Ehud morreu morreram também os peixes do pequeno aquário, então recortei dois peixes pardos de papel, estão comigo aqui no vão da escada, no aquário dentro d’água, não os mesmos, a cada semana recorto novos peixes de papel pardo, não quero mais ver coisa muito viva, peixes lustrosos não, nem gerânios maçãs romãs, nem sumos, suculências, nem laranjas (HILST, 2001, p. 19).

Ideia central: Quando Ehud morreu morreram também os peixes do pequeno aquário. Explicação -então recortei dois peixes pardos de papel, estão comigo aqui no vão da escada, no aquário dentro d’água, não os mesmos [...]

Detalhamento:a cada semana recorto novos peixes de papel pardo, não quero mais ver coisa muito viva, peixes lustrosos não, nem gerânios maçãs romãs, nem sumos, suculências, nem laranjas.

b) Tópico desenvolvido por enumeração Exemplo:

E depois vi os olhos dos homens, fúria e pompa e mil perguntas mortas e pombas rodeando um oco e vi um túnel extenso forrado de penugem, asas e mugido de medos garras sangrentas segurando ouro, geografias do nada, frias, álgidas, vórtice de gentes, os beiços secos, as costelas à mostra, e rodeando o vórtice homens engalanados fraque e cartola, de seus peitos duros saíam palavras Mentira. Engodo, Morte, Hipocrisia, vi o Porco-Menino estremecendo de gozo vendo o Todo [...] (HILST, 2001, p.30).

A relação de enumeração liga-se ao tópico da seguinte forma:

Ideia central: a palavra olhos

Enumeração: 1- geografias do nada, 2- frias, álgidas, 3- vórtice de gentes, 4- os

beiços secos, 5 - as costelas à mostra, 6 - e rodeando o vórtice homens engalanados 7-fraque e cartola, 8 -de seus peitos duros saíam palavras Mentira. 9- Engodo, 10-Morte, 11- Hipocrisia.

c) Tópico desenvolvido por descrição de detalhes

É o processo típico do desenvolvimento de um parágrafo descritivo:

Sabe, Hillé, você deve ver as pessoas, você deve foder comigo, deve se arrumar um pouco, outro dia vi uma saia longa dessas que você usa mas tão linda, uns frisos escarlates, o tecido amanteigado púrpura, entrei na loja pensei comprá-la, a mocinha disse ficará lindo na sua senhora, ela é alta? Magra? Eu disse bem nem muito alta e nem muito magra, é loira, tem sardas, não podia falar dos teu peitos duros mas falei tem um lindo busto, ah isso falei, aliás observação inútil em relação à saia, mas falei então se loira, senhor, vai ficar adorável nesses tons, ia comprar mas aí vi pequenos esgarçados, tocando o tecido dava a impressão de que estava tostado do sol das vitrines, parecia velho de perto, coisa usada, então não quis, mas deve haver outras, hen, não gostarias? (HILST, 2001,p. 26).

Ideia Central: Podem-se verificar duas ideias 1ª – Se arrumar um pouco – saia

2ª – Hillé

1ª – saia longa, frisos escarlates, amanteigado púrpura, esgarçados, (tecido) tostado do

sol, velho.

2ª – nem muito alta e nem magra, é loira, tem sardas, lindo busto.

d) Tópico desenvolvido por confronto

Trata-se de estabelecer um confronto entre duas ideias, dois fatos, dois seres, seja por meio de contrastes das diferenças, seja do paralelo das semelhanças. Veja o exemplo:

Convém lavarmo-nos, pelos e sombras, solidão e desgraça, também lavei Ehud no fim algumas vezes, sovacos, coxas, o escuro buraco, sexo, bolotas, Ai Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco? Escondido atrás mas quantas vezes pensado, escondido atrás, todo espremido, humilde mas demolidor de vaidades, impossível ao homem se pensar espirro do divino tendo esse luxo atrás, discurseiras, senado, o colete lustroso dos políticos, o cravo na lapela, o cetim nas mulheres, o olhar envesgado, trejeitos, cabeleiras, mas o buraco ali, pensaste nisso? Ó buraco, estais também aí no teu Senhor? Há muito que se louva o todo espremido. Estás destronado quem sabe Senhor, em favor desse buraco? Estás me ouvindo? [...] (HILST, 2001,p. 45).

Ideia central: confrontar o divino colocando-o na posição de humano e também

confrontar a sociedade e os políticos colocados em situação contrária à posição social faz dele um ser comum com características comuns a todo homem.

Confronto: Homem se pensar espirro do divino tendo esse luxo atrás [...] Senado,

colete lustroso. O político é provocado a não se esquecer de sua condição de ser humano, a descer do pedestal e se ver como qualquer outro ser humano.

Semelhança – “Ó buraco, estais também aí no teu Senhor? Há muito que se louva o

todo espremido. Estás destronado quem sabe Senhor, em favor desse buraco? Estás me ouvindo? [...]. O divino passa a ter uma condição de humano” (HILST, 2001, p.18).

e) Tópico desenvolvido por razões

No desenvolvimento apresentamos as razões, os motivos que comprovam o que afirmamos no tópico frasal.

Ah ela não é certa não, tá pirada da bola, e isso pega, tu não te lembra que meu marido pifo quando não pude fazer aquele bacalhau tu não lembra? Começo berrando cadê o bacalhau? Porque não tinha bacalhau madona, aqui em casa, aí eu dizia te acalma a gente vai buscar, que é isso Juvêncio, e pois é, espumo, babo, caiu duro, e meu avô que se escondeu de todos derepente porque achava que era um morango e ia ser chupado. Isso pega. [...] (HILST, 2001,p. 63).

Ideia central: “Ah ela não é certa não, tá pirada da bola [...]” (HILST, 2001, p.22). Razões: A loucura pega

f) Tópico desenvolvido pela exemplificação

Consiste em esclarecer o que foi afirmado no tópico frasal por meio de exemplos: Duas Hillé, uma tua senhora D, dois Ehud, um que se mostrava nos cotidianos, leveza e carranquez, outro um Ehud de mim, sonhado, ou eras tu mesmo aquele que eu queria sóbrio, os passos largos, lentidões, e uma Hillé lagamar, escura, presa à Terra, outra Hillé nubívaga, frescor e molhamento, e entre as duas uma outra que se fazia o instante, eterna, oniparente procurar compreender, Hillé, agora que estou morrendo compreender o quê? Ehud nomeia as ilusões, afasta-te da vertigem hen? Loucura é o nome da tua busca. esfacelamento. cisão. derrelição. (HILST, 2001, p. 55).

Ideia central: Duas Hillé, dois Ehud

Esclarecimento: uma Hillé nubívaga (elevada, sublime) outra Hillé Lagamar (cova no

fundo do mar ou no leito de um rio). Ehud sóbrio um outro leveza e carranquez.

Ao finalizar a análise dos tópicos frasal e oracionais é possível perceber que Hilda Hilst quer indicar que o mundo da velha senhora é uma arquitetura em ruínas, por meio do sagrado-profano em que a personagem Senhora D está em busca de um sentido para a existência. O sagrado aparece por meio de questionamento sobre o divino. Já o profano se caracteriza como erótico e pornográfico, que parece ser alguma coisa que não pode ser exposta, mas tem a intenção de prender a atenção do leitor e mostrar um novo olhar sobre a sexualidade do idoso. A autora pretende levar o leitor a uma perspectiva que conduza a uma reflexão sobre a velhice por meio de elementos que demonstrem como a sociedade encara o retrato de uma personagem velha. Os diálogos de Hillé com o marido morto, Ehud, funcionam como chave para entender o processo de envelhecer: o corpo e a carne como resposta ao eterno conflito do homem com a certeza da existência (tempo). Os questionamentos da Senhora D em relação à vida e à morte acontecem em um texto híbrido entre grotesco, obsceno e pornográfico.

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