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3 ASPECTOS TEÓRICO-HISTÓRICOS

3.3 Censura

3.3.5 Coleções expurgadas ex ante e ex post

Como atender à demanda dos usuários quando há proibição oficial de publicação e comercialização de livros e periódicos; e o fomento à publicação de obras que correspondem às políticas educacional e cultural do governo militar? Para Costa (2008), “as bibliotecas não ficaram imunes à ação da censura”, o mercado editorial era previamente (ex ante) ou posteriormente (ex post) censurado. O Ministério da Justiça reprimia e o INL incentivava publicações não partidárias ou que propagassem ideologias impostas pelo sistema vigente.

De acordo com Costa (2008), “é possível constatar que existe um silêncio sobre esses acontecimentos”. De um lado, um grupo da sociedade que se silencia, por medo da repressão e uso da força física e psicológica para impor as vontades políticas de forma arbitrária e reacionária e, de outro, os que se opõem, sendo perseguidos, processados, torturados, "desaparecidos" ou executados.

Como agir diante de um cenário de medo, insegurança, desconfiança e tensão? Qualquer denúncia, sem justificação objetiva, poderia ocasionar batidas policiais, apreensões e flagelações. Ou o cidadão se calava ou era calado. Todas essas ações eram empregadas para restringir a liberdade de expressão e informação durante a vigência da ditadura no país.

O reflexo do poder do silêncio originado no golpe militar ainda se estende à atualidade e muitos cidadãos e profissionais preferem não falar sobre esse período tão brutal aos direitos humanos. Em alguns casos, o silêncio se transformou em omissão e o medo, em indiferença.

As bibliotecas públicas e universitárias foram zonas de atenção. Para Leitão (2011, p. 263), “as bibliotecas públicas brasileiras foram consideradas oficialmente monitoradas, já que integravam os instrumentos de controle cultural, eram formadas e mantidas por recursos públicos e interesse do Estado”.

As bibliotecas das universidades (estas, espaço de debates e resistência) são providas de referências teóricas e práticas para fomentar o ensino e a pesquisa. Importa lembrar que as universidades eram monitoradas pelo Ministério da Justiça e MEC.

Sobre a censura em bibliotecas universitárias, conseguimos reunir alguns relatos dispersos. Segundo o brazilianist Laurence Hallewell (1985, p. 483), autor do clássico O

Livro no Brasil, na biblioteca da Universidade do Paraná, Flávio Suplicy de Lacerda, falecido

em 1983, que foi sucessivamente reitor da UFPR e ministro da Educação no governo Castelo Branco, estava tão preocupado com a obscenidade que arrancou páginas das obras de Zola, Pérez Galdós e Eça de Queiroz, além de banir as obras de Sartre, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Guerra Junqueiro e a revista Anhembi.

Na Universidade de Brasília (UnB), o professor (bibliotecário e editor) Antenor Briquet de Lemos fez um relato no Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação em Curitiba (PR) e o reproduziu na entrevista concedida a Leitão (2011, p. 181), que, na Ditadura Militar, os bibliotecários da universidade tinham preocupação de esconder livros para que, em outro momento, as obras pudessem voltar a circular. Ele viu, em uma caixa- forte, exemplares retirados das estantes. Posteriormente, inquiridos em uma entrevista pelo Jornal O Estado de S. Paulo, os profissionais negaram o ocorrido.

Cléa Marques, primeira bibliotecária da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), relatou em entrevista ao documentário de comemoração de 100 anos da Biblioteca que, na época da ditadura, havia policiais no campus da Faculdade e na biblioteca. O diretor da Faculdade à época, Franchine Netto, contestava o livre acesso dos alunos à biblioteca e a profissional respondeu que ele comunicasse a restrição, por escrito, ao reitor Pedro Calmon, a fim de formalizar a restrição. Em 1968, quando um policial quis entrar no campus para prender alunos, o então reitor Pedro Calmon reagiu e disse a memorável frase: “Na universidade, policial só entra mediante vestibular” (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2005). Este relato nos apresenta um exemplo da estrutura hierárquica em forma de "cebola", referida por Hannah Arendt: uma ordem verbal é dada em nome de não se sabe qual autoridade e seu cumprimento pelos sucessivos órgãos da administração pública (as "camadas da cebola") acabariam por revelar, provavelmente, micro-poderes exercidos por funcionários subalternos. Por outro lado, percebe-se que o respaldo da autoridade maior da Universidade deu legitimidade institucional à possibilidade de enfrentamento que ela se permitiu.

No Arquivo da Faculdade Nacional de Direito, há dois ofícios confidenciais do período da ditadura, relacionados à censura prévia e posterior de livros. Um versava sobre o envio de nove obras37 alocadas na Faculdade de Direito para o “devido exame” pela

37 Yugoslay survey. A record of facts and information de 1961; Socialist thought and practice (a Yugoslav

Assessoria Regional de Segurança e Informação do MEC, e um outro informando sobre a proibição, circulação e determinando apreensão de cinco livros38 que estivessem expostos à venda dentro da universidade.

Silva (1989, p. 57) relata que, durante o governo Médici, ele morava em um convento meridional e recorda “o cuidado que nós, os habitantes daquele mosteiro, tivemos em selecionar livros da biblioteca para enterrá-los na horta, de um modo tal que, passados aqueles tempos, eles pudessem vir a ser recuperados”.

O reitor da Universidade Federal do Espírito Santo, em 1967, recebeu um ofício confidencial de n. 7839, do Ministério da Justiça e de Negócios Interiores, que encaminhou ao diretor da Faculdade de Medicina, para retirar de circulação trinta e quatro40 obras consideradas subversivas. No final do processo, há o "ciente" de uma profissional da biblioteca (COMISSÃO DA VERDADE DA UFES).

Rodrigues (2016, p. 41) apresenta também outras entrevistas concedidas a outros pesquisadores, sobre censura em bibliotecas universitárias durante o regime militar, como o relato de Alba Costa Maciel, professora aposentada do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal Fluminense, que fora, antes, bibliotecária da Universidade de São Paulo, confirmando a lacração de uma biblioteca universitária e encaixotamento dos livros; o de Jussara Pereira dos Santos, bibliotecária e posteriormente professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que narrou o recolhimento de livros encapados em vermelho da Faculdade de Arquitetura, por receio de os communism, de 1971-1972; “Modern Korea: the socialist north, revolutionary perspectives in the South”, de Dim Byong; Este & Oste (1971-1972); estúdios sobre la Unión Soviética (1971); Noticias de la república de China (1972) e Economic Reporter (1972).

38 “Silken Idol”, de Robert Moore; “All Juiced Up”, de Verônica King; “Jeff’s Trade”, de Roger St. Clair;

“Cruise Ship”, de Py Jay Geene; e “Teacher Taught Us”, de Jonh Vernon.

39

Esse ofício faz parte do Acervo da Comissão da Verdade da Universidade Federal do Espírito Santo (CVUFES), disponibilizado por Alexandre Caetano, responsável pela localização desses documentos.

40 “História militar do Brasil”, de Nelson Werneck Sodré; “Palavras de Arraes”, de Miguel Arraes; “Manifesto

do partido comunista”, de Karl Marx e Friedrich Engels; “O golpe começou em Washington”, de Edmar Morel; “Política e revolução social no Brasil”, de Otavio Iani, Paulo Singer, Gabriel Cohn e Francisco Weffert; “Julião nordeste revolução”, de Lêda Barreto; “Moscou, Varsóvia Berlim”, de José Guilherme de Mendes; “Do socialismo utônico ao socialismo científico”, de Friedrich Engels; “O golpe de abril”, de Edmundo Muniz; “Quem pode fazer revolução no Brasil”, de Bolivar Costa; “Filosofia marxista”, de V. G. Afansiev; “Revolução e contra no Brasil”, de Franklin de Oliveira; “Qual a política externa conveniente ao Brasil”, de Vanirh Chacon; “O canhão e a foice”, de P. E. Lapide; “Que foi o tenentismo”, de Virginio Santarosa; “Que é o imperialismo”, de Eduardo Ballby; “Como seria o Brasil socialista”, de Nestor Holanda; “Que é a revolução brasileira”, de Franklin Oliveira; “1º de abril”, de Mario Lago; “A invasão da América Latina”, de John Gerassi; “A crise geral do capitalismo”, de N. Draguilley; “História moderna”, de Nefinov; “História contemporânea”, de V. N. Ivestov e L. I. Zubeck; “Salário preço e lucro” e “Trabalho assalariado e capital”, de Karl Marx; “História da idade média”, de B. A. Kosminsky; “Terra e sangue”, de Mikhail Chelakrov; “Fundamentos do marxismo leninismo”; “Marxismo e alienação”, de Leandro Konder; “A diplomacia do dólar”, de L. Vladimirov; “A concepção materialista da história”, de G. Flekhanev; “Coleção histórias novas”; “Falências das elites”, de Adelaide Carrero; e “O golpe em goiás”, de Mauro Borges.

considerarem livros comunistas; e o de Evangelina de Azevedo Veiga, bibliotecária da Biblioteca Pública do Estado e posteriormente professora da UFRGS, que informou não haver orientações específicas, mas imposições que afetaram diretamente ou indiretamente as atividades ressaltando que livros de autores de esquerda desapareciam de circulação.

Estes relatos demonstram a interferência imensurável do Regime Militar na história da sociedade e na produção intelectual do país. As ações dos profissionais em prol da preservação dos livros demonstram a resistência e relutância a ordens do regime.