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2. DOS PRINCÍPIOS E DAS REGRAS

2.2. Robert Alexy: dos princípios como mandamentos de otimização

2.2.3. Colisão entre regras e princípios

Como dito acima, os conflitos entre regras são resolvidos no plano da validade, invalidando-se uma das regras envolvidas ou criando-se uma cláusula de exceção que as compatibilize. Foi exposto, ainda, que a colisão entre princípios é resolvida por meio da ponderação, em razão da estrutura dos princípios enquanto mandamentos de otimização, e que o resultado final desse sopesamento criará uma relação de precedência condicionada entre os

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ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 98.

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ALEXY, Robert. Op. cit., p. 99.

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princípios envolvidos, aplicando-se um deles em maior medida. Contudo, duas normas de estrutura diversa também podem colidir.

É o caso da colisão entre regras e princípios, talvez o ponto mais complexo e menos explorado da teoria dos princípios87. Isso ocorre porque as regras são aplicadas pelo método da subsunção, enquanto os princípios são aplicados mediante a ponderação.

Em tais casos, a aplicação de qualquer dos métodos acima parece problemática. Caso seja feito o sopesamento, é possível que uma regra seja afastada em detrimento de um princípio, sem que com isso perca sua validade. No entanto, as regras não possuem tal dimensão de peso, e soa como casuísmo arbitrário afastar uma regra válida e aplicável sem extirpá-la do ordenamento jurídico. Por outro lado, se resolvida a colisão entre regra e princípio no plano da validade, seria necessário aceitar que um princípio pode ser considerado inválido, ideia incompatível com o próprio conceito de mandamento de otimização.

Alexy não aprofunda o tema. No entanto, ao discorrer sobre os princípios como mandamentos de otimização, considera que o âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes, esclarecendo, em nota de rodapé, que em tal caso deve-se proceder a um sopesamento entre o princípio em colisão e o princípio que materialmente sustenta a regra88.

Essa solução, no entanto, talvez gere mais problemas. Isso porque dá a entender que o aplicador do direito tem liberdade para afastar qualquer regra válida e aplicável, em qualquer caso e situação, sempre que compreenda haver um princípio mais importante que o justifique, causando severa insegurança jurídica.

Um dos papéis mais importantes das regras no ordenamento jurídico é o de aumentar o grau de segurança na aplicação do direito, e deve-se compreender que uma regra de direito ordinário já é produto de um sopesamento, mas feito pelo legislador, que considerou todos os princípios envolvidos no tema para a edição daquele mandamento definitivo. Desse modo, a relação entre regra e princípio não é uma relação de colisão, mas uma relação de restrição:

87 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais : conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª edição.

São Paulo : Malheiros, 2011, p. 51.

uma regra que proíba uma conduta permitida prima facie por um princípio nada mais é do que um processo de restrição a tal princípio, resultado da legislação ordinária89.

Tal colisão entre regra e princípio, nesses casos, é apenas aparente, vez que a regra já é resultado da ponderação, e deve, no caso concreto, ser simplesmente aplicada por subsunção. A regra não poderia ser ignorada pelo aplicador do direito.

Podem, no entanto, existir dúvidas quanto à constitucionalidade da regra, cabendo ao juiz controlá-la. Caso a regra seja declarada inconstitucional em face de outo princípio, a questão não será de colisão, que desaparece sem que haja modificação nos critérios de aplicação das normas jurídicas90. Em tal caso, o juiz não ignora a regra por discordar do sopesamento feito pelo legislador (e do qual a regra é resultado): o que ocorre é a declaração de que o resultado da ponderação feita pelo legislador é incompatível com normas constitucionais, sejam elas regras ou princípios.

2.2.3.1. Do uso dos princípios em detrimento de regras

Cabe, aqui, uma breve digressão a respeito da prática jurídica brasileira. O Poder Judiciário brasileiro hoje sofre grande influência da teoria dos princípios de Ronald Dworkin e Robert Alexy, e a Constituição Federal de 1988 é profícua na consagração de direitos fundamentais sob a estrutura de princípios. No entanto, embora das teorias acima expostas tal conclusão não seja decorrente, instalou-se na práxis jurídica pátria um ambiente intelectual que aplaude e valoriza decisões principiológicas, considerando de menor importância as decisões baseadas em regras legais, vistas como burocráticas ou positivistas – e positivismo hoje no país é quase um palavrão91. Há evidentes efeitos deletérios na valorização irrefletida dos princípios e da ponderação, muitas vezes desacompanhados do necessário cuidado com a fundamentação de decisões judiciais. Expoentes do pós-positivismo brasileiro reconhecem que, adotada a prevalência dos princípios e da técnica da ponderação, por muitas vezes o

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SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais : conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª edição. São Paulo : Malheiros, 2011, p. 141.

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SILVA, Virgílio Afonso da. Op. cit., p. 53.

91

SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: NOVELINO, Marcelo (org.). Leituras Complementares de Direito Constitucional – Teoria da Constituição. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 60.

Judiciário abandona a adequada motivação de suas decisões, de modo que “provavelmente nunca se motivou tão pouco e tão mal” 92.

Muitas vezes o legislador edita normas sobremaneira vagas, como é o caso da norma civil que obriga os contratantes a observar um arquétipo de conduta equivalente à boa-fé objetiva93. Em tal caso, o legislador delega ao juiz o poder de criar decisões judiciais a partir de um princípio jurídico, cujos contornos apenas surgirão à luz do caso concreto. Em outros casos, o legislador é expresso em suas intenções, editando um mandamento definitivo, como na vedação à usucapião de bens públicos94. Poderia o juiz, no segundo exemplo, julgar procedente ação de usucapião movida por pessoa comprovadamente pobre, inspirado na “dignidade da pessoa humana”95, fundamento da República, “erradicação da pobreza”96, objetivo fundamental, e direito fundamental à moradia97?

A diferença entre os casos da boa-fé objetiva e da dignidade da pessoa humana/erradicação da pobreza/direito à moradia não está na estrutura das normas: todas consagram princípios. O juiz não se choca com o legislador quando decide de acordo com normas dessa natureza, vez que o legislador delegou poder para esses julgamentos. No entanto, na existência de regra válida e aplicável (como a da vedação à usucapião de bens públicos), se o juiz utilizar um princípio para construir um regime alternativo ao legal, estaria usurpando a função do legislador98. Quando da edição de uma regra, como a que protege os bens públicos da usucapião, o legislador já realizou o sopesamento entre todos esses princípios, aplicando em maior medida o princípio da supremacia do interesse público. Não caberia ao juiz realizar nova ponderação com resultado diverso.

A fascinação por princípios, em detrimento de regras válidas, tende a bloquear a consistência jurídica e a dissolver o direito amorfamente em seu ambiente. A inflação de

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BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O Começo da História. A nova interpretação

constitucional e o papel dos princípios no Direito Brasileiro. In. A nova interpretação constitucional/ Luís

Roberto Barroso (organizador). 3ª Ed. Revista – Rio de Janeiro : Renovar, 2008, p. 352.

93 Lei 10.406/2002, Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em

sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

94 Lei 10.406/2002, Art. 102. Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião. 95 Artigo 1º, III, CRFB/1988.

96 Artigo 3º, III, CRFB/1988. 97 Artigo 6º, CRFB/1988. 98

princípios pode levar, no limite, à desestabilização de expectativas normativas, à insegurança jurídica e à desconfiança da própria ordem constitucional99.