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4. PONDERAÇÃO E A COLISÃO DE PRINCÍPIOS

4.3. Limites da ponderação

Pode-se argumentar que, na práxis forense, qualquer juiz que fundamentasse sua decisão nesses termos, matematicamente e com base na fórmula do peso, poderia ser representado à sua Corregedoria, em razão da excentricidade dos fundamentos da sentença. Há objeções à fórmula do peso, segundo as quais Alexy “parece querer voltar no tempo da evolução hermenêutica”, vez que a matematização do conhecimento jurídico foi uma etapa vivenciada durante a modernidade por Descartes e reproduzida no positivismo e neopositivismo. Sustenta-se ser impossível tentar reduzir o Direito a formas pré-determinadas

de aplicação das normas jurídicas, e que a proposta de Alexy se mostra “tão absurda quanto tentar aplicar as fórmulas da física ou da química aos embates jurisdicionais”196.

Parece-nos, no entanto, que a crítica é injusta e decorrente de uma interpretação equivocada dos intentos de Alexy. Isso porque a fórmula do peso oferece ao aplicador do direito são critérios para a realização da ponderação, e em momento algum “reduz o Direito à formas pré-determinadas de aplicação”. O método da ponderação enfrenta o problema da possível subjetividade e discricionariedade judicial quando, no caso concreto, há ausência de regra a subsumir princípios jurídicos em colisão. A fórmula do peso, acima descrita, tem variáveis que podem, uma a uma, ser expressas discursivamente.

Imaginemos, por exemplo, um juiz que se deparasse com um pleito de proibição da veiculação de uma obra literária biográfica não-autorizada, sob o argumento de que a venda do livro é ofensiva à sua vida privada, honra e imagem. O autor da obra fundamentará o seu direito à comercialização de seu livro no princípio jurídico que consagra a liberdade de expressão. Na inexistência de regra prévia que discipline a publicação de biografias não- autorizadas, deverá o juiz enfrentar a colisão entre os princípios, criando com sua sentença uma relação de precedência condicionada entre eles.

Para tanto, o aplicador do direito não precisa aplicar matematicamente, em sua decisão, a ponderação. Pode fazê-lo do seguinte modo: “Trata-se de ação judicial movida por ‘A’ em face de ‘B’, objetivando seja emanada ordem para proibição da circulação e venda dos exemplares da obra literária ‘X’, de cunho biográfico de ‘A’. Alega que a publicação representa ofensa à sua honra, imagem e vida privada. Em contestação, ‘B’ sustentou seu direito a ver sua obra comercializada, em razão do seu direito à livre manifestação do pensamento e liberdade de expressão. Decido. No caso em exame, não há regramento no direito positivo sobre a matéria. Por outro lado, a força normativa dos direitos fundamentais permite que se extraia, dos princípios constitucionais mencionados, os fundamentos necessários para a decisão. Compreendo que, no plano abstrato, ambos os princípios invocados possuem mesmo peso, cuja intensidade é inegável. No plano concreto, dado o teor da obra biográfica impugnada, temos que a vida privada, honra e imagem de ‘A’ seria afetada somente de modo leve, vez que as informações da obra constantes são, de longa data, de público e notório conhecimento, e estão disponíveis de modo esparso em diversos veículos de

196 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza; OLIVEIRA, Felipe Faria de. A teoria da ponderação de valores e os

direitos fundamentais: avanços e críticas. in Leituras Complementares de Direito Constitucional : teoria da

comunicação publicados no passado. Por outro lado e pelos mesmos motivos, a liberdade de expressão de ‘B’ seria intensamente afetada caso a veiculação da obra fosse proibida, considerando-se que a produção literária corresponde a uma das facetas mais proeminentes da liberdade de manifestação de pensamento, e cuja proibição apenas pode se dar em condições excepcionais. Por fim, é seguro que a liberdade de expressão sofreria forte abalo caso a venda da obra seja proibida, ao passo que não há segurança, e sequer plausibilidade, de que a honra e imagem de ‘A’ seja afetada com a sua veiculação. Por todo o exposto, julgo a ação improcedente”.

Uma sentença dessa natureza não causaria estranheza, perplexidade ou pareceria resultante de uma técnica “absurda”. Da fundamentação acima, é possível extrair que o aplicador do direito concedeu, à honra e imagem (Pi), peso abstrato intenso, peso concreto leve e certeza das premissas empíricas não-evidentemente falsa, ao passo que, à liberdade de expressão (Pj), concedeu-se pesos abstrato e concreto intensos e segura certeza das premissas empíricas. Como resultado da fórmula do peso, teríamos que: GPi,jC = 4.4.1/ 4.1.(1/4) = 16/4 = 4. Ou seja, o juiz compreendeu que a liberdade de expressão, no caso concreto, possui um peso quatro vezes maior do que a vida privada, honra e imagem.

O objetivo de Alexy quando da elaboração da fórmula do peso, por certo, não era a de matematizar as decisões judiciais. O exemplo da sentença acima nos revela seu real intento, qual seja, o de elevar substancialmente o ônus argumentativo do aplicador do direito quando da colisão de princípios.

É preciso reconhecer, contudo, que não existe critério objetivo para determinar o peso que têm os princípios na lei da ponderação. Não haverá, desse modo, uniformidade entre juízes quanto a atribuição de pesos, em casos semelhantes ou mesmo idênticos, para o grau de afetação dos princípios no caso concreto, seu peso abstrato e a certeza das premissas empíricas relativas à sua afetação.

Por óbvio, existem casos fáceis no que concerne à graduação das afetações dos princípios, como, por exemplo, o caso de uma revista satírica que denomine um paraplégico como “aleijado”: verifica-se claramente uma grave ofensa ao seu direito à honra, enquanto a publicação contribui apenas de maneira leve – se é que o faz de algum modo – à satisfação da liberdade de informação.

Contudo, existem os casos difíceis, para os quais o dissenso quando da gradação dos pesos tende a ser maior. Tal discordância se acentua nos princípios que consagram

determinada margem de liberdade a um indivíduo ou a uma coletividade, como, por exemplo, a liberdade religiosa. A gravidade de uma intervenção nas crenças de alguém não é uma variável suscetível de determinação em abstrato, com base em critérios objetivos. A gravidade de obrigar uma pessoa testemunha de Jeová a autorizar uma transfusão de sangue em seu filho ou em si é algo que apenas o titular da liberdade religiosa pode precisar, vez que, para ele, pode ser preferível a morte à continuidade de uma vida impura, em pecado, à qual sobrevenha a condenação eterna197.

Isso acontece porque a fórmula do peso não explicita claramente qual ponto de vista a partir do qual se deve fazer a gradação das afetações dos princípios. Esta dúvida só pode resolvida pelo operador do direito – pelo juiz, sobretudo -, depois de adotar uma postura material e ideológica. Disso decorre que a aplicação da fórmula do peso, ao contrário de buscar matematizar a solução dos casos difíceis, parece conferir liberdade o suficiente ao aplicador do direito, para que se atinja “a sentença a que se queira chegar”.

Não parece ser possível, ainda, obter o consenso a respeito sobre quais casos são fáceis e quais são difíceis quando da colisão de princípios e da necessidade de ponderá-los, podendo acontecer que um caso que pareça fácil se revele, na verdade, um caso difícil. Um exemplo citado pelo próprio Alexy ilustra esse raciocínio, quando este se refere a uma decisão sobre o fumo prolatada pelo Tribunal Constitucional alemão198 para afirmar que tal sentença é representativa “do conjunto de exemplos fáceis nos quais resulta plausível formar juízos racionais sobre as intensidades das intervenções nos direitos fundamentais e sobre os graus de realização dos princípios, de tal modo que mediante a ponderação se possa estabelecer um resultado de forma racional”199. Trata-se de sentença que fixou a obrigação dos produtores de tabaco de colocar, nos maços de cigarro, etiquetas com advertências sobre os malefícios à saúde advindos do fumo. Alexy compreende medida que satisfaz de modo intenso a proteção à saúde, ao passo que se trata de uma intervenção apenas leve na liberdade de profissão e oficio, em especial se comparada com medidas alternativas, como a proibição de comercialização do tabaco ou imposição de restrições à sua venda.

Contudo, a interpretação e gradação de pesos realizada por Alexy não é a única possível, havendo gradações diversas que poderiam, também, levar a resultados diversos. Isso

197 PULIDO, Carlos Bernal. O direito dos direitos : escritos sobre a aplicação dos direitos fundamentais.

Trad. de Thomas da Rosa de Bustamante com a colaboração de Bruno Stiegert. – São Paulo : Marcial Pons, 2013, p. 101.

198 BVerfGE 95, 173 (184).

199 ALEXY, Robert. “Epílogo a la Teoría de los derechos fundamentales”. Trad. de Carlos Bernal Pulido. Revista Española de Derecho Constitucional, n. 66, 2002, p. 33.

porque, do ponto de vista fático, é discutível que o fato de etiquetar os maços de cigarro com advertências sobre seus perigos às pessoas se traduza em medida que satisfaça intensamente o direito à saúde. Pode-se argumentar que o efeito prático de tais etiquetas é praticamente nula, porque o vício do tabaco não é resultante da carência de informação sobre seu caráter nocivo; ao contrário, as informações que seriam divulgadas nas etiquetas são altamente conhecidas, e não surpreenderiam ninguém. Desse modo, advertências dessa natureza não são realmente capazes de fazer alguém parar de fumar, hábito que parece um caso claro que fraqueza de vontade, e, inclusive, “porque em certas ocasiões para a mente humana aquilo que é considerado proibido ou nocivo é mais desejado” 200. Desse modo, mesmo os casos aparentemente fáceis podem revelar sua complexidade, de tal modo que a atribuição de pesos a princípios, definitivamente, não é tarefa tendente ao consenso.

A fórmula do peso de Alexy não tem a pretensão de fornecer à ponderação um processo unívoco, infalível, inquestionável e algorítmico. Mas, em razão de sua manifesta objetividade metodológica, confere elevada racionalidade no processo decisório, impõe alto ônus argumentativo ao operador do direito para a atribuição dos pesos, o que, por conseguinte, permite grande controle sobre o conteúdo e fundamentação de suas decisões.

É natural que, nos casos em que a decisão judicial não decorre de uma lógica subsuntiva, o ônus argumentativo se potencialize. Na colisão de princípios, deve o intérprete demonstrar, analiticamente, a construção do seu raciocínio201. Dados os limites da fórmula do peso e da ponderação como modo de aplicação dos princípios, surge a necessidade de traçar um panorama a respeito da argumentação jurídica, em nossa busca pela elucidação da justificação das decisões judiciais nas quais a mera subsunção da regra ao fato não é possível. É o que faremos a seguir.

200 PULIDO, Carlos Bernal. O direito dos direitos : escritos sobre a aplicação dos direitos fundamentais.

Trad. de Thomas da Rosa de Bustamante com a colaboração de Bruno Stiegert. – São Paulo : Marcial Pons, 2013, p. 103.

201 BARROSO, Luis Roberto. Novos paradigmas e categorias da interpretação constitucional. In:

NOVELINO, Marcelo (org.). Leituras Complementares de Direito Constitucional – Teoria da Constituição. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 170.