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Mapa 6 Fluxos migratórios dos pais dos alunos

1. A Língua Portuguesa como instrumento para a construção da

1.4. O comércio no Cabo Verde

Terceira Razão do Infante

“A terceira razão do Infante foi porque se dizia que o poderio dos Mouros daquela terra d’Africa era muito maior do que se comummente pensava, e que não havia entre eles Cristãos nem outra alguma geração. E porque todo sisudo, por natural prudência, é constrangido a querer saber o poder de seu inimigo, trabalhou-se o dicto senhor de o mandar saber, para determinadamente conhecer até onde chegava o poder daqueles infiéis.”99

Além da descrição da geografia e das gentes que os exploradores portugueses encontraram, interessa-nos neste momento observar principalmente o tipo de relações comerciais que se estabeleciam entre as gentes que habitavam aquelas terras, entre si e com estes estrangeiros, à época. Muitíssimas expedições marítimas se organizaram em Portugal até se desenhar a costa ocidental africana:

98 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 67

“O senhor Infante mandou que as caravelas avançassem mais além. Indo, porém, de paz e de guerra, descobriram um cabo belíssimo que entra pelo mar a que deram o nome de Cabo Verde. (…) As suas gentes são extremamente negras.” 100

No que diz respeito aos primeiros contactos humanos nesta região, desde logo, o leitor destes relatos pode facilmente deduzir que aquelas gentes estavam preparadas para o combate, recorrendo a tácticas de uma enorme eficácia, afirmando-se como verdadeiros senhores daqueles lugares. De facto, só eles conheciam bem aquela terra, a sua beleza, os seus perigos, os seus segredos e as suas riquezas, tendo naturalmente desenvolvido técnicas de defesa e de ataque que utilizavam contra qualquer ameaça.

Não foi fácil pôr o pé neste solo, de acordo com as notícias dessa época sobre navegadores que, imediatamente atacados ao longo da costa, ficavam sem capacidade de resposta, morrendo ou regressando inevitavelmente a Portugal. Ao avistar as embarcações, os africanos nem sempre esperavam para identificar ou comunicar com os visitantes. Por isso, as negociações exigiam certos cuidados e a criação das condições necessárias para esse mercado:

“(…) descobriram um grande rio que tem o nome de Cenega, muito povoado. Falaram os cristãos com essa gente através dos homens que traziam consigo e fizeram pazes com eles, trocaram as suas mercadorias e trouxeram daí muitos negros comprados.

E assim desde esse tempo até agora de cada vez trazem mais negros desde esse lugar, que já não têm conta. A terra chama-se Gelofa (...) habitada também por negros e em tão grande multidão de gente que custa a acreditar; (…) Pôs o senhor Rei duas casas naquela terra de Cenégios para trocar as suas mercadorias por ouro, são elas a de Arguim e a de S. João que fica próximo de Tofia e Anterote.” 101

Podemos depreender que, em algumas situações, foi necessário, e até mesmo imperativo, estabelecer relações de paz, não só para conseguir uma aproximação efectiva a estas gentes, mas também para possibilitar posteriormente trocas comerciais.

O espírito guerreiro daquelas gentes é perceptível nas descrições apresentadas neste documento e podemos observar que se movimentavam ou se deslocavam não só com frequência, rapidamente e com facilidade, para vender e comprar produtos vários, mas também estavam sempre equipados para a guerra. Tão depressa faziam a guerra

100 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 65 101 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 63 e 65

como a paz, consoante o modo de aproximação dos estrangeiros ou os seus próprios interesses comerciais:

“O senhor da terra, porém, pretendendo falar comigo na margem do rio, numa grande floresta, trouxe com ele grande número de homens armados com setas envenenadas, azagaias, espadas e adagas. Eu aproximei-me dele levando-lhe como presente meus biscoitos e vinho do nosso, pois eles não têm vinho a não ser de palma. (…) Ele deu-me três negros, duas mulheres e um homem (…)102

Estes senhores dos reinos africanos teriam esta enorme flexibilidade quando se tratava de trocas comerciais. De acordo com as palavras de Diogo Gomes de Sintra, neste contexto das relações comerciais, estes povos facilmente se entregavam à troca de géneros, parecia terem hábitos nesse sentido e uma receptividade muito grande aos produtos oferecidos pelos estrangeiros. Davam, em troca, homens e mulheres, que também ofereciam de presente, como forma de reconhecimento ou para manifestar o seu contentamento. Era, assim parece, uma prática comum e habitual entre os africanos:

“No outro dia (…) vimos gente do lado direito e aproximámo-nos dela e fizemos

pazes com eles. O senhor deles chamava-se Frangazick, sobrinho de Farisangul, grande príncipe dos negros. Recebi deles 180 pesos de ouro em troca das nossas mercadorias, a saber, panos, manilhas e outras coisas.103 (…)

Ele deu-me três negros, duas mulheres e um homem. Manifestou-me o seu contentamento e cheio de alegria e de satisfação jurou-me (…)”104

A receptividade era tanta que se espalhavam, por todas as terras, mesmo muito longínquas, as notícias sobre a presença dos navegadores. Praticavam-se trocas de produtos, muitos deles desconhecidos dos “cristãos” portugueses (como por exemplo, “dentes de elefante, malagueta em grão e em casca, tal como cresce”105):

“Acordadas as pazes com eles, correu fama por toda a terra de que havia cristãos em Cantor e acorreram de todas as partes até ali, a saber do norte de Tombucutu, bem como moradores do lado sul fronteiras à Serra de Gelei, tendo vindo igualmente gentes de Quioquium que era uma grande cidade (…)”.106

Pode deduzir-se que o comércio entre estes povos era uma actividade de enorme importância e que esses interesses económicos expandiram-se ainda mais com a

102 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 79 103 D. G. SINTRA (1484-1496);Op. Cit., pp. 73 104 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 79 105 D. G. SINTRA (1484-1496);Op. Cit., pp. 71 106 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 73

chegada dos produtos vendidos pelos portugueses. Por outro lado, estas gentes tinham no continente africano, e em vastas regiões, uma organização comercial bastante sólida, se tivermos em consideração o conhecimento profundo que tinham de possuir para organizar e investir em grandes caravanas de camelos para transportar ouro e outros produtos valiosos pelo deserto.

Todos os modos de vida pareciam assentar num sistema económico de trocas comerciais que implicava uma mobilidade calculada e o investimento na força de trabalho de escravos, sem a qual esses objectivos económicos, à época, não se poderiam concretizar, dadas as duríssimas condições para o transporte das mercadorias e a agressividade do clima, só para referir algumas das dificuldades óbvias que este tipo de empresas enfrentaria:

“Fiquei a saber por eles que em tal cidade [Quioquum] havia abundância de ouro e que por ali passavam as caravanas de camelos e dromedários que transportavam as mercadorias de Cartago ou de Tunes, Fez, do Cairo e de toda a terra dos sarracenos com carregamento de ouro que é transportado das minas do Monte Gelu [Fouta Djalon]. A outra parte desse monte, no lado oposto, chama-se Serra Leoa.”107

Por outro lado, há notícia de frequentes conflitos entre os vários senhores daquelas terras, revelando-se uma organização política instável, a um tal ponto que acontecia os líderes refugiarem-se junto dos estrangeiros, procurando protecção contra os adversários ou rivais que sobrepunham o seu poder na sequência de jogos de poder ou de guerras entre estes povos africanos:

“Era isto no porto de Zaza. Aí encontrei também Borgebil que havia sido rei de Gelofa e que daí fugira por medo do rei de Burbruck que lhe tomara a terra.”.108

Portanto, a posse da terra era um sinal de poder mas também de riqueza do senhor que a habitava, acompanhado dos seus súbditos e por homens de corte que se distinguiam por determinados sinais como, por exemplo, brincos de ouro nas orelhas; mas o líder do grupo nem sempre tinha garantida grande estabilidade no seu posto, sujeito a guerras e cobiças constantes naquelas regiões.

Por fim, há um outro aspecto muito pertinente a considerar no desenvolvimento de relações comerciais com os povos do continente africano. Trata-se da forma como

107 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 75 108 D. G. SINTRA (1484-1496) ; Op. Cit., pp 89

comunicavam, dado que se falavam línguas diferentes e desconhecidas nestas regiões. Naturalmente, o aspecto linguístico foi, com toda a certeza, uma das primeiras dificuldades sentidas pelos marinheiros portugueses e rapidamente tiveram necessidade de resolver os problemas de comunicação. Para isso, como já dissemos, uma das mais antigas estratégias dos navegantes foi a utilização de intérpretes (o “língua” ou “turgimão”), emissores e receptores de mensagens, que poderiam levar à paz ou à guerra. Os primeiros “língua” vinham até da Índia109, o que não deixa de ser surpreendente, nesta fase das Descobertas - devia pensar-se que a Índia estava muito perto; outras vezes, escravos e prisioneiros de guerra eram utilizados para contactos com outros grupos. A comunicação entre os povos era difícil e, por conseguinte, os interesses económicos foram sempre mais importantes para as populações, ao longo de muitos séculos. E isto é tão verdade que os africanos nem precisavam de falar para negociar, fazendo usualmente uma troca muda dos produtos, com determinadas regras que os visitantes portugueses passaram a conhecer e aprenderam a utilizar no comércio com estes povos. Portanto, eliminavam o obstáculo linguístico e substituíam-no por um outro sistema que garantia a clareza nas transacções comerciais e a transmissão dos mesmos interesses. Nem uns nem outros precisaram de aprender ou de falar línguas diferentes, porém comunicavam, devido a interesses comuns:

“E as gentes de uns lugares, aos quais um deles chamou Bètu e outro Abanbarraná e o outro Bahá, vão a esta terra de Toom comprar o ouro por mercadorias e escravos que lhe levam; os quais no modo de seu comércio, tem esta maneira, silicet: todo aquele que quer vender escravo ou outra cousa, se vai a um lugar certo pera isto ordenado e ata o dito escravo a ua árvore e faz ua cova na terra, daquela cantidade que lhe bem parece; e, isto feito, arreda-se afora um bom pedaço, e então vem o rostro de cão, e se é contente de encher a dita cova de ouro, enche-a, e se não, tapa-a com a terra e faz outra mais pequena, e arreda-se afora. E como isto é acabado, vem seu dono do escravo e vê aquela cova que fez o rostro de cão, e, se é contente, aparta-se outra vez fora; e tornado o rostro de cão ali enche a cova de ouro. E este modo tem em seu comércio e assi nos escravos como nas outras mercadorias; eu falei com homens que isto viram.”110

109 BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti et al., História da Expansão Portuguesa, Volume I,

A Formação do Império (1415-1570), Círculo de Leitores, 1998, pp. 418

Concluindo sobre estas ideias, podemos salientar três facetas dos africanos que habitavam a costa ocidental de África: guerreiros exímios, comerciantes experientes e verdadeiros senhores destes territórios. Desde logo, em meados do século XV, estes traços foram referidos ou apresentados por vários informadores portugueses. Estes terão conhecido muitas situações semelhantes às que foram analisadas. Revelaram muitas características dos indígenas africanos que nem sempre são devidamente consideradas, merecendo ser interpretadas e avaliadas com uma ponderação mais imparcial, ou seja, uma leitura menos marcada por acontecimentos ainda recentes, como a descolonização, por exemplo. Contudo, mais tarde, surpreendentemente, os africanos foram dominados, explorados, vendidos na sua própria terra; e foi assim que se espalharam pelo mundo inteiro.